Aristóteles distinguiu quatro predicáveis: o próprio, o acidente (symbebêkós), a definição e o género. Predicável significa uma entidade da qual se predica (diz, qualifica) algo - por exemplo, a espécie homem é predicável porque de homem predica-se animal («O homem é um animal») e o género animal é predicável porque de animal predica-se ente vivo («Todo o animal é um ente vivo»). Parece haver alguma subtil confusão, nesta classificação, entre dois planos: o ontológico (do ser) e o eidológico (da essência). O grande filósofo grego escreveu:
«Toda a proposição e todo o problema (problemata) indicam ora um género (génos), ora um próprio (ídios), ora um acidente (pois também a diferença, ao ser genérica, há-de ser colocada no mesmo lugar que o género); e, já que entre o próprio, há o que significa quê é o ser (Tò tí en eînai) e há o que não significa isso, há-de dividir-se o próprio nas duas partes anteriormente ditas, e a uma se chamará definição (horismós, em grego), que significa quê é o ser, e a outra, de acordo com a designação dada em comum a ambas, se chamará próprio. Assim pois é evidente, a partir do que foi dito, por que razão, de acordo com a presente divisão, tudo vem a reduzir-se a quatro coisas: próprio, definição, género ou acidente. (Aristóteles, Tópicos, Livro I in Tratados de Lógica (Órganon), pag 94-95, Editorial Gredos, Madrid).
O texto alude à diferença genérica. A diferença é genérica ou específica? Dentro de um género, as diferenças entre as diferentes espécies - exemplo, no género animal - são específicas e não genéricas. Não é clara, pois, a alusão à diferença genérica - existe, de facto uma diferença entre os géneros, mas existem também as diferenças específicas no seio de cada género.
Sobre a definição, essência traduzida no plano verbal, Aristóteles sustenta, acima, que faz parte do próprio tal como o próprio. Há aqui uma certa ambiguidade, uma duplicação de sentidos de próprio: há o próprio substância (exemplo: este vaso de barro), que inclui a forma comum, não própria, que lhe veio de cima, e o próprio acidente (exemplo: este barro), que é a porção de matéria ordenada e individuadora, aquilo que é mesmo singular e único. Não esqueçamos que para Aristóteles, a matéria é o princípio da individualização, a concreção no máximo grau.
A relação entre a substância e o acidente desenrola-se no plano ontológico, do que é e do que não é: a substância é, o acidente é e não é. O acidente é algo mas não é intrínseco à substância - referimo-nos ao acidente extrínseco, como por exemplo, a esferográfica (acidente) pousada sobre a substância mesa. Quando se trata do acidente intrínseco à essência (exemplo: o piscar de olhos ou o sorrir de cada ser humano) a descontinuidade mantém-se como característica do acidente: este é descontínuo, ora acontece ora desaparece, e só a sua forma, em conexão necessária com a substância, o classifica como acidente intrìnseco à substância, ao próprio.
A essência é, sempre, captada por abstracção, imprescindível no plano filosófico e científico; a essência existe misturada com a existência, com o existir ou ser puro.
Mas a relação entre o género, a essência-definição e o próprio - este entendido como substância, isto é, um composto de forma e matéria - desenvolve-se primariamente, não no plano ontológico, mas no plano eidológico, que é um plano formal concreto.
Assim, o termo próprio encontra-se na encruzilhada do seu duplo sentido: é o que é (tó on) - sentido ontológico em comparação com o acidente - e é o quê é (tó tí)- sentido eidológico, que lhe é dado pelo facto de ser constituido por uma forma individual participada pela forma-espécie-definição e pelo género.
O aparente paradoxo da concepção aristotélica é o de duas entidades não individuais mas colectivas - a forma comum (definição) ou espécie e a matéria-prima (Hylé) - forjarem entes individuais concretos ao unirem-se, sendo a matéria o princípio da individuação.
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Nietzsche abordou a filosofia de Parménides de um modo algo equívoco, sem o suficiente grau de análise, isto é, sem apreender todas as faces do poliedro gerado pela palavra grega ser (einai). Escreveu:
«Na filosofia de Parménides, preanuncia-se o tema da ontologia. A experiência não lhe ofereceu em lado algum um ser, como ele o imaginava, mas, em virtude de o ter podido pensar, concluiu que podia existir: conclusão esta que se baseia no pressuposto de que nós temos um órgão de conhecimento que penetra na essência das coisas e é independente da experiência. Segundo Parménides, a matéria do nosso pensamento nem sequer se encontra na intuição, mas é trazida de outro lado, de um mundo extra-sensível, ao qual temos directamente acesso pelo pensamento. Só que Aristóteles, contra todas as conclusões idênticas, já realçara que a existência nunca faz parte da essência, que a existência nunca pertence à natureza das coisas. «Por isso, não se pode deduzir do conceito de ser cuja essentia é precisamente o ser a existentia do ser. A verdade lógica dessa antinomia do ser e do não-ser é absolutamente vazia, quando não pode ser dado o objecto que serve de fundamento, a intuição, a partir do qual esta antinomia é deduzida por abstracção; ( )
«Mas logo que se busca o conteúdo da verdade lógica da oposição o que é, é; o que não é, não é! não se encontra, de facto, uma única realidade que seja estritamente conforme a essa oposição; posso muito bem dizer de uma árvore ela é, quando a comparo com todas as outras coisas, que chega a ser quando a comparo com ela mesma num outro momento, ou que ela não é, por exemplo, ainda não é uma árvore quando a observo em estado de arbusto. As palavras não passam de símbolos para as relações das coisas entre si e connosco, nunca afloram algures a verdade absoluta; e a palavra ser só designa a relação mais geral que liga todas as coisas entre si, como a palavra não-ser. Mas se é impossível demonstrar até a existência das coisas, a relação das coisas entre si, o que se designa por ser e por não-ser, não pode sequer fazer-nos avançar um passo para a região da verdade.» ( )
«É absolutamente impossível ao sujeito pretender ver ou conhecer algo para além de si mesmo, tão impossível que o conhecimento e o ser são as duas esferas que mais se opõem.» (Nietzsche, A filosofia na idade trágica dos gregos, Edições 70, Págs 70-71; a letra negrita é posta por mim).
Quando, ao referir-se ao ser, escreve que «a existência nunca pertence à natureza das coisas. Por isso, não se pode deduzir do conceito de ser cuja essentia é precisamente o ser a existentia do ser» Nietzsche equivoca-se: a essência do ser não é "o ser" mas sim um objecto uno, imóvel, ingénito, imutável, esférico, homogéneo, eterno, como se deprende de um texto abaixo. A palavra ser tem o duplo significado de existência, enquanto verbo, e de essência, enquanto substantivo.
Ao dizer que «a verdade lógica dessa antinomia do ser e do não-ser é absolutamente vazia, quando não pode ser dado o objecto que serve de fundamento, a intuição, a partir do qual esta antinomia é deduzida por abstracção» Nietzsche está a copiar Hegel que sustentou que no modo mais abstracto, sem possuir qualidade nenhuma (exemplo: espírito, matéria, natureza física, humanidade, etc,) o ser é tão vago que se confunde com o não ser. É o ser como existência abstracta, não o ser como essência. Nietzshze ignora aqui a definição essencialista de ser dada por Parménides como algo de "uno, imóvel, imutável, eterno, esférico" a qual, obviamente, é oposta à de não-ser, como algo de "múltiplo, móvel, mutável, perecível, não esférico". Dispara, pois, sem acertar no alvo.
Não é também verdade em toda a sua extensão a frase de Nietzschze «As palavras não passam de símbolos para as relações das coisas entre si e connosco, nunca afloram algures a verdade absoluta». Há palavras que são mais que símbolos: são portas de contacto imediato, toques na "pele" do ser das coisas, são partes fonéticas ou gráficas, pseudópodes dos próprios seres. As palavras «Portugal» e «Brasil», por exemplo, são, para os respectivos povos, nomeação do ser, motores afectivos e cognitivos, não símbolos, mas «carne» de seres colectivos.
Há, pois, uma interpretação existencial do termo ser e uma interpretação essencial do mesmo termo distinção que Nietzsche não faz, com clareza, optando por esta última interpretação, essencialista.
Nietzschze comete, no início do texto acima, um erro ao considerar que o ser em Parménides só pode ser interpretado como essência, como objecto.
Parménides escreveu dando um sentido diferente à palavra ser, isto é, o sentido de existir, constituir realidade:
«O que pode dizer-se e pensar-se deve ser (einai). Isto é o que te ordeno que consideres. Afasto-te, pois, desta primeira via de investigaçãoe depois daquela pela qual os homens ignorantes vagueiam bicéfalos; pois a impotência guia no seu peito o pensamento vacilante; são arrastados, cegos e surdos simultâneo, estupefactos, pessoas sem juízo, para quem o ser e o não ser são considerados como o mesmo e não o mesmo e para quem o caminho de todas as coisas é regressivo.
«Pois nunca se provará que sejam os não-entes (mé éonta). (Parménides in Simplício, Física 117, 4, fragmento 6).
Neste texto, Parménides faz coincidir o pensamento e a linguagem com o ser (existir) isto é, a essência, pensada e dizível, deve possuir existência, opõe a existência à não existência e critica os dialécticos, como Heraclito, que proclamam que «as coisas são e não são» e que «há um eterno retorno nas coisas».
Em outra passagem, Parménides delineia a essência do ente ou ser como objecto:
«..O ente (éon) é ingénito e imperecível, pois é completo, imóvel e sem fim. Não foi no passado, nem será, pois é agora todo em simultâneo, uno contínuo. » (Parménides in Simplício, Física 145, 1, fragmento 8).
«Mas porque o seu limite é o último, é completo em toda a parter, semelhante à massa de uma esfera bem redonda, igual em força a partir do centro por todas as partes; pois não é necessário que seja maior nem menor aqui ou ali.» (Parménides in Simplício, Física 146, 15, fragmento 8).
Para Parménides, o ser como ente algo que é - é a totalidade das essências, das coisas, o invólucro que tudo abarca e interpenetra- daí o facto de possuir esfericidade. Não está num mundo aparte de onde se infere isso? mas é a unidade subjacente à multiplicidade do mundo das aparências, dos fenómenos, que é mistura de ser (o uno, o imóvel, o contínuo, o imutável) e de não-ser (o múltiplo, o móvel, o descontínuo, o mutável). O ente é o próprio cosmos sob o aspecto da unidade e da eternidade.
Nietzchze não distingue, pois, de forma explícita e cristalina, as duas interpretações de ser em Parménides:
1) Como existência geral: é.
2) Como essência geral do cosmos: uno, ingénito, imperecível, imóvel, contínuo, esférico.
O facto de o ser se deixar apreender pelo pensamento não significa, ao contrário do que sugere Nietzshze, que o ser seja ideia, pensamento, essência metafísica, Deus ou númeno. Não. O ser poderá constituir o invólucro físico uno e imóvel de todos os entes que se agitam e compõem o cosmos. Seria então o lado formal-global, indiviso, do cosmos.
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Na Historia de la Filosofia escrita por Guillerme Fraile afirma-se, de forma surpreendente, que Platão não tinha poder de abstracção para extrair de uma multiplicidade de casos particulares uma essência universal:
«Platón no asciende de lo particular a lo universal, sino de los particular (seres ontológicos individuales del mundo sensible) a lo particular (seres ontológicos individuales del mundo suprasensible), de lo móvil a lo inmutable, de lo visible a lo invisible, de lo sensible a lo inteligible. No hay abstracción en sentido psicológico, sino solamente un intento de ascensión, de elevación, de trascendencia, del mundo sensible al suprasensible de las ideas.» (Guillermo Fraile, Historia de la Filosofía, II, 1º, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, Pág. 357; a letra a negrito é nossa).
A leitura do magnífico diálogo «Parménides ou das Ideias» de Platão desmente esta apreciação obtusa de Guillhermo Fraile:
«- Que é que se opõe, Parménides, a que a ideia entre integralmente em cada um dos múltiplos objectos? - volveu Sócrates.
- Desse modo a ideia, una e idêntica, encontrar-se-ia em toda a integridade e simultaneamente, numa multidão de objectos separados uns dos outros; por consequência ficaria separada de si mesma.
- Não - respondeu Sócrates; - assim como o dia, embora seja uno e idêntico, existe simultaneamente em muitos lugares diferentes, sem se separar de si mesmo, também cada ideia estaria ao mesmo tempo em muitas coisas, sem deixar, por isso, de ser uma só e mesma ideia.» (Platão, Parménides ou das Ideias, Editorial Inquérito, Pág 25).
Este texto revela que Platão possuía plena capacidade de abstracção especultativa ao dizer que cada ideia una se dá na multiplicidade das coisas que lhe correspondem.
Se Platão singularizou cada ideia do mundo inteligível, não é por falta de poder de abstracção, mas justamente o oposto: é pela singularização que o aristocrata, o depositário do valor superior em qualquer área - na pintura, na filosofia, na astrofísica, na biologia, etc - se distingue da multidão. Ora as ideias de Belo, Justo, Bom teriam de ser paradigmas únicos, em si mesmas, que no entanto se oferecem à multiplicidade dos seres no mundo do Outro pela participação.
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