Alguns equívocos enformam o manual do professor «O projecto desafios, 11º ano de Filosofia», da Santilhana Editores, de Faustino Vaz e Marta Brites, com revisão científica de Adriana Silva Graça e João Cardoso Rosas.
O VERDADEIRO CONHECIMENTO IMPLICA CRENÇA?
Sobre a definição da filosofia analítica àcerca do conhecimento como «crença verdadeira justificada» diz o manual:
CRENÇA
«Este requisito é óbvio. Não é concebível termos conhecimento de factos em que não acreditamos. O conhecimento não pode ser-nos atribuido se não acreditarmos nos factos em questão. Esse é um dos méritos do sujeito que tem uma relação com o mundo bem-sucedida. No entanto, por mais esperançada que seja a crença, se não for verdadeira e se para ela não tivermos uma justificação adequada, não é um caso de conhecimento». (Faustino Vaz e Marta Brites, «O projecto desafios, 11º ano de Filosofia», revisão científica de Adriana Silva Graça e João Cardoso Rosas, Santilhana Editores, página 154).
«Não é concebível termos conhecimento de factos em que não acreditamos», dizem os autores. Ora, ao contrário dessa posição, não acreditar nos factos em questão é, muitas vezes, uma forma superior de conhecimento. O céptico descrê porque conhece intuitivamente que muitos juízos são pura fantasia. Tanto a crença como a descrença - que é uma crença negativa - são ingredientes do conhecimento. Por isso, é redundante e, em muitos casos erróneo, dizer que o conhecimento implica crença. Porque a crença implica um certo distanciamento entre o sujeito e o objecto - daí o «ver para crer» - ao passo que o conhecimento pleno é a pura adesão do sujeito ao objecto, acto no qual a crença se dissipa.
Em Platão, a crença é a pistis, que faz parte da doxa ou opinião. Ao nível da episteme (raciocínio científico) ou da noese (apreensão intuitiva do arquétipo) não há crença, há certeza. A certeza é inimiga da crença. Crer em Deus é não ter a certeza absoluta da Sua existência ou dos Seus predicados. Conhecer é estar com as coisas sem crença, é ter intimidade intelectual ou sensorial com essas coisas, materiais ou espirituais.
Quando se diz que o conhecimento é crença verdadeira comete-se um erro de paralaxe filosófica.
FALTA DE CLAREZA SOBRE ARGUMENTO DE ANALOGIA
Diz o manual:
«Consideremos o seguinte argumento por analogia:
«Argumento 7
1) De há muitos anos a esta parte que o verão é a época do ano em que está mais calor, há mais turismo e a economia portuguesa melhora.
2) Este verão também há mais calor e mais turismo.
Logo, a economia portuguesa melhora.»
(Faustino Vaz e Marta Brites, «O projecto desafios, 11º ano de Filosofia», revisão científica de Adriana Silva Graça e João Cardoso Rosas, Santilhana Editores, página 120).
Crítica minha: o argumento acima não é de analogia mas sim uma dedução de base empírica. A conclusão está implícita na premissa. Os autores não compreendem bem o que é a analogia. Um bom exemplo desta é a seguinte inferência: «O homem é análogo a uma árvore: os pés equivalem às raízes, as pernas e o tronco equivalem ao tronco da árvore, os braços correspondem aos ramos e a cabeça à copa».
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
A analogia é, segundo Aristóteles, um nível transgenérico, superior aos géneros. Tal como o género, a analogia é um universal. A primeira analogia teorizada por Aristóteles é entre ser e uno.
Uno pode ser interpretado de duas maneiras diferentes: como quantidade, visão de Aristóteles, isto é acidente interno da substância (exemplo: «Esta árvore é una, é uma só»); como substância, visão de Platão, isto é ser-essência geral (exemplo: « O ser é o mundo dos arquétipos, englobando o Bem, o Belo, o Justo, o Uno, a Sabedoria»). Nesta óptica, Uno é adjectivo ou numeral em Aristóteles e substantivo em Platão.
«Ademais, mas em outro sentido, os princípios são os mesmos analogicamente: assim é com acto e potência, se bem que estes são também distintos, e de distintos modos, para coisas distintas. » (Aristóteles, Metafísica, livro XII, 1071 a, 1-5).
Acto e potência são análogos? Não serão espécies do género «modos de ser»? E as espécies são análogas entre si? Ou são genericamente unas?
«Ademais, ainda que as causas das substâncias o sejam de todas as coisas,sem embargo, como foi dito, as causas e os princípios são distintos para coisas distintas que não pertencem ao mesmo género - cores, sons, substância, qualidade - a não ser analogicamente.» (Aristóteles, Metafísica, livro XII, 1071 a, 25-30).
Cores e sons, em certo sentido, não pertencem ao mesmo género: cores e formas visíveis são espécies do género visão e sons e silêncio são espécies do género audição. Mas, na verdade, sendo árvore e homem espécies do género ser vivo, podemos detectar uma analogia de forma entre ambas: as raízes da árvore são análogas aos pés do homem, o tronco da árvore é análogo às pernas e ao tronco do homem, os ramos são análogos aos braços, a copa é análoga à cabeça. Assim, neste caso, a analogia instala-se no seio do género e não está acima dele.
Mas há, certamente, analogia entre géneros como, por exemplo, a analogia entre o género "ser" (ontologia) e o género "conhecer" (gnosiologia).
O SOL E A ECLÍPTICA, CAUSAS DO HOMEM, NÃO TÊM FORMA?
Como causas do homem, Aristóteles aponta os elementos, a forma ou essência, o pai e a mãe, o sol e a roda das constelações atravessada pela trajectória aparente do sol designada por eclíptica:
«Assim, do homem, são causa os elementos - fogo e água enquanto matéria - e a forma própria e também algum agente exterior como o pai; e além de tais coisas, o sol e a eclíptica, os quais não sendo matéria nem forma nem privação, nem sendo da mesma espécie são, sem embargo, produtores de movimento»
«Além do mais, há-de observar-se que algumas coisas podem enunciar-se universalmente, mas outras não. Os princípios imediatos de todas as coisas são o isto primeiro em acto e outra coisa que está em potência. Portanto, aqueles universais não existem, já que o indivíduo é princípio dos indivíduos.»
( Aristóteles, Metafísica, livro XII, 1071 a, 10-20; o destaque a bold é da minha autoria).
Nestes excertos, Aristóteles frisa a primazia do individual concreto sobre o universal. Ao dizer que os universais não existem, Aristóteles está a criticar a teoria das Ideias em Platão segundo a qual, por exemplo, a Ideia de Homem - uma forma imutável, eterna e perfeita de homem - existe separada, num mundo inteligível, supra-terreno.
Mas questionemos o que Aristóteles escreve sobre o sol. Este tem forma circular e matéria ígnea - aliás, matéria etérea ou quinta essência no sistema aristotélico, se não erro. Como pode Aristóteles negar forma ao sol? E como pode algo sem forma nem matéria produzir movimento, exceptuando Deus, o pensamento imóvel e eterno? E a eclíptica ou trajectória aparente do Sol não tem forma ou é uma forma sem matéria em permanente actualização?
Suponho que Aristóteles nega que o sol e a eclíptica tenham forma comum (eidos) ou essência mas não nega que possuam forma ou configuração individual.
É de salientar que ao dizer que o sol e a eclíptica são causas do homem e produtores do movimento Aristóteles pode estar a querer significar que há um determinismo astral, solar e zodiacal, na vida do homem: o nascimento, o crescimento, a estabilização na maturidade, do homem - e quiçá as suas acções ou grande parte destas - são geradas pelo movimento do sol na eclíptica e pelos graus desta (graus do Zodíaco).
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