Sem embargo do seu brilhantismo como o maior pensador dialético da antiguidade ocidental, Aristóteles cometeu alguns erros. Escreveu:
«É evidente que os contrários surgem por natureza em torno de uma coisa idêntica, seja em espécie, seja em género: com efeito, a enfermidade e a saúde surgem no corpo do animal, a brancura e a negrura no corpo simplesmente, a justiça e a injustiça na alma. E é necessário que todos os contrários estejam ou no mesmo género, ou em géneros contrários, ou que sejam eles mesmos géneros: com efeito o branco e o negro - pois o seu género é a cor - enquanto a justiça e a injustiça estão em géneros contrários - pois o género de aquela é a virtude, o de esta é o vício - e o bem e o mal não estão em um género, mas eles mesmos vêm a ser géneros de algumas coisas.»
(Aristóteles, Categorias, capítulo XI, 15-30; o bold é colocado por mim).
Ao contrário do que disse Aristóteles, justiça e injustiça estão no mesmo género: o género "distribuição ou regulação do bem entre os indivíduos". E bem e mal estão no mesmo género: o género ética. E branco e preto pertencem a (sub)géneros diferentes: branco ao género cores claras e negro ao género cores escuras. Cada coisa ou qualidade pertence, em simultâneo a dezenas de géneros. Os contrários pertencem ao mesmo género e cada um deles em separado pertence a géneros diferentes.
OS GÉNEROS SÃO SEMPRE ANTERIORES ÀS ESPÉCIES?
Aristóteles escreveu:
«Assim, pois, serão também simultâneas por natureza todas aquelas coisas que procedem de um mesmo género na mesma divisão; mas os géneros são sempre anteriores às espécies: com efeito, não são reversíveis segundo a implicação; por exemplo, existindo o aquático, existe o animal, enquanto que existindo o animal, não existe necessariamente o aquático.» (Aristóteles, Categorias, Capítulo 13, 15 a, 5-10; o bold é posto por mim)
Aristóteles falha, aqui, na pensamento dialético: do mesmo modo que não há alto sem baixo, nem dia sem noite, não há género sem espécies. O género não é, pois, anterior às espécies que o compõem, em geral, mas pode ser anterior a esta ou àquela espécie que nele tenham surgido posteriormente. Género e espécies são concomitantes, coetâneos, nascem em simultâneo, do mesmo modo que alto e baixo, grande e pequeno.
A DIFERENÇA NÃO É GÉNERO DE NADA?
Aristóteles escreveu ainda:
«A diferença não é género de nada. Que isto é verdade resulta evidente: pois nenhuma diferença indica quê é, mas mais precisamente qual, como por exemplo, o pedestre e o bípede. (...)
Também se se incluiu a diferença no género, por exemplo (dizendo que) o impar é uma diferença do número, não uma espécie: tão pouco é plausível que a diferença participe do género. Com efeito, tudo o que participa do género ou é uma espécie, ou é um indivíduo; ao contrário, a diferença não é espécie nem indivíduo: assim, pois, é evidente que a diferença não participa do género. De modo que tão pouco o ímpar será, uma espécie, mas sim uma diferença, posto que não participa do género.» (Aristóteles, Tópicos, Livro IV, Capítulo II, 122 b, 15-25; o destaque a bold é posto por mim)
Aristóteles equivoca-se: o ímpar é uma diferença no género número e, portanto, é o princípio constitutivo da espécie número ímpar, é a essência desta. O género número é divisível em duas espécies, sob uma certa óptica: a espécie número par e a espécie número impar, consoante a metade de cada número de cada espécie seja número inteiro ou não o seja.
Aristóteles erra igualmente ao dizer que a diferença não pode ser género. Senão vejamos: como se forma a diferença específica, ou seja, a particularidade que distingue uma espécie das outras? Forma-se através da intersecção de dois ou mais géneros distintos. Exemplo: racionalidade e corporeidade humana (uma cabeça, dois braços, duas pernas, etc) é a diferença específica entre a espécie homem e as espécies galinha, macaco, elefante, cão, etc, que existem no seio do género animal. Mas racionalidade é género autónomo: há racionalidade positivista e racionalidade metafísica, há racionalidade nos seres humanos e em outras criaturas como extraterrestres, anjos, deuses. Foi da intersecção entre o género animal e o género racional, que nasceu animal racional, e da intersecção entre o género animal e o género Portanto, a diferença específica - neste é género, numa área distinta do género em que ela se insere.
QUATRO TIPOS DE OPOSIÇÃO QUE SÃO AFINAL TRÊS
«De quatro maneiras se diz que uma coisa se opõe a outra: ou bem como a respeito de algo, ou bem como os contrários, ou bem como privação e possessão, ou como afirmação e negação. Para dizê-lo com um exemplo, cada uma das coisas deste tipo se opõe: como o a respeito de algo, por exemplo, o dobro e a metade; como os contrários, por exemplo, o bom e o mau; como a privação e a possessão, por exemplo, a cegueira e a vista; como afirmação e negação, por exemplo, está sentado- não está sentado.» (Aristóteles, Categorias, Capítulo X, 11 b, 20-25; o destaque a negrito é de minha autoria).
Crítica: a afirmação e a negação são espécies dentro do género contrariedade. Não podem ser extrinsecadas deste. São um aspecto proposicional da contrariedade e da contradição. Também a privação-possessão são o aspecto formal da contrariedade: cada contrário está privado do outro, por exemplo, o bom é a privação do mau e vice-versa. Bom e mau são apresentados por Aristóteles como contrários mas poderiam ser simultâneamente apresentados como possessivo (de bom)-privativo (de bom).
Há, a meu ver, três tipos de opostos no mesmo plano: contrários (exemplo: bom e mau, fogo e madeira, fogo e água), semi-contrários - que Aristóteles designa de intermédios - e colaterais ( adjacentes, diferentes mas isentos de contrariedade como,por exemplo, os números 5 e 6, ou a casa e a horta que a rodeia). E todos eles pertencem ao género supremo contradição, que se encontra num plano acima.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Na linha do racionalismo francês, com fina análise psicológica, Gilles Deleuze (18 de Janeiro de 1925- 4 de Novembro de 1995, o dia do assassínio do primeiro-ministro israelita Itzak Rabin) foi um pensador académico poderoso. Uma das suas ideias chave é a de que a Diferença se sobrepõe à Mesmidade/Identidade, embora andem de mãos dadas. Deleuze possui uma influência considerável de Leibniz - note-se que, em brincadeira cabalística, a imaginação sugere-nos que Giles De...Leuze poderia chamar-se Giles De..Leibniz.
Sabe-se que para Leibniz a mónada - um conceito retirado de Aristóteles: o ponto inespacial, que está em parte nenhuma - era a fonte primordial do universo. a mónada é uma unidade de força e movimento, tal como a Diferença que cria a intensidade e a profundidade, na teoria de Deleuze.
Leibniz, que me parece um vincado inspirador de Deleuze, escreveu sobre a mónada ou substância simples sem partes, hermeticamente fechada ao exterior:
«10. Dou também por concedido que todo o ser criado está sujeito à mudança e, por consequência, também a Mónada criada, e também que essa mudança é contínua em cada uma.» (Gottfried W. Leibniz, Monadologia)
Isto corresponde, na teoria de Deleuze, à Diferença, essa espécie de arquétipo em mutação incessante de intensidade, que cria a profundidade, o espaço, o tempo, o mundo dos fenómenos caracterizado por extensão e qualidade (qualitas) e corpos materiais (quales):
«No ser, a profundidade e a intensidade são o Mesmo - mas o mesmo que se diz da diferença. A profundidade é a intensidade do ser ou inversamente. E dessa profundidade intensiva, desse spatium, saem ao mesmo tempo, a extensia e o extensum, a qualitas e o quale.» (Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, pag 375).
O CONCEITO DE DIFERENÇA, UM MISTO DE ARQUÉTIPO EM PLATÃO E MÓNADA EM LEIBNIZ
Sobre o conceito de Diferença, capital na sua filosofia., Deleuze escreveu:
«A diferença não é o diverso. O diverso é dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. É aquilo pelo qual o dado é dado como diverso. A diferença não é o fenómeno, mas o númeno mais próximo do fenómeno. É, portanto, verdade que Deus fez o mundo calculando, mas os seus cálculos nunca estão correctos; e é mesmo esta injustiça no resultado, esta irredutível desigualdade que forma a condição do mundo. O mundo «faz-se» enquanto Deus calcula; não haveria mundo se o cálculo fosse correcto. O mundo é sempre assimilável a um "resto" e o real no mundo só pode ser pensado em termos de números fraccionários ou mesmo incomensuráveis. Todo o fenómeno remete para uma desigualdade que o condiciona. Toda a diversidade e toda a mudança remetem para uma diferença que é a sua razão suficiente. Tudo o que se passa e aparece é correlativo de ordens de diferenças: diferença de nível, de temperatura, de pressão, de tensão, de potencial, diferença de intensidade.» (Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, pag 361, Relógio d´Água; o negrito é colocado por mim).
Para Deleuze, a diferença é a forma principial dinâmica, por assim dizer, o arquétipo em movimento: enquanto que em Platão o arquétipo ou essência estática é reproduzido no mundo da matéria - é deficientemente clonado - por acção do demiurgo, que constitui a força dinâmica que plasma a essência na matéria, na chora ou espaço material caótico. Assim, a Diferença é como a mónada de Leibniz : originária, imune a influências exteriores, variando de intensidade porque em contínua transformação.
No entanto, neste texto acima a palavra diferença reveste-se de dois sentidos distintos, o que parece ter escapado a Deleuze: diferença como forma principial dinâmica (nas primeiras linhas do texto) e diferença como diversidade entre objectos e estados, como diversidade no interior do cosmos (nas últimas linhas do texto). No primeiro caso, a Diferença, como arquétipo-demiurgo, não é diferença em relação a algo, mas tem um estatuto ontológico primordial, em si: é princípio da diversidade.
Não parece ser esta a leitura que Fernando Gil faz no prefácio da edição portuguesa do "Diferença e repetição" de Deleuze.
A DIFERENÇA É O CENTRO DO PROCESSO DO ETERNO RETORNO E O MESMO SÓ ESTÁ NA CIRCUNFERÊNCIA?
Retomando o tema do eterno retorno, que é caro a Nietzschze e aos estóicos, Deleuze escreveu:
«O génio do eterno retorno não está na memória, mas no desperdício, no esquecimento tornado activo(...) Assim, a negação como consequência resulta da plena afirmação, consome tudo o que é negativo e consome-se a si próprio no centro móvel do eterno retorno. Se o eterno retorno é um círculo, é a Diferença que está no centro, estando o Mesmo apenas na circunferência - centro descentrado a cada instante, constantemente tortuoso, que gira apenas em torno do desigual.»
«A negação é a diferença mas a diferença vista do lado menor, de baixo.Invertida, vista de cima para baixo, a diferença é a afirmação. Mas esta proposição tem muitos sentidos: que a diferença é objecto de afirmação; que a própria afirmação é múltipla; que ela é criação, mas também deve ser criada, afirmando a diferença, sendo a diferença em si mesma. Não é o negativo que é o motor...» (Gilles Deleuze, Diferença e repetição, pags 120-121, Relógio d´Água; o negrito é posto por mim).
Um dos problema que esta citação levanta é: se a Diferença gira em torno do Desigual - comparemos a Diferença ao sol que tudo ilumina e gira em torno de um centro, apesar de o Sol/Diferença ser o centro irradiante do universo - como classificar a instância do Desigual? Como uma diferença formal, ontologicamente anterior à Diferença-Arquétipo-Mónada?
Há erros antidialécticos neste texto de Deleuze. Não é possível opor a Diferença ao Mesmo como o centro do círculo se opõe à circunferência. A Diferença em si é um Mesmo, porque tem consistência ontológica. Ela só é um Outro em relação a outra Diferença ou ao mundo dos fenómenos.
Também ao afirmar que "a negação é a diferença... vista de baixo" está a atribuir à negação (uma predicação) o significado de "diferença", isto é, diferença numa perspectiva de visão ... da Diferença, como ser principial. É um uso anfibólico, falacioso, do termo "diferença", - diferença em si, ou seja, Forma-Energia, e diferença para outrém, ou seja, desigualdade (negação ou afirmação de algo). É, pois, a pura sofística no texto de Deleuze - escreve muito bem mas afasta-se, poeticamente, do rigor epistémico da descrição ontológica. Lembra "O sofista" de Platão. E a mesma crítica se aplica à frase "invertida, vista de cima para baixo, a diferença é a afirmação".
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