Ayer era, como Stuart Mill, um adepto do fenomenismo. E este, bebido em David Hume, não é senão idealismo ( os objectos físicos são ideias, criações mentais nossas que não passam disso mesmo) tal como em Kant que copiou Hume em alguns aspectos essenciais.
«No sentido em que é compatível com o realismo ingénuo a teoria causal é compatível também com o fenomenismo, isto é, com a tese de que os objectos físicos são construções lógicas de dados sensoriais...»
(A.J. Ayer, O Problema do Conhecimento, Editora Ulisseia, pág. 98; o destaque a negrito é posto por mim).
Quanto à impropriamente designada teoria causal esta é um realismo crítico (os objectos físicos estão fora de nós mas não têm algumas ou todas as cores, não produzem sons, não são quentes nem frios, etc, isto é, as suas aparência enganam).
Ludwig Wittgenstein, um dos pais da filosofia analítica, escreveu:
«4.112. O objectivo da Filosofia é a clarificação lógica dos pensamentos.»
«Um trabalho filosófico consiste essencialmente em elucidações.»
«O resultado da Filosofia não é “proposições filosóficas”, mas o esclarecimento de proposições».
«A Filosofia deve tornar claros e delimitar rigorosamente os pensamentos, que doutro modo são como que turvos e vagos.» (Ludwigg Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987, pags 62-63).
Wittgenstein contradiz-se: reduz a filosofia a uma espécie de pontuário ortográfico, a um corrector do discurso e do pensamento. Mas por que razão aquilo que corrige as proposições erróneas ou vagas, clarificando-as, não há-de ser capaz de produzir proposições próprias, autónomas? Não pode o crítico literário transformar-se em escritor? E que é o Tratado Lógico-Filosófico de Wittgenstein senão um conjunto de proposições filosóficas, autónomas, deste pensador austríaco?
Na mesma linha, Alfred Ayer escreveu:
«As proposições da filosofia não são factuais (de conteúdo empírico), mas sim de carácter linguístico…Portanto, podemos dizer que a filosofia é um departamento da lógica...uma indagação puramente lógica» (Alfred Ayer, Linguagem, verdade e lógica).
Isto é um puro erro: o carácter linguistico não se opõe necessariamente ao carácter empírico. Por mais metafísica que seja, a filosofia não vive sem se inspirar ou tomar por tema árvores, rios, céus, planetas, fábricas e praças das cidades, pessoas, jovens e velhas, empregadas ou desempregadas, etc. A linguagem não vive sem referentes, que estão no mundo empírico, ou no mundo imaginário ou no mundo lógico-racional. Não há proposições de carácter exclusivamente linguístico, excepto as da lógica simbólica. Há numerosas proposições da filosofia que são factuais, em parte pelo menos. O carácter comum da filosofia é o associar a factos empíricos uma interpretação especulativa.
Exemplo: a pessoa A afirma «Em Cuba, não há liberdade de formar partidos políticos ou orgãos de imprensa independentes do governo de Castro (factos empíricos), por isso o comunismo é mau (proposição filosófica) mas a pessoa B contrapõe «Em Cuba, há emprego para toda a gente e aparentemente ninguém passa fome (factos empíricos) por isso o comunismo de Castro é bom (proposição filosófica).»
As proposições filosóficas não são apenas lógicas, ao contrário do que dizia secamente Ayer. A maioria delas conserva algum conteúdo empírico e vai além deste: são proposições empírico-racionais, a juntar às outras, metafísico-racionais.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Por realismo, entende-se a família das doutrinas (ontológicas, éticas, estéticas, etc) que asseveram que as coisas materiais ou os juízos de valor existem em si mesmos, no mundo exterior, fora das subjectividades, dos psiquismos humanos ou no interior destes mas na sua componente objectiva. Por anti realismo, entende-se o inverso: coisas e valores estão imersas na imaginação arbitrária das mentes humanas, não subsistem fora destas.
Escreve Desidério Murcho:
«As posições anti-realistas globais têm sido uma tentação constante ao longo da história da filosofia. Estas posições distinguem-se do anti-realismo local pela sua abrangência. Ao passo que o anti-realismo local declara que um certo domínio do pensamento (como a ética, no exemplo dado) não está ancorado na natureza das coisas, o anti-realismo global declara que nenhum domínio do pensamento está ancorado na natureza das coisas. O anti-realismo global disputa a própria expressão "natureza das coisas". ( )
«O anti-realismo local não é radicalmente incoerente. O anti-realismo ético, por exemplo, não é radicalmente incoerente, apesar de poder ser falso por outras razões. Mas qualquer forma de anti-realismo global, ou cepticismo radical, é radicalmente incoerente. Isto não é surpreendente. Pois não se pode estar a dizer a verdade, quando se diz que não é possível, de todo em todo, dizer a verdade.» (Desidério Murcho, Pensar outra vez filosofia, valor e verdade, Edições Quasi, V.N.Famalicão, 2006, pags 94-96; o negrito é nosso)
Este texto, que, além de vago, copia as noções de anti realismo global e local veiculadas por Simon Blackburn, enferma de uma confusão conceptual. Senão, vejamos um exemplo. A teoria de Kant é quase um anti realismo global:
A) No aspecto ontológico, é anti realismo uma vez que os objectos materiais não são reais em si mesmos, apenas existem no interior da nossa imensa mente.
B) No aspecto ontológico-categorial/modal, é anti realismo uma vez que as categorias de unidade, pluralidade, causa- efeito, contingência, necessidade, etc, são imanentes ao espírito do sujeito e dos sujeitos, não existindo fora das mentes.
C) No aspecto moral, é em boa parte anti-realista, na medida em que o bem e a norma ética que o visa é subjectivo. O supremo bem, como númeno regulador, poderá considerar-se real, objectivo
D) No aspecto estético, é anti realismo uma vez que a faculdade (estética) de julgar é subjectiva nos seus conteúdos.
No entanto, apesar de ser praticamente um anti realismo em todos os domínios, o kantismo está muito longe de ser um cepticismo radical. É mesmo uma teoria extremamente coerente. Desidério confunde anti-realismo global com cepticismo radical, sem destrinçar que este funda uma modalidade do anti realismo mas está longe de englobar todo o anti realismo.
Há muito anti realismo global que é dogmatismo subjectivista ou intersubjectivista mas não é cepticismo radical, ainda que se tenha servido do cepticismo como método de construção dos seus andaimes dogmáticos.
Por exemplo, o filósofo analítico Ayer desenvolveu um sistema anti-realista global que não é um cepticismo radical, mas utiliza o ceptismo parcial e mantém alguns dogmas:
A) Ayer, durante bastante tempo, negou a realidade física exterior ao sujeito, isto é, rejeitou o realismo como sendo metafísico. Foi pois anti realista, sustentando o construtivismo lógico, uma forma de fenomenismo, que reduz os objectos materiais (cadeiras, árvores, etc) a complexos de sensações, dissolvendo a distinção dualista rígida entre o psíquico e o físico, na linha do monismo neutral de Russell.
B) No plano ético, Ayer manteve-se anti realista, subjectivista, opondo-se a Moore, o fundador da filosofia analítica - que postulava o bem e o mal, etc, como sendo valores objectivos, e denunciava a «falácia naturalista» na ética.
C) No plano estético, recusou conferir qualquer validade objectiva aos juízos de belo e feio, sendo pois anti realista.
D) Dentro do seu anti realismo, e mais tarde, após aderir ao realismo ontológico (ao "realismo físico" de Moore), Ayer sustentou o positivismo lógico e o seu critério de verificação - o que significa que a experiência pode ser encarada como um patamar pré-ontológico - admitindo como hipótese provável, na sua fase anti realista, a existência dos objectos físicos, sempre sem cair no cepticismo radical (o probabilismo na medida em que admite graus plausíveis de verdade distintos não é um cepticismo radical).
Por conseguinte é erróneo identificar, como o faz Desidério Murcho, todo o anti realismo global com o cepticismo radical e proclamar o primeiro «radicalmente incoerente». Nem Kant nem Ayer foram radicalmente incoerentes na estruturação dos seus sistemas filosóficos..
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