Vários equívocos caracterizam o livro do professor Cogito, Filosofia 11º ano, de Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, da Asa.
DESASTRE EM PERGUNTAS DE ESCOLHA MÚLTIPLA
O manual comporta várias questões de escolha múltipla mal concebidas. Vejamos exemplos:
«Para cada uma das questões que se seguem, indique a única resposta correcta.
«1. De acordo com a definição tradicional de conhecimento proposicional, uma crença é conhecimento:
a. se for verdadeira.
b. só se derivar da experiência.
c. só se for verdadeira
d. se derivar da experiência.»
(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 181)
Segundo os autores do manual a única resposta certa é a 1-c.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha: há duas respostas certas, 1-a e 1-c. A palavra «só» da hipótese c é redundante. Como se pode negar que a resposta a está correcta? Só por miopia, ultra-detalhismo deformante...
Eis outra questão da ficha informativa da página 181 do manual:
«2. O conhecimento a priori:
a. tem de basear-se na experiência
b. pode não se basear na experiência.
c. resulta de ideias inatas.
d. não pode basear-se na experiência.»
(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 181)
Segundo os autores do manual a única resposta certa é a 2-b.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha: Há duas respostas certas , c e d, e uma semi certa, b. De facto, o conhecimento a priori resulta de ideias inatas, anteriores à experiência, e, como tal não pode basear-se na experiência. Custa a crer como os autores se equivocam e equivocam os alunos de forma tão grosseira...
Vejamos outro exemplo:
«4. De acordo com o falibilismo, uma crença justificada:
a. baseia-se na experiência.
b. pode ser falsa.
c. não pode ser falsa
d. baseia-se na intuição racional.»
(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 181)
Segundo os autores do manual a única resposta certa é 4-c.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha: a resposta correcta é b, e não c como assevera o manual. Senão vejamos: a teoria de Popper sobre as ciências é falibilista, isto é, admite que qualquer tese ou crença justificada das ciências empíricas - como por exemplo: «a molécula de água é composta por dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio», «o efeito Doppler, a deslocação da luz para o vermelho prova que o universo está a expandir-se» - pode ser falsa, ou sendo verdadeira, apresentar falhas, excepções significativas às regras..
Outro exemplo:
«2. Para dar uma explicação científica de um fenómeno é preciso:
a. referir uma previsão útil. que melhore a vida da humanidade.
b. indicar a lei geral dentro da qual o fenómeno não podia deixar de ocorrer, considerando as condições iniciais verificáveis.
c. descrever uma regularidade observável, em termos muito exactos.
d. subsumir o fenómeno numa lei geral muito precisa e informativa, que apenas permite explicar outras ocorrências do mesmo fenómeno.»
(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 248).
b.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha: há três respostas certas, b,c,d. As respostas b e d são praticamente indistinguíveis. Com que direito e racionalidade opta o manual por excluir a d? A resposta c também está certa porque «descrever uma regularidade observável» é esboçar ou formular uma explicação científica. Exemplo: ainda que não se saiba bem o que é um OVNI, várias aparições de objectos deste tipo nos céus possibilitam descrever certo tipo de comportamentos físicos e electromagnéticos, com regularidades.
Com este tipo de questões, de resposta errónea ou equívoca, os alunos ficam sujeitos à pura arbitrariedade, o que é desastroso para a justiça na avaliação de conhecimentos e para a imagem da filosofia como disciplina prestigiada e ensinável.
A EXISTÊNCIA DO EU É UMA QUESTÃO DE FACTO PARA HUME?
Nas páginas que se referem à teoria de David Hume o manual propõe como actividade:
1. "Eu existo" é uma relação de ideias ou uma questão de facto?»
E dá a seguinte resposta:
«1. Uma questão de facto. Ao afirmar a minha existência, estou a afirmar a existência de uma entidade concreta. Além disso, eu poderia não ter existido: negar a proposição não leva a uma contradição.»
(Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,Cogito, Filosofia 11º ano, Asa, pág. 153).
Crítica minha: Ao contrário do teor desta resposta, Hume considerava o "eu" uma relação de ideias, não um facto provado. Cito Hume:
«Mas o eu ou pessoa não é uma impressão, mas aquilo a que se supõe que as várias impressões têm referência. (...) Nunca consigo apanhar-me a mim próprio, em qualquer momento, sem uma percepção, e nada posso observar a não ser a percepção».
(David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág 300).
Portanto, a existência do eu é indemonstrável, segundo Hume. É uma suposição pois os homens são fluxos de perceções em constante devir:
«... Atrevo-me a afirmar do resto dos homens que cada um deles não passa de um feixe ou colecção de diferentes percepções que se sucedem umas às outras com inconcebível rapidez e que estão em perpétuo fluxo e movimento.» (David Hume, ibidem, pág 301).
Lembra a teoria budista dos dharma ( à letra: lei) ou qualidades existenciais de cada ser humano ( exemplo: percepção visual, percepção táctil, memória, inteligência, etc) que flutuam como átomos no espaço vazio e se juntam, por acaso, para produzir este ou aquele indivíduo concreto.
HUME ACEITA O REALISMO INDIRECTO OU REALISMO CRÍTICO?
Na ficha formativa da página 181 deste manual «Cogito» figura a seguinte questão:
«3. Leia o texto seguinte:
«Os realistas indirectos aceitam que a minha chávena de café existe independentemente de mim. Consideram, no entanto, que eu não tenho uma percepção directa desta chávena. O realismo indirecto afirma que a percepção envolve imagens mediadoras. Quando olhamos para um objecto não é esse objecto que vemos directamente, mas sim um intermediário perceptual. (...) Para o realista indirecto, a chávena de café na minha secretária causa a presença de um dado dos sentidos bidimensional: vermelho na minha mente, e é este objecto que eu percepciono directamente. Consequentemente, a chávena de café só é por mim percepcionada indirectamente, isto é, eu só a percepciono porque estou ciente do dado dos sentidos que a causou na minha mente.» (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Lisboa, Gradiva, 2013, pag 82).
3.1. Será que Descartes defende o realismo indirecto? Porquê?
3.2 Será que Hume defende o realismo indirecto? Porquê? »
(Cogito, Filosofia 11º ano, de Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, Asa, pág. 181)
As respostas que os autores dão são as seguintes:
«3.1.
Sim Descartes defende o realismo indirecto.
- Em seu entender, os objectos imediatos da percepção são ideias. Embora coloque a possibilidade céptica de as ideias sensíveis não serem representações de objectos físicos. Descartes argumenta que provando que Deus existe e não é um ser enganador, podemos ficar certos de que as nossas ideias sensíveis são, de facto, "imagens mediadoras" de objectos físicos.
- Assim, através dessas ideias, percepcionamos realmente objectos físicos.»
(Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
3.2
«Hume aceita o realismo indirecto, mas não parece defendê-lo propriamente.
«- Acredita, sem dúvida, que os objectos imediatos da percepção são impressões e que estas são causadas por objectos físicos.
«- No entanto, julga ser impossível justificar esta crença. Pois, em seu entender, só podemos estabelecer relações causais a partir de conjunções constantes observadas. Mas, acrescenta, nunca podemos observar uma conjunção constante entre impressões e objectos físicos, pois só as primeiras podem ser directamente percepcionadas». (Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).
Crítica minha:
3.1.
Descartes perfilha, sim, o realismo indirecto ou crítico. Os autores enganam-se ao dizer que «os objectos imediatos da percepção são ideias». É uma confusão: os objectos imediatos da percepção são as cadeiras, as nuvens, os corpos de animais ou de humanos, isto é, os corpos físicos, as ideias essas, são, sim, as percepções - refiro-me às ideias adventícias.
Os autores manifestam ignorância ao não distinguirem, na gnosiologia de Descartes, as qualidades primárias (forma, tamanho, movimento, número) existentes realmente nos objectos físicos e as qualidades secundárias (peso, dureza, cor, odor, som, prazer, dor, etc) que existem apenas dentro da mente e não nos objectos exteriores. Por isso quando dizem «Assim, através dessas ideias, percepcionamos realmente objectos físicos.» fica-se sem perceber de que tipo de ideias se trata em concreto, isto é, não se percebe como são os objectos físicos segundo Descartes: a rosa vermelha na visão (ideia adventícia) corresponde a uma rosa vermelha na realidade exterior? Vaguismo, nebulosidade do manual, incompreensão da ontognoseologia cartesiana... Eis uma amostra do saber dos que pontificam na universidade portuguesa actual e na Sociedade Portuguesa de Filosofia.
Crítica minha:
3.2.
A frase dos autores «Hume aceita o realismo indirecto, mas não parece defendê-lo propriamente» é confusa, incoerente. Hume não aceita o realismo, seja este directo, ingénuo, ou indirecto, crítico. É um erro grave dizer que Hume «acredita, sem dúvida, que os objectos imediatos da percepção são impressões e que estas são causadas por objectos físicos». Se assim fosse, Hume seria realista. Um dos pilares da doutrina idealista de Hume é, justamente, afirmar a impossibilidade de demonstrar que há um mundo físico real fora das nossas mentes. Logo, ao contrário do que diz o manual, Hume não acreditava que as impressões eram causadas por objectos físicos exteriores:
«Esta mesa que, neste momento, se me apresenta, é apenas uma percepção e todas as suas qualidades são qualidades de uma percepção. Ora a mais óbvia de todas as suas qualidades é a extensão». (David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág 286).
«Não temos ideias perfeitas de nada senão das percepções. Uma substância é inteiramente diferente de uma percepção. Não temos, pois, nenhuma ideia de substância. A inerência a qualquer coisa é, segundo se supõe, necessária, como suporte das nossas percepções. Nada parece necessário para servir de suporte à existência de uma percepção.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág 280; o destaque a negrito é posto por mim).
Ricardo Santos, Paula Mateus ou Pedro Galvão são doutorados? São. E são «especialistas em lógica proposicional»? Diz-se que sim. E de que lhes serve isso, se não são capazes de visualização ontológica das doutrinas de Descartes, Hume, Kant, etc, o que só uma lógica intuitiva, informal, dialética pode proporcionar? Note-se que, neste manual, por não dominarem a ontognosiologia, os autores omitem a oposição frontal entre idealismo material e realismo material e, no seio deste, entre realismo ingénuo e realismo crítico, em particular na teoria de Descartes, evitam definir o idealismo de Kant, etc.
A filosofia analítica é uma filosofia menor, feita de cortes e sobreposições de conceitos, organizados em hierarquias mais ou menos disformes. As universidades oficiais são um viveiro de doutorados medianamente inteligentes que burocratizam a filosofia, isto é, a fazem decair rapidamente na vulgaridade e no lodo dos equívocos. As perguntas de escolha múltipla, tão em voga nos manuais e testes escolares de quase todos os docentes de filosofia do secundário, são um exemplo dessa burocratização e fraca qualidade de pensamento.
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica