Domingo, 17 de Julho de 2022
Objectivismo não é contrário de relativismo.

Relativismo não é contrário de objectivismo (isto é, de  opinião sólida de uma vasta maioria de pessoas como por exemplo «A torre de Belém encosta ao rio Tejo») mas sim de absolutismo. É objectivismo dizer que o Islão adora um Deus único, irrrepresentável por imagens. É objectivismo, dizer que o Catolicismo adora um Deus único representável por imagens (exemplo: o Pai Eterno pintado no teto da capela Sistina). Relativismo é constatar estes dois objectivismos simultâneos. Os testes de exame nacional de filosofia não definem com clareza estas diferenças e por isso contêm numerosos erros nas perguntas de escolha múltipla.



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 12:08
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Sexta-feira, 8 de Julho de 2016
O relativismo contradiz-se?

Antes de mais, o que é o relativismo ? É a concepção segundo a qual a verdade, seja a realidade material ou as teorias sobre ela, é relativa, emite raios de diferentes dimensões para diversas áreas do ser ou do conhecimento ou mede estas áreas com raios de diferentes dimensões e valorações.

O relativismo não é, em si mesmo, cepticismo. Não é, em si mesmo, relativo. Relativismo é uma noção absoluta e como tal não varia, não se contradiz, obedece ao princípio da identidade. Representa variabilidade mas, em si mesmo, é invariável. É um dogma absoluto que toda a verdade moral, política, religiosa, científica, artística, é relativa à época, à sociedade, à classe social, à etnia - neste sentido o relativismo é inatacável e invariável na sua forma essencial. O que varia é a forma acidental, existencial, do relativismo.  A forma acidental ou concreta do relativismo é um sair fora de si do absoluto da definição. E é verdade que as doutrinas ou verdades relativas, sectoriais - exemplo: o combate entre o ateísmo e a crença religiosa- se combatem entre si, se contradizem, mas isso não é o relativismo que se contradiz pois este constitui a sinopse, o quadro global dos diferentes matizes. O relativismo é como uma roda da bicicleta cujos raios estivessem todos pintados de tonalidades diferentes.

 

O absoluto do relativismo é a tese de que tudo varia e o relativo do relativismo são as formas concretas que ele assume: comunismo, liberalismo, social-democracia são expressões do relativismo sócio-económico; doutrina corpuscular da luz versus teoria ondulatória da luz são expressões do relativismo cosmofísico;  teísmo, ateísmo, deísmo e panteísmo são expressões do relativismo (ar)religioso;

 

O cepticismo anda encostado ao relativismo mas não se confundem. O cepticismo nasce no interstício entre duas emanações dogmáticas diferentes no mesmo tema. Exemplo: o casamento monogâmico cristão, ao ser comparado com o casamento aberto dos swingers e com o casamento poligâmico faz nascer a dúvida (cepticismo) sobre qual será o melhor modelo de casamento. Estão próximos mas são distintos. O relativismo é ontognosiológico, o ceticismo é meramente gnosiológico. Assim, o relativismo é dogmático flexível.

 

No relativismo, a forma geral permanece a mesma - a verdade é um mosaico - o que muda é o conteúdo das partes.

 

 

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publicado por Francisco Limpo Queiroz às 09:47
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Sexta-feira, 19 de Abril de 2013
Equívocos no Filosofia 10º ano da Plátano Editora (Crítica de Manuais Escolares- XLIV)

No «Filosofia 10º ano», manual do professor, da Plátano Editora, para o ensino secundário em Portugal, editado em Março de 2013, cujo autor é Luís Rodrigues- tendo Álvaro Nunes como consultor científico - abundam definições equívocas.

 

O OBJECTIVISMO MORAL NÃO DEPENDE DE PONTOS DE VISTA COLECTIVOS?

 

Escreve Luís Rodrigues sobre o objectivismo moral:

 

«Os objectivistas acreditam que os juízos de valor podem ser verdadeiros ou falsos - têm valor de verdade - e que essa verdade ou falsidade não depende dos pontos de vista, de sentimentos ou de gostos, sejam estes individuais ou colectivos. Esse valor de verdade é independente da opinião ou do ponto de vista de cada pessoa ou de cada cultura. Assim se considerarmos os juízos «A eutanásia é moralmente errada» e «A eutanásia é moralmente correcta» temos, segundo os objectivistas, de reconhecer que um dos juízos é falso.» (Luís Rodrigues, Filosofia 10º ano, manual do professor, pag. 80, Plátano Editora).

 

Luís Rodrigues esquece ou ignora que a palavra objectivismo possui dois sentidos: verdade patente a todos, intra anima, isto é, dentro das mentes, intersubjectiva (exemplo: sete mais dois é igual a nove é um juízo objectivo mas depende das mentes, um retardado mental não conseguirá obter esta abstração); verdade extra anima, fora das mentes humanas, realidade em si mesma. Como é habitual, os partidários da filosofia analítica consideram unidimensionalmente o sentido de uma palavra, sem se aperceberem de outros sentidos que ela encerra.

 

Podemos  dizer que a teoria atómica não é objectivismo? A partir do momento em que se instituiu universalmente que o número de massa do hidrogénio é um e o do oxigénio é oito estamos perante verdades objectivas, no sentido sociológico: a maioria dos cientistas, dos académicos, dos editores, dos políticos decreta e toma isto como verdade e quase toda a gente o aceita. O objectivismo moral emana da opinião da larga maioria das pessoas numa comunidade regional, nacional ou mundial. Por exemplo, o juízo «É crime agredir fisicamente ou matar bebés» é objectivismo moral mas depende de sentimentos colectivos, ao contrário do que sustenta Rodrigues. Há sempre psicopatas capazes de torturar ou matar bebés, o que retira universalidade absoluta a esse juízo moral.

 

 

CONFUNDIR RELATIVISMO COM ABSOLUTISMO DA IDEOLOGIA DOMINANTE

 

Repetindo os equívocos de Peter Singer, Blackburn e outros adversários da dialética  hegeliana ou marxista sobre o que é relativismo, escreve Rodrigues:

 

«As convicções da maioria dos membros de uma sociedade são a autoridade suprema em questões morais. O relativismo cultural acerca de assuntos morais afirma que o código moral de cada indivíduo se deve subordinar ao código moral da sociedade em que vive e foi educado. Os juízos morais de cada indivíduo são verdadeiros se estiverem em conformidade com o que a sociedade - a maioria dos seus membros - a que pertence considera verdadeiro. »(Luís Rodrigues, Filosofia 10º ano, manual do professor, pag. 81, Plátano Editora)

 

Ora, o relativismo não defende nada disso. Apenas sustenta a pluraridade de pontos de vista - o que Nietzsche designou por perspectivismo, isto é, que a verdade é relativa às classes sociais e aos indivíduos, varia de classe a classe social, de grupo a grupo, de indivíduo a indivíduo. A instituição do casamento gay e lésbico, em França,  é um exemplo de relativismo, porque pressupõe que há várias verdades no campo sócio-sexual e não apenas a verdade da maioria heterossexual (absolutismo). A definição de relativismo que Luís Rodrigues dá é errónea: o relativismo é o espraiar das diferenças no seio de cada sociedade e não o afunilamento da submissão à ideologia dominante, ao sentir e pensar da maioria dos cidadãos. Tão mal pensam os "analíticos"! Entendem, erroneamente,  por relativismo o monolitismo, o absolutismo, à escala nacional. E entendem tanbém por relativismo a variação, a diversidade, à escala internacional, o que está certo. Enredam-se na incoerência.

 

 

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Sexta-feira, 7 de Janeiro de 2011
Dois tipos de relativismo: intensivo ou epistémico e extensivo ou sociológico

Há dois tipos de relativismo, na minha concepção: intensivo ou epistémico e extensivo ou sociológico.

Já acentuei, em outros artigos deste blog, que autores famosos no plano da ética - Peter Singer, James Rachels, Simon Blackburn, entre outros - definem, erroneamente, relativismo como a doutrina segundo a qual «as verdades éticas e estéticas e outras variam de sociedade a sociedade (definição que está certa, até aqui) mas no interior de cada sociedade essas verdades ou valores não sofrem variação uma vez que são as verdades e valores impostos e difundidos pelo sector dominante aos outros sectores da sociedade» (definição esta errada, porque o relativismo reconhece a diversidade de valores e perspectivas no seio de cada sociedade e não prescreve a hegemonia absoluta de alguns e o monolitismo de valores em cada sociedade). Os manuais escolares de filosofia do ensino secundário em Portugal reproduzem este erro de considerar  "relativismo" o absolutismo de valores no interior de cada sociedade.

 

Habitualmente, distingue-se o relativismo do subjectivismo. O relativismo é definido como a corrente que sustenta que as verdades, os valores, os costumes variam de época a época, de sociedade a sociedade e no interior de cada sociedade, de classe a classe, de grupo a grupo social, de etnia a etnia. Dizer, como os académicos mais editados internacionalmente, que «o relativismo coloca no mesmo plano todas as opiniões e valores e postula ser impossível hierarquizá-los em função do valor de verdade» não é definir correctamente relativismo: é confundi-lo com o cepticismo, uma das saídas para a perspectiva relativista. Há outra saída: o dogmatismo diferencial, que estabelece uma hierarquia de graus de verdade ou valor no conjunto das perspectivas sobre um mesmo tema.

 

Quanto ao subjectivismo, é definido, geralmente, como a corrente gnosiológica que sustenta que a verdade varia de pessoa a pessoa, é íntima, intransmissível, em certo sentido.. Exemplo: Maria diz que Deus é a luz da aurora, Carlos afirma que Deus é o ADN e o ciclo da vida, Joana afirma que Deus é o diabo disfarçado, Cristovão afirma que Deus só existe enquanto se pensa nele. Alguns, como Harry Gensler, apontaram uma inexistente incoerência no subjectivismo, que seria a tentativa de este se impor, prescritivamente, como verdade única, numa espécie de imperialismo de opinião de um só, que chocaria com os outros subjectivismos, anulando-se estes entre si. Não é nada disto: o subjectivismo supõe o perspectivismo, a  aceitação da multiplicidade de posições e de cabeças pensantes, só em alguns casos se estriba ou desemboca no absolutismo. 

 

O subjectivismo será um relativismo individualista ou singularista. É uma espécie dentro do género relativismo. Portanto, para maior rigor, deveria falar-se, não na distinção subjectivismo/ relativismo, mas em relativismo subjectivista e relativismo intersubjectivista e objectivista- num plano que leva em conta o número de pessoas que perfilham os mesmos valores ou verdades e não torna o subjectivismo extrínseco ao relativismo.

Mas há uma outra dimensão do termo relativismo, uma dimensão vertical, por assim dizer: a variação, não do número de pessoas adeptas de um dado valor ou ideia, - relativismo estendido no plano sociológico; por isso, lhe chamo extensivo - mas a variação um valor ou ideia no interior da mesma mente - relativismo circunscrito ao plano axiológico ou gnosiológico subjectivo de uma única pessoa; por isso, o denomino intensivo.

Assim, há um subjectivismo absolutista e um subjectivismo relativista. E aqui a situação inverte-se, mas só aparentemente: o relativismo, enquanto doutrina epistémica, passa a ser espécie do género subjectivismo. Note-se que, neste degrau inferior, não se trata do mesmo relativismo que o relativismo sociológico: é um relativismo epistémico, dos valores em si mesmos, científico-axiológico, não é um relativismo dos valores em outros, isto é, ancorados nos grupos sociais, sociométrico, sociológico. Relativismo epistémico e relativismo sociológico não são espécies do mesmo género pois estas não se intersectam mutuamente: o relativismo epistémico, que é a variabilidade dos conceitos e valores, intersecta algum relativismo sociológico, que é a variabilidade do número de pessoas, designado subjectivismo (universo de uma só pessoa). Géneros diferentes que não pertencem à mesma matriz, como por exemplo, o género animal e o género racional, intersectam-se através de uma espécie comum a ambos - neste caso, a espécie homem. Ora o relativismo epistémico é espécie pertencente ao género   relativismo sociológico: as ideias e valores mutáveis são uma espécie  e as ideias e valores imutáveis, absolutos, são outra espécie. 

Assim , hierarquizando dialecticamente géneros, espécies e subespécies temos:

 

GÉNERO: RELATIVISMO SOCIOLÓGICO

ESPÉCIE: SUBJECTIVISMO OU RELATIVISMO SOCIOLÓGICO SINGULARISTA, INTERSUBJECTIVISMO OU RELATIVISMO SOCIOLÓGICO COLECTIVISTA, OBJECTIVISMO ÕU RELATIVISMO SOCIOLÓGICO UNIVERSAL E NECESSÁRIO 

SUB-ESPÉCIES DO SUBJECTIVISMO :SUBJECTIVISMO RELATIVISTA EPISTÉMICO, SUBJECTIVISMO ABSOLUTISTA EPISTÉMICO

 

Note-se que se considerassemos a existências de deuses ou anjos pensantes, extravasando a sociedade humana, esta classificação mudaria de figura. Exemplo de subjectivismo relativista: «Dantes eu acreditava que o universo tinha a forma de um melão, agora acredito que tem a forma de um guiador de bicleta.»  Neste subjectivismo, o sujeito não varia, é um só, fechado no seu casulo interior, o que varia (relativismo) é o conteúdo da sua crença, o objecto epistémico. Exemplo de subjectivismo absolutista: «Sempre acreditei e acreditarei que o amor, a amizade, o ódio ou a inimizade não existem na alma de cada um, são apenas expressão da correlação de forças entre cada um de nós e o mundo que o rodeia, com os seus entes.» Neste subjectivismo absolutista, o sujeito não varia, é um só, e o conteúdo da sua crença, o objecto epistémico, permanece invariável, absoluto (absolutismo).

 

 

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publicado por Francisco Limpo Queiroz às 14:45
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Segunda-feira, 28 de Junho de 2010
Lou Marinoff e a distinção equívoca entre ética deontológica e ética teleológica

No seu livro célebre «Mais Platão, menos Prozac» Lou Marinoff, filósofo norte-americano de qualidade mediana, postula a filosofia como método de aconselhamento paralelo à psicologia e à psiquiatria. Não ponho em causa as cinco fases do método teorizadas por ele, isto é, o processo PEACE: Problema, Emoções, Análise, Contemplação, Equilíbrio. Há, evidentemente, docentes de filosofia, filodoxos, não filósofos, com os seus consultórios abertos, movidos exclusivamente pela vontade de ganhar dinheiro, armados de um suposto altruísmo, à custa do método Marinoff, mas isso não invalida este nem retira legitimidade a uma moderada mercantilização do «aconselhamento filosófico».

 

A ÉTICA DEONTOLÓGICA É ESPÉCIE DO GÉNERO ÉTICA TELEOLÓGICA, CONTRA O CONSENSO GERAL NA ÉTICA TEÓRICA

 

Como teórico, Marinoff mergulha no magma da relativa confusão em que borbulham os principais catedráticos da ética a nível mundial, ao estabelecer uma diferença ao mesmo nível ( de espécie a espécie do mesmo género) entre ética deontológica e ética teleológica. Escreveu:

 

«Mesmo sabendo o que é bom , continuaremos a enfrentar um dilema: a escolha entre dois meios principais de compreender o que é justo. Estes dois meios são a ética deontológica e a ética teleológica.»

«Os deontologistas crêem que a correcção ou incorrecção do acto não têm nada a ver com o bom ou o mau resultado que ele provoca, os actos são bons ou maus por si próprios. Assim se, por exemplo, aceitarmos os Dez Mandamentos, dispomos de um conjunto de regras que nos dizem o que está certo e o que está errado, ainda antes de cometermos o acto. Mas os manuais de regras também não ajudam muito, pois quase todas as regras têm excepções. Se, na sua maioria, as pessoas concordam com as regras básicas (por exemplo: "Não matarás"), é também a maioria que quer ver algumas excepções consagradas na lei (por exemplo: autodefesa, guerra, aborto, eutanásia). Os deontologistas podem até acabar por se matarem uns aos outros, por não chegarem a acordo sobre as excepções à regra (" Não matarás"). A força da deontologia está em dispor de princípios morais; a sua fraqueza reside na dificuldade em estabelecer um conjunto de excepções aproveitável.»

 

«Os teleologistas sustentam que a correcção ou incorrecção do acto dependem, em parte, ou mesmo completamente, da bondade ou da maldade do resultado. Se, por exemplo, aceitarmos o utilitarismo ("a maior felicidade para o maior número"), somos teleologistas. Enquanto um deontologista podia facilmente condenar o Robin dos Bosques (porque roubar é um crime) o teleologista esperaria até ver que destino ele dava ao produto do roubo. Se o Robin dos Bosques abrisse uma conta num banco suíço, o teleologista diria que, por ter roubado para ter proveito pessoal, ele era um criminoso; se o Robin distribuísse o saque pelos pobres, o teleologista diria que ele era um justo, que só estava a ajudar os outros." (Lou Marinoff, «Mais Platão, menos Prozac», Editorial Presença, pag. 193; a letra negrita é colocada por mim).

 

Está correcta a distinção entre éticas deontologistas e éticas teleologistas, consensual a nível mundial? A meu ver, não. Toda a ética é teleológica ou teleologista isto é visa atingir determinados fins. Inclusive a ética de Kant, tomada como modelo contemporâneo da ética deontológica.

Kant descreveu como imperativo categórico o seguinte princípio: «Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal» (Kant, Crítica da Razão Prática, parte I, livro I, A 55).  Ele dá-nos a finalidade - a equidade no comportamento para com os outros, a transmissão do bem fazer ou do bem punir sem olhar a quem, isto é, iluminada por um ideal de justiça universal-  e esconde os meios, o conteúdo deontológico concreto, que deixa ao critério de cada um. Como não será, pois, uma ética teleológica a ética de Kant? Nela os fins universais e altruístas são mais importantes que os meios, ao contrário do que se diz habitualmente.

 

Por outro lado, a ética de Stuart Mill, igualmente teleológica mas eivada de pragmatismo, tem uma dimensão deontológica. Buscando a felicidade da maioria em cada circunstância, Mill sustenta que nem sempre os fins justificam os meios, isto é, não vale todo e qualquer meio ou método. Confusamente, os sucessores de Mill vieram dividir a árvore do utilitarismo em dois ramos - o utilitarismo dos actos e o utilitarismo das regras - sem perceberem ou sem quererem reconhecer que este último é deontologismo.

 

Se a distinção de Marinoff e dos teóricos da ética em geral entre deontologismo e teleologismo é equívoca, qual é então a distinção certa?

É aquela que coloca a deontologia como espécie dentro do género ética teleológica ou ética de fins. Assim há uma ética teleológica «deontológica»  rígida em Kant, defensora dos direitos individuais, e uma ética teleológica pragmática, flexivelmente «deontológica», defensora do primado do direito colectivo do maior número, em Stuart Mill.

 

HÁ UM INTERMÉDIO ENTRE ABSOLUTISMO E RELATIVISMO TOTAL,  QUE MARINOFF NÃO DISCERNE

 

Sobre a oposição absolutismo-relativismo nos valores éticos, escreveu Marinoff:

 

«A Sonia e a a Isabelle estavam envolvidas numa das batalhas tradicionais da filosofia: relativismo contra absolutismo. Os relativistas argumentam que os princípios e os actos não são intrinsecamente certos ou errados, que são as culturas e os indivíduos que lhes atribuem valor (por exemplo: a beleza está nos olhos de quem a vê). Nesta linha de pensamento nenhuma coisa é, de per si, melhor ou pior do que outra coisa. Os preceitos estéticos e morais a que obedecemos são de nossa responsabilidade, não podem ser julgados de maneira objectiva.»(Lou Marinoff, «Mais Platão, menos Prozac», Editorial Presença, pag. 141; a letra negrita é colocada por mim).

 

As coisas não são exactamente o dualismo simplista que Marinoff, neste texto, e outros delineiam. Há um intermédio entre absolutismo e relativismo total, tal como há um intermédio entre a ditadura totalitária (nazi-fascista, estalinista ou teocrática) e o anarquismo, intermédio que é a democracia liberal. Esse intermédio é  o relativismo ancorado no absolutismo - um relativismo dogmático - que se distingue do relativismo total, flutuante sobre a nuvem do cepticismo.

Por exemplo, matar é intrinsecamente errado na ética utilitarista mas pode ser extrinsecamente correcto, segundo esta ética, em certas circunstâncias. Os princípios absolutos não desapareceram no relativismo de Mill: as suas posições, a sua influência é que sofrem variação e daí  que em certas circunstâncias, seja legítimo (de um ponto de vista extrínseco) matar seres humanos e em outras, não.

 

FALTA DE CLAREZA SOBRE O SIGNIFICADO DE METAÉTICA

 

Marinoff emprega de forma confusa, o termo meta-ética:

 

«Então, em que ficamos na nossa busca de vida dos justos? Adoptamos o relativismo meta-ético, se queremos usar um termo técnico. Como vimos no Capítulo 8, o relativismo é a doutrina que nega a existência do bem absoluto, que defende que, conforme as circunstâncias, certos actos são mais apropriados do que outros. Se conseguir imaginar que algumas vezes a deontologia funciona melhor que a teleologia, enquanto que noutros casos se dá o inverso, então o leitor é um relativista metaético.» (Lou Marinoff, «Mais Platão, menos Prozac», Editorial Presença, pag. 193-194; a letra negrita é colocada por mim).

 

Metaética não é oscilar entre duas posições éticas, o deontologismo de Kant e o utilitarismo de Mill, como sustenta Marinoff. Quem oscila, está circunscrito ao campo da ética. Metaética é o que transcende a ética, constitui o seu enquadramento ou o seu horizonte, sem ser ética. Por exemplo, a determinação da existência e da importância de livre arbítrio e determinismo na acção humana é um problema metaético, enquanto ontologia. A biologia, a geografia, a geologia, a astrologia real ( a influência real dos astros no comportamento humano, excluindo ou reduzindo o livre-arbítrio), a química, são componentes da metaética.

 

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Quarta-feira, 28 de Outubro de 2009
Equívocos do «Dicionário Escolar de Filosofia» da Plátano Editora

Lançou a Plátano Editora, de Lisboa, em Setembro de 2009, uma segunda edição do Dicionário Escolar de Filosofia, com  entradas de 12 autores, entre eles o organizador, Aires Almeida. Apesar de conter um bom número de tópicos interessantes, e propiciar um certo número de conhecimentos úteis aos leitores, este dicionário é portador de um considerável número de equívocos teóricos, de erros e imprecisões. Vejamos alguns deles.

 

OMISSÃO DA DISTINÇÃO ENTRE  EIDOS PLATÓNICO E  EIDOS ARISTOTÉLICO

 

Um dos artigos equívocos é o que se refere ao eidos:

 

Eidos

 

«Termo grego que significa «forma» ou «ideia». PLATÃO considerava que as formas ou ideias eram imutáveis, imateriais e não podiam ser percepcionadas pelos sentidos, mas eram a realidade última, sendo as coisas apenas uma pálida sombra das formas.»  DM   (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 95).

 

O que há de impreciso, omisso, equívoco, nesta definição fornecida por Desidério Murcho (DM)?  Antes de mais, o ocultar o carácter eterno das ideias, segundo Platão, e a sua permanência no Mundo do Mesmo ou Inteligível, acima do céu visível.

 

Em segundo lugar, o esquecimento de que o termo eidos designa essência.

 

Em terceiro  lugar, a omissão das diferentes concepções que Platão e Aristóteles perfilhavam sobre o termo eidos: para Platão, a essência é ideia, uma forma singular e única, própria, - em grego, próprio diz-se idios - que não existe no mundo material; para Aristóteles, a essência é uma forma comum ou espécie (eidos), existente no mundo físico em todos os entes singulares por ela abrangidos (exemplo: a essência ou eidos cavalo está neste cavalo de raça lusitano, naqueles cavalos andaluzes, e, enfim, em todos os cavalos físicos do mundo). O eidos segundo Aristóteles, omisso na definição de DM, não é exterior ao mundo físico como o eidos teorizado por Platão e possui, ademais, um carácter intrinsecamente agrupador.

 

   

 

CONFUSÃO SOBRE O RELATIVISMO MORAL ENUNCIADO COMO UM ABSOLUTISMO EM CADA SOCIEDADE

 

A definição fornecida de relativismo moral, neste dicionário, é parcialmente errónea:

 

«Relativismo moral»

 

«Teoria Metaética segundo a qual os factos morais são instituídos pela sociedade e, portanto, podem variar de sociedade para sociedade ou de época para época. Se numa sociedade a maior parte das pessoas acredita, por exemplo, que a pena de morte é justa, então nessa sociedade a pena de morte é justa. Para o relativista, os juízos morais limitam-se a reflectir certos costumes sociais. Quando os costumes ou as crenças morais de uma sociedade mudam, também os factos morais se alteram.» PG

 

(Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 222).

 

Pedro Galvão (PG), tal como Peter Singer, James Rachels e outros famosos da ética, não tem um conceito correcto de relativismo. Que é o relativismo? É a doutrina segundo a qual a verdade é relativa às epocas e lugares, isto é, varia de época a época e de lugar a lugar, varia de povo a povo, de país a país, varia segundo as classes e grupos sociais no interior de cada país ou sociedade.

 

A democracia liberal é, por essência, um regime relativista: o facto de em Setembro de 2009, o PS de Sócrates ter vencido as eleições legislativas em Portugal não torna a ideologia do PS - ou as ideologias europeístas do PS e do PSD que em conjunto abarcam a maioria dos eleitores portugueses votantes - a verdade única para toda a sociedade. Não. Continuam a subsistir segmentos sociais, políticos e culturais diversos - a direita nacional neosalazarista do PNR, a direita conservadora CDS, a esquerda neoestalinista do PCP, a esquerda radical ou semianarquista do BE, etc; os católicos e os islâmicos opositores da legalização das uniões homossexuais, etc - com outras verdades éticas e políticas. É este mosaico multicor que constitui o relativismo.

 

Há, pois, relativismo no seio de cada sociedade - várias verdades ou interpretações sobre a mesma coisa (por exemplo: defensores e detractores do aborto livre; comunistas e não comunistas, etc)-mas Galvão não concebe isso: sustenta a unicidade e uniformidade ética, isto é, que a verdade da maioria é a verdade de todos. É absolutismo de maiorias e não relativismo o que Pedro Galvão define como "relativismo". O único relativismo que reconhece é o da variação de leis ou costumes dominantes de sociedade para sociedade - por exemplo, a liberdade da mulher nas democracias ocidentais em contraste con a opressão da mulher na Arábia Saudita e em outros países de gritante hegemonia masculina. É uma concepção "coxa", parcialmente deformada, de relativismo.

 

CONFUSÃO DE DETERMINISMO COM FATALISMO

 

Um erro em que o próprio Thomas Nagel, premiado internacionalmente em filosofia (!), incorre, e que o presente dicionário escolar repete,  é a confusão entre determinismo e fatalismo:

 

Determinismo/Indeterminismo

 

«O determinismo é uma tese que nos diz que o passado, mais as leis da natureza, determinam a cada instante, um único futuro. Assim, num mundo determinista não há mais do que uma forma de o mundo ser a cada instante. Esta apresenta-se como uma linha de comboio sem bifurcações ou encruzilhadas. O indeterminismo é a tese oposta: a ideia de que o estado do mundo num dado momento é compatível com vários estádios distintos num momento posterior. Ou seja, a linha de comboio tem bifurcações, momentos claros de possibilidades alternativas. Actualmente, não sabemos se o determinismo é verdadeiro ou não. A questão é empírica, e não há razões suficientes para decidir a questão.» MA

 

(Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 88; o bold é nosso).

 

Determinismo está mal definido por Miguel Almeida (MA). Que é o determinismo? É o princípio de repetição segundo o qual nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. É uma das modalidades da Necessidade. A lei da gravidade exerce-se, de forma determinista, sobre os milhares de páraquedistas que se atiram de aviões mas o livre arbítrio de cada um deles, operando a abertura dos paraquedas, impede que o determinismo da queda livre actue plenamente e os faça esmagar-se na terra. O que MA define acima como «linha de comboio sem bifurcações» é o fatalismo, a predestinação, diferente do determismo. Este só na aparência traduz predestinação visto que pode ser «desviado» ou contrariado pelo livre-arbítrio e pelo acaso. O determinismo, ao contrário do que sustenta Miguel Almeida, é uma «linha de comboio com ramificações e bifurcações»: usando as "agulhas" do livre-arbítrio - ou sendo o acaso a mudá-las - o maquinista pode fazer o comboio ir pela via da esquerda ou pela via da direita, avançar ou parar. O que não pode é fazer sair o comboio dos carris do determinismo...

 

O nosso mundo rege-se pelo determinismo mas a guerra do Iraque, lançada pelos EUA e Grã-Bretanha em 2003, podia, ao menos teoricamente, ter sido evitada se Barack Obama e não George Bush ocupasse a presidência dos EUA.

 

Indeterminismo está igualmente mal definido no artigo acima. Há que distinguir indeterminismo no resultado final - que é compatível em regra com o determinismo biofísico visto que a este se adiciona certa dose de acaso- de indeterminismo estrutural ou modal, que é a negação do determinismo ou conexão necessária, infalível, entre causas de tipo A e efeitos de tipo B.

 

Que sentido tem definir compatibilismo como «coexistência do determinismo com o livre-arbítrio» como o faz este Dicionário se neste artigo se toma o termo determinismo como fatalismo, predestinação absoluta? É uma incoerência, tal como é incoerência distinguir determinismo moderado de determinismo absoluto.

 

A "DEFINIÇÃO" PELA NEGATIVA DE CORROBORAÇÃO

 

Herdeiro de uma certa falta de clareza intelectual de Karl Popper, o presente Dicionário não define claramente o que é corroboração para este filósofo inglês:

 

corroboração

 

«Na sua FILOSOFIA DA CIÊNCIA, POPPER rejeita a INDUÇÂO e, consequentemente, a ideia de que uma hipótese ou teoria científica pode ser confirmada por dados empíricos. Assim, no seu FALSIFICACIONISMO a noção de CONFIRMAÇÂO dá lugar à de corroboração. Uma hipótese ou teoria científica é corroborada por dados empíricos quando sobrevive a testes experimentais, isto é, quando não é refutada depois de ter sido posta à prova. E quanto mais severos são os testes, maior é o grau de corroboração que a teoria adquire» PG (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 76).

 

Se repararmos bem, corroboração não é definida nesta entrada: são apenas definidos os efeitos que produz, ou seja, a sobrevivência da hipótese a sucessivos testes experimentais. É como se ao definir automóvel o fizéssemos da seguinte maneira:« automóvel é quando se percorre a 100 quilómetros por hora estradas de asfalto». Não estamos a definir o veículo mas efeitos da sua acção. Pedro Galvão (PG) não nos oferece uma definição positiva, clara, de "corroboração"- talvez nem Popper o faça. Mas nós vamos fazê-lo: a corroboração é a confirmação, por testes empíricos, de um ou mais casos particulares de uma hipótese ou teoria dentro da respectiva série de casos possíveis. É uma tolice dissociar o conceito de "confirmação" do de "corroboração": ambos significam o mesmo, ainda que Popper pretenda dar maior amplitude ao primeiro.

 

A ERRÓNEA IDENTIFICAÇÃO DE PENSAMENTO E PROPOSIÇÃO

 

A incapacidade de definir conceito manifesta-se na correspondente entrada deste dicionário:

 

«conceito

 

«Os constituintes dos pensamentos (ou proposições). A PROPOSIÇÃO de que Lisboa é uma bela cidade tem como um dos seus constituintes o conceito de cidade. Ter um conceito é, argumentavelmente, saber usá-lo correctamente. Por exemplo,se alguém apontar para uma bola e disser que é um tigre, é porque não tem o conceito de tigre (nem de bola); mas se for competente no uso o termo "tigre", tem o conceito em causa. Uma das muitas questões em aberto é a de saber se os conceitos são entidades abstractas independentes da mente ou se dependem desta para existiem.» CT (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 68; o bold é nosso).

 

Esta definição de Célia Teixeira (CT), caracterizada pela vagueza, omite que um conceito é uma representação intelectual simples, uma ideia de algo (ao invés, Schopenhauer distinguia entre ideia, singular e superior, e conceito, designando um colectivo).

 

É uma definição parcialmente errónea ao dizer que «os conceitos são os constituintes do pensamento». Também os juízos e os raciocínios são constituintes do pensamento. Ademais, CT identifica pensamento e proposição, o que constitui, em rigor, um erro. A proposição é expressão de um pensamento mas nem todo o pensamento se traduz em proposições. Os conceitos de «átomo», «quark», «metafísica», «Deus» são pensamentos mas não são proposições.

 

A FILOSOFIA NÃO DISPÕE DE MEIOS DE PROVA, EMPÍRICOS E FORMAIS?

 

A distinção entre ciência e filosofia é superficial neste Dicionário como se torna patente na seguinte entrada:

 

problema filosófico

 

«A filosofia tal como a ciência, procura resolver problemas que nos afectam a todos. A diferença entre os problemas da filosofia está no tipo de problemas que ambas enfrentam. A filosofia trata de problemas para os quais não dispomos de meios empíricos nem formais de prova. São problemas reais, embora muitas vezes de carácter conceptual àcerca dos fundamentos da ciência, da religião, da arte, e até do nosso dia a dia. Por exemplo, problemas como o de saber o que é a justiça, o que é o conhecimento, qual o mecanismo através do qual os nomes referem as coisas que referem, etc. Muitas vezes tomam-se como filosóficos problemas que claramente o não são. Por exemplo, saber se a religião contribui para a coesão das sociedades não é um problema filosófico, mas sociológico(Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 209; o bold é nosso).

 

Equivoca-se Aires  Almeida (AA) sobre a natureza da filosofia. A filosofia não dispõe de meios formais de prova?  Se não dispusesse destes meios não servia para nada, não tinha sequer o estatuto de pensamento reflexivo superior. É a filosofia, através do seu ramo lógico, que hierarquiza os entes em indivíduo ou substância individual, espécie e género. Ora esta divisão conceptual é um meio formal de prova de milhões de asserções entre elas a seguinte: «A Rússia é um país euroasiático ( Euro-Ásia é espécie) do planeta Terra (Terra é género)».

 

São Tomás de Aquino provou formalmente por cinco vias a existência de Deus. Objectar-se-á: falta a prova empírica. Mas as provas formais estão na Suma Teológica.

 

A filosofia usa igualmente provas empíricas para numerosas das suas teses. Exemplo: as filosofias liberal, conservadora, socialista democrática e anarquista atacam a filosofia marxista-leninista e os Estados que a adoptam com provas empíricas variadas, como os 3 milhões de mortos pelo Goulag estaliniano no século XX, o fuzilamento do general Ochoa em 1990 pelos sicários de Fidel Castro após uma vergonhosa auto-crítica fruto de brutais ameaças, o massacre dos marinheiros de Cronstad em Março de 1921, as barbaridades da Grande Revolução Cultural Proletária de Mao Ze Dong, etc.

 

Aires Almeida distancia a filosofia da ciência como o céu da terra mas, de facto, as coisas não são assim: a alma oculta e rebelde de cada ciência é a filosofia, na sombra de cada tese científica desponta a lanterna indagadora da filosofia.

 

A filosofia está para as ciências, para a religião e para a ontologia como o género para a espécie, como o género animal está para as espécies homem, elefante, zebra e outras: ela contém as ciências, ainda que estas se diferenciem dela - pela diferença específica, que inclui a necessidade e o modo de ser próprio de cada ciência. A relação entre filosofia e ciência não é a relação entre duas espécies do mesmo género ou dois géneros diferentes, como supõem Aires Almeida e outros. É, sim, a relação entre o todo (filosofia) e as suas partes (ciências: química, sociologia, matemática, biologia, etc).

 

Igualmente se equivoca AA ao dizer que «saber se a religião contribui para a coesão das sociedades não é um problema filosófico, mas sociológico». O erro reside em separar mecanicamente sociologia de filosofia. Ora, a filosofia penetra no húmus da sociologia, como as raízes da árvore penetram na terra. Saber se a religião coesiona as sociedades é, formalmente, um problema filosófico, e materialmemte um problema sociológico.Tão simples quanto isto.

 

A INCOMPREENSÃO SOBRE A CONTRADIÇÃO/LUTA DE CONTRÁRIOS COMO ESSÊNCIA DE TODAS AS COISAS

 

Não tendo entre os seus 12 autores nenhum verdadeiro conhecedor da dialéctica enquanto ontologia, isto é, enquanto modo de ser da realidade, este Dicionário Escolar de Filosofia só poderia dar uma definição truncada, parcialmente errónea, de contradição:

 

  

 

«Contradição

 

1. Uma falsidade lógica; isto é, uma proposição cuja falsidade se pode determinar exclusivamente por meios lógicos. Por exemplo, a afirmação "Sócrates é mortal e não é mortal" é uma contradição.

 

2. Duas proposições são mutuamente contraditórias quando têm valores de verdade opostos em qualquer circunstância logicamente possível. Por exemplo, as afirmações "Tudo é relativo" e "Algumas coisas não são relativas" são contraditórias. Não se deve confundir inconsistência com contradição; todas as contradições são inconsistências, mas nem todas as inconsistências são contradições. Ver consistência/inconsistência. DM» (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag ;75 o bold é nosso).

 

Comecemos por descortinar que, ao contrário do que  sustenta DM, a proposição «Sócrates é mortal e não é mortal» não é, necessariamente, uma falsidade lógica. Se a metafísica religiosa espiritualista fôr verdadeira -isto é se a nossa alma racional, o nous, o atmã, fôr imortal - é consistente dizer que Sócrates é mortal nos seus corpos físico, vital e de desejos e imortal no seu corpo espiritual racional. Isto é dialéctica. Não viola o princípio da não contradição porque a contrariedade se exerce entre aspectos diferentes do mesmo ente. A lógica proposicional que Desidério Murcho (DM) defende é, em muitos aspectos, antidialéctica, unilateral, falsificadora da realidade.

 

Aquilo que Desidério Murcho  ignora - decerto não compreendeu Heráclito, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Hegel, Marx, Althusser e tantos outros - é que a contradição consistente, a oposição de contrários - por exemplo: protões de carga positiva, e electrões, de carga negativa, no átomo; assimilação e desassimilação, na célula; inverno e verão, no ritmo das estações; sístole e diástole no bater do coração, etc - é a essência de todos os fenómenos da natureza biofísica e humano social e individual.

 

Afirmar que «todas as contradições são inconsistências» é um grave erro: é esvaziar a palavra contradição do seu sentido real, ontológico - «um divide-se em dois que lutam entre si e coexistem» - e atribuir-lhe o sentido de paradoxo. De facto há contradições inconsistentes - exemplo: «eu sou homem e cavalo, fisicamente falando» - e contradições consistentes que, aos biliões, constituem a trama ontológica da realidade - exemplo: «sou bom e mau em simultâneo, bom para com os cidadãos pacíficos e honestos e mau para com os arrogantes e prepotentes». DM não concebe esta distinção, preso que está na masmorra do castelo da antidialéctica.

 

A INCAPACIDADE DE DELIMITAR ONTOLOGICAMENTE FENOMENOLOGIA

 

A incapacidade de definir fenomenologia, de a situar ontologicamente face ao realismo e ao idealismo, é outro traço deste Dicionário:

 

«fenomenologia

 

«Termo pelo qual é designado o movimento filosófico surgido a partir da obra de Edmund Husserl (1859-1938) e que tem por objectivo principal a investigação e a descrição dos fenómenos (ver fenómeno) tal como ocorrem na consciência, independentemente de quaisquer preconceitos, pressupostos ou teorias explicativas. É possível detectar pelo menos quatro tendências principais neste movimento: a fenomenologia realista, que põe ênfase na descrição das essências (ver essência) universais (Nicolai Hartman, Max Scheler); a fenomenologia constitutiva, que procura dar conta dos objectos em termos da consciência que temos deles (Dorion Cairns, Aron Gurwitsch); a fenomenologia existencial (ver existência), que realça a existência humana no mundo (Hannah Arendt, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty); e a fenomenologia hermenêutica (ver hermenêutica), que realça o papel da interpretação em todas as esferas da vida (Hans-Georg Gadamer, Paul Ricoeur). O termo é também usado para a descrição qualitativa de experiências. Em geral, a fenomenologia de uma experiência é a descrição da qualidade dessa experiência, do modo como essa experiência se dá na nossa consciência.» AN  (ibidem, pag 120; o bold é nosso)

 

Há uma fenomenologia realista e uma fenomenologia anti realista? É a fenomenologia idealismo ou distingue-se deste? Nada disto é esclarecido por Álvaro Nunes (AN) neste artigo onde a profusão de referências historicistas e a descrição da fenomenologia como método disfarça a incapacidade de definir ontologicamente fenomenologia.

 

AMBIVALÊNCIA NA DEFINIÇÃO DE VALIDADE E INVALIDADE DE UM ARGUMENTO

 

Mesmo no terreno da lógica, este Dicionário tem insuficiências:

 

«validade/invalidade

 

«A correcção ou incorrecção de um argumento. Há dois tipos de validade: a dedutiva e a não dedutiva. Um argumento dedutivo é válido quando é impossível que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; se isso for possível, o argumento é inválido. Um argumento não dedutivo é válido quando é improvável, mas não impossível, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; se for provável, é inválido. Não deve confundir-se este sentido lógico dos termos "validade" e "invalidade" com o seu sentido popular, que significa "com valor" e "sem valor". Assim, popularmente diz-se que uma proposição é válida ou inválida, querendo dizer que tem valor ou que não tem valor (e, muitas vezes, que é verdadeira ou falsa). Mas não se pode dizer que uma proposição é válida ou inválida no sentido lógico do termo. No sentido lógico do termo só os argumentos podem ser válidos ou inválidos; as proposições são verdadeiras ou falsas, interessantes ou entediantes, e muitas outras coisas, mas nunca podem ter a propriedade da validade argumentativa. » DM

 

  Sendo um «especialista em lógica proposicional», Desidério Murcho (DM) mergulha numa falácia anfibológica centrada na noção de «validade argumentativa». ´Que é validade argumentativa? DM define-a de forma vaga: correcção no argumento. Mas não diz se se trata de uma correcção propriamente formal, indepedendente de todo e qualquer conteúdo material - como é o caso da validade dedutiva - ou se se trata de uma correção formal-material, baseada na realidade empírica do mundo - como é o caso da chamada "validade indutiva".

 

Neste segundo caso, nunca se deveria chamar validade mas sim outra coisa: verdade material, plausibilidade (verdade plausível), solidez. DM, tão cuidadoso em vincar que «validade nada tem a ver com verdade» acaba por fundar a validade indutiva na verdade material e nem dá conta disso...Usa pois falaciosamente o termo validade, com duplo sentido, com ambiguidade.

 

Registe-se ainda o erro por vagueza, imprecisão, na definição de argumento não dedutivo fornecida por DM: «Um argumento não dedutivo é válido quando é improvável, mas não impossível, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; se for provável, é inválido.» Crítica: Improvável é, ontologicamente, o mesmo que provável: ambos estão na esfera da probabilidade. Onde acaba o improvável e começa o provável? Com que escala se medem? Desidério Murcho não é capaz de o dizer. É uma definição trémula, confusa, a da validade não dedutiva.

 

O PRINCÍPIO DO TERCEIRO EXCLUÍDO É UM PONTO DE CHEGADA E NÃO UM PONTO DE PARTIDA?

 

Outra definição imperfeita, parcialmente errónea, neste Dicionário é a seguinte:

 

«princípio do terceiro excluído

 

«Chama-se "princípio do terceiro excluído" à ideia de que, para qualquer afirmação P, é verdade que P ou não P. Ou seja: o princípio declara que não há uma terceira possibilidade, entre P e não P, seja qual for a afirmação. Por exemplo: relativamente à afirmação "Sócrates é alto", só há estas duas alternativas: "Sócrates é alto" ou "Sócrates não é alto". Quando uma lógica aceita o princípio do terceiro excluído significa que qualquer afirmação com a forma "P ou não P" será uma verdade lógica. Algumas lógicas modernas recusam este princípio, como é o caso da lógica intuicionista. Não se deve confundir o terceiro excluído com o princípio da bivalência: este último é a ideia de que só há dois valores de verdade e que todas as proposições têm um dos dois, e só um dos dois. A relação precisa entre o terceiro excluído e a bivalência é objecto de disputa filosófica. Não se deve também pensar que o terceiro excluído é de alguma maneira um axioma da lógica clássica; na verdade, é um resultado, um ponto de chegada, e não um ponto de partida.» D.M (Dicionário Escolar de Filosofia)

 

Crítica: o princípio do terceiro excluído não se limita ao plano das afirmações (Logos predicativo), como supõe Desidério Murcho. É, antes de mais, um princípio das coisas, dos conceitos (Logos nominal), situadono plano da conceptualização antepredicativa. Exemplo: Peixe ou não Peixe (isto não é uma proposição). A proposição não é o lugar originário da verdade, mas sim a apreensão das coisas, a conceptualização. O pensamento (Noein) vem antes do discurso (Logos). O terceiro excluído existe já aí, anterior a toda a proposição - por exemplo: ser versus não ser - e por isso é um ponto de partida, um modo do ser, e não um mero ponto de chegada como sustenta DM.

 

A AFIRMAÇÃO DO CONSEQUENTE NO SILOGISMO CONDICIONAL NÃO É NECESSARIAMENTE UMA FALÁCIA

 

Este Dicionário veicula o erro lógico da moderna lógica proposicional àcerca da afirmação do consequente da primeira premissa no silogismo condicional MODUS PONENS:

 

«falácia da afirmação do consequente

 

 falácia que consiste em supor que da condicional "Se P, então Q" e da afirmação da consequente dessa condicional, "Q", se pode concluir "P". Exemplo: "Se jogamos bem, então ganhamos o jogo. Ganhámos o jogo. Logo, jogámos bem." É fácil apresentar uma refutação desta forma de argumento com um contra-exemplo com a mesma forma lógica: o argumento "Se isso é sardinha então isso é peixe. É peixe. Logo, é sardinha.", implicando a falsidade "Basta ser peixe para ser sardinha", mostra que este padrão argumentativo é falacioso.» JS (in Dicionário Escolar de Filosofia)

 

Ao contrário do que supõe Júlio Sameiro (JS), afirmar o consequente da primeira premissa de um silogismo condicional na segunda premissa deste não é necessariamente um erro lógico, não é uma falácia.

 

Eis um exemplo de silogismo condicional válido:

 

«Se for ao Porto, entro na Torre dos Clérigos.»

 

«Entrei na Torre dos Clérigos.»

 

«Logo, fui ao Porto».

 

Que falácia existe neste raciocínio? Nenhuma. Está correctíssimo. Mas contraria a norma da lógica proposicional que declara inválido afirmar o consequente da primeira premissa. Este silogismo, válido e verdadeiro, demonstra a pseudociência que é a lógica proposicional.

 

CONFUSÃO DO PRINCÍPIO DA NÃO CONTRADIÇÃO COM O PRINCÍPIO DO TERCEIRO EXCLUÍDO

 

O artigo sobre o princípio da não contradição revela-se um pântano de confusão:

 

«não contradição, princípio da

 

«Chama-se "princípio da não contradição" à ideia de que duas afirmações contraditórias não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas. Por exemplo: dado que as afirmações "Sócrates é alto" e "Sócrates não é alto" são contraditórias, o princípio declara que não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas. Quando uma lógica aceita o princípio da não contradição significa que qualquer afirmação com a forma "P e não P" será uma falsidade lógica. Algumas lógicas modernas recusam este princípio, como é o caso da lógica paraconsistente. Não se deve confundir a não contradição com o princípio da bivalência: este último é a ideia de que só há dois valores de verdade e que todas as proposições têm um dos dois, e só um dos dois. Não se deve também pensar que a não contradição é de alguma maneira um axioma da lógica clássica; na verdade, é um resultado, um ponto de chegada, e não um ponto de partida. Aristóteles defende o princípio na sua obra Metafísica (Γ 4). Note-se que a redução ao absurdo só é válida caso se aceite o princípio da não contradição. DM (Dicionário Escolar de Filosofia).

 

Desidério Murcho (DM) designa como princípio da não contradição aquilo que é, de facto, o princípio do terceiro excluído. O exemplo escolhido por DM é defeituoso. De facto, alto e não alto não são contrários na lógica aristotélica, mas contraditórios. Dizer " Sócrates é alto ou é não alto" como, no fundo afirma DM, é exemplificar o terceiro excluído. Distracção fatal deste autor brasileiro que parece especialista em lógica mas se confunde no magma de definições algo desconexas. Se queria escolher um exemplo correcto para o princípio da não contradição seria o seguinte: «Sócrates não pode ser alto e baixo ao mesmo tempo e no mesmo aspecto ou sentido».

 

Aristóteles enuncia assim o  princípio da não contradição, definição que não é a dada por DM acima:

 

«Digamos, em continuação, qual é este princípio; é impossível que o mesmo se dê e não dê no mesmo ao mesmo tempo e no mesmo sentido» (Metafísica, Livro IV, 1005 b).

 

Em suma, o princípio da não contradição enuncia-se assim: uma coisa não pode ser ao mesmo tempo e no mesmo aspecto duas qualidades ou propriedades contrárias entre si. É diferente do princípio do terceiro excluído.

 

O SOFISMA DA "METAFILOSOFIA"

 

Uma definição, surpreendente e sofística, é a de metafilosofia expressa neste Dicionário:

 

metafilosofia

 

«Chama-se "metafilosofia" às teorias acerca da natureza da filosofia. Estas teorias não tratam conceitos como, por exemplo, os de verdade, bem, justiça, dever, beleza, ser, conhecimento, etc.; nem respondem a problemas como, por exemplo, o de saber se todas as desigualdades são injustas ou se existe um sentido da vida, etc.. Em metafilosofia examina-se a natureza dos problemas filosóficos, como se devem estudar as teorias e os argumentos da filosofia, ou que papel desempenha a interpretação de textos, o conhecimento do contexto histórico ou o domínio da lógica no trabalho filosófico. Por exemplo, quando se discute a utilidade, a historicidade ou a universalidade da filosofia está-se em pleno campo metafilosófico.» APC (Dicionário Escolar de Filosofia).

 

A tentação do grupo que está por detrás deste Dicionário Escolar de Filosofia e da revista "crítica na rede" e actual direcção da Sociedade Portuguesa de Filosofia é grande:  como não domina os grandes temas do tronco e das raízes da árvore da filosofia - por exemplo: as ontologias fenomenológica de Heidegger e Sartre, a ontologia reísta de Xavier Zubiri e outras - ficam-se pela rama da lógica proposicional, do que pomposamente chamam lógica modal e procuram transformar estas últimas numa "metafilosofia", isto é, numa "segunda filosofia" que controle como um açaimo o lobo livre da grande filosofia especulativa, do pensamento por excelência. Desde quando é que discutir a utilidade, a historicidade ou a universalidade da filosofia é sair fora do campo da filosofia e constitui «metafilosofia»? Isso sempre foi filosofia e continuará a sê-lo.

 

É óbvio que podemos conceder que as ciências, lógica incluída, ou as religiões são uma metafilosofia - estão além da filosofia - mas não reconhecemos o sentido de "metafilosofia" que António Paulo Costa (APC) quer instituir aqui.

 

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Domingo, 4 de Maio de 2008
Erros teóricos em "A Arte de Pensar, Filosofia 11º ano" (Crítica de Manuais Escolares -XXVII)

O manual português " A arte de pensar" para o 11º ano de Filosofia, da Didáctica Editora,  tem os seus méritos e deméritos. Entre estes, avulta uma característica ideológica que percorre todo o manual: o seu antimarxismo e a censura que objectivamente faz sobre as filosofias de esquerda (marxismo, anarquismo, internacional situacionismo, parte do surrealismo, grande parte do ecologismo, etc) e as críticas destas à sociedade capitalista, ao conceito e ao ritmo de desenvolvimento tecnocrático-industrial e à ciência como expressão ideológica e política das classes dominantes.

Encontra-se algum texto de Marx, neste manual, que contenha a crítica à alienação política, económica, social e cultural dos trabalhadores sob a dominação capitalista e pré-capitalista? Encontra-se algum texto de Paul Feyerabend criticando a medicina alopática (química) erigida em "verdade única" no sistema de saúde, a arrogância dos físicos galardoados com o Nobel ao recusar discutir a influência possível dos astros na vida humana com os defensores da Astrologia?

Há milhares de textos excelentes para despertar a verve filosófica dos alunos na área da crítica da ciência, da ideologia dominante e do modelo social vigente- de Guy Debord, de Marx e Engels, de Paul Feyereband, de Michael Foucault, de Jean Baudrillard, etc- dos quais nem um só é citado pela "Arte de Pensar". Politicamente, este manual convém ao CDS, ao PSD e à ala direita do PS - e não se pense que estamos a exagerar, porque a política está subjacente aos programas de filosofia aprovados pelo ministério, aos manuais e seus autores. Só quem fôr ingénuo atendo-se ao lema de que "filosofia não tem a ver com política" discordará de nós.

 A  filosofia não serve essencialmente para transmitir a lógica proposicional que, por si mesma, é incapaz de ensinar a pensar correctamente. Serve para pensar em todos os domínios e ajudar a transformar o mundo ou, pelo menos, o indivíduo.

UMA VISÃO INCORRECTA DO QUE É O PRAGMATISMO

Um exemplo de confusão neste manual é o conceito que têm de pragmatismo e a crítica a esta teoria:

«Críticas à teoria pragmatista

1. Verdade e utilidade nem sempre se conjugam. Há acções baseadas em crenças verdadeiras que são manifestamente prejudiciais e acções baseadas em crenças falsas que, por acaso ou não, proporcionam resultados desejáveis. Além disso, do facto de ser frequentemente útil adoptar ideias verdadeiras, não se segue que elas sejam verdadeiras por serem úteis. Pelo contrário, parece que só podem ser úteis precisamente por serem verdadeiras.» (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, Didáctica Editora, pag 266; o bold é nosso).

Está presente aqui uma deturpação do conceito de pragmatismo, reduzindo-o à identidade verdade-utilidade. Ora para o pragmatismo, a verdade não engloba apenas utilidade empíricamente provada mas também a inutilidade empiricamente comprovada. Exemplo: muitos pragmatistas nunca concordaram com a "utilidade" definida pelo governo de Truman, dos EUA, de lançar duas bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasáqui, em 6 e 9 de Agosto de 1945; no entanto, aceitaram como verdadeiros esses factos, não só inúteis como terrivelmente nefastos para o povo japonês e a humanidade em geral.

Nunca os pragmatistas afirmaram que as ideias úteis se tornam ou são necessariamente verdadeiras. Se assim fosse, a metafísica religiosa, útil para a tranquilidade de milhões de pessoas, seria verdadeira, o que William James negou, colocando-a sob a cortina de nevoeiro do cepticismo.

O manual "A arte de pensar" obscurece ou ignora a faceta empírica do pragmatismo, destacando a faceta utilitarista ( que não é o mesmo que a empírica). Não compreendeu, pois, o que é o pragmatismo.

William James escreveu:

«El pragmatismo representa una actitud perfectamente familiar en filosofía, la actitud empírica; pero la representa, a mi parecer, de un modo más radical y en una forma menos objetable. (...) Se aleja de abstracciones e insuficiencias, de soluciones verbales, de malas razones a priori, de principios inmutables, de sistemas cerrados y pretendidos "absolutos" y "orígenes". Se vuelve hacia lo concreto y adecuado, hacia los hechos, hacia la acción y el poder. Esto significa el predominio del temperamento empirista y el abandono de la actitud racionalista. Significa el aire libre y las posibilidades de la Naturaleza contra los dogmas, lo artificial y la pretensión de una finalidad en la verad.» (William James, Pragmatismo, Folio, pag 49).

Não há aqui nenhuma identificação entre utilidade e verdade, tese não pragmatista contra a qual a "Arte de Pensar" esgrime lanças.

PRAGMATISMO CONDUZ AO RELATIVISMO (ANEXO A CEPTICISMO)?

E prossegue o manual "A arte de pensar":

«2. Conduz ao relativismo. O pragmatismo implica o relativismo, na medida em que, para algumas pessoas, pode ser útil acreditar numa coisa e, para outras pessoas, pode não ser útil acreditar nessa mesma coisa. Nesse caso, o que é verdade para uns pode ser falso para outros, o que não é fácil de explicar.» (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, Didáctica Editora, pag 266; o bold é nosso).

O pragmatismo implica o relativismo? Não necessariamente. O método pragmatista, isto é, da análise do mundo empírico e definição de soluções práticas, é compatível com o absolutismo de valores. Oliveira Salazar, por exemplo, era um político pragmático, movia o xadrez da sua política sem metafísica - é duvidoso que acreditasse em Deus, apesar do seu passado como dirigente do Centro Académico de Democracia-Cristã em Coimbra, na 1ª República Portuguesa - mas tinha valores absolutistas (para ele, «o bem corporiza-se nos regimes monárquicos ditatoriais, ou republicanos fascistas e o mal encarna nos regimes de democracia liberal ou de ditadura comunista ou anarquista e nos antitradicionalistas em geral»).

Seria, aliás, de precisar o que os autores de "A arte de Pensar" entendem por relativismo. E, já o sabemos de "A arte de pensar, 10º ano de Filosofia" , concebem relativismo como a teoria que sustenta que, uma vez que há diferentes posições sobre a mesma matéria (casamento, divórcio, religião, política, etc), todas valem o mesmo. Hilary Putnam, Richard Rorty e outros "notáveis filósofos" caem no poço do mesmo erro: definem relativismo desembocando em cepticismo... Ora há um relativismo em que todas as teorias têm diferentes valores entre si, o que os autores de "A arte de pensar" ignoram.

A frase: «o que é verdade para uns pode não ser verdade para outros, o que não é fácil de explicar" é de uma candura pré-filosófica tal que faz sorrir. Qualquer pessoa intui que os homens estão envolvidos em redes sociais que os opõem uns aos outros e que a "verdade dos "vencedores não é a "verdade dos vencidos"...

O PRAGMATISMO NÃO É UMA TEORIA SOBRE A NATUREZA DA VERDADE?

Terceira frágil crítica de "A arte de pensar" ao pragmatismo:

«3. Não é uma teoria àcerca da natureza da verdade. A teoria pragmatista não chega realmente a explicar-nos o que é a verdade, limitando-se apenas a indicar o que é verdadeiro. Por exemplo, apercebemo-nos que estamos perto de uma escola quando vemos crianças com pastas e mochilas, mas isso não quer dizer que "escola" signifique "local em que se podem ver crianças com pastas e mochilas». Ora, indicar o que é verdadeiro, sem nos esclarecer acerca da natureza da verdade é confundir o modo de descoberta da verdade - domínio da epistemologia - com a verdade - domínio da metafísica.(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, Didáctica Editora, pag 266; o bold é nosso).

É um erro dizer que o pragmatismo não é uma teoria sobre a verdade. É, de facto, uma teoria sobre o lado empírico da verdade, da verdade para nós, da manifestação sensorial e  observável desta. O pragmatismo opta pela «verdade do lado de cá, visível» em detrimento da «verdade do lado de lá, invisível».

Ademais, a epistemologia não é meramente um modo de descoberta da verdade - é a verdade nos quadros da ciência - e tão pouco a verdade (em geral) é domínio da metafísica, mas sim a verdade última, profunda.

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