Nicolai Hartmann, (Riga, Letónia, 20 de fevereiro de 1882 - Göttingen, 9 de outubro de 1950) destacado fenomenólogo, escreveu:
«O que é a priori não pode ser transcendente nem incognoscível, posto que pela sua própria essência, pertence ao conhecimento como tal. Mas esquece-se que há aspetos no ser nunca podem pertencer ao conhecimento como tal; não podem, portanto, ser nem a priori nem a posteriori. A distinção entre o a priori e o a posteriori é uma distinção gnosiológica, não ontológica. Ela não tem nada a fazer com as categorias como tais. Só intervém quando se trata do conhecimento das categorias. Dizer que a causalidade é a priori é mais ou menos tão sensato como dizer que a justiça é azul. Mas ao contrário podemos muito bem dizer que o conhecimento da causalidade é a priori.»
(Nicolai Hartmann, Les principes d´une méthaphisique de la connaissance, Tome I, pag 342 , Aubier, Editions Montaigne, Paris, 1945; o negrito é posto por mim).
Os termos a priori ( termo latino : partindo daquilo que vem antes) e a posteriori (termo latino: o que vem depois de...; o que vem depois da experiência) podem aplicar-se ao ser (ontologia) e não apenas ao conhecer (gnosiologia).
A causalidade é a priori na natureza biofísica, uma região ontológica: existimos, somos o efeito de causas psicobiológicas e sociais. Cada um de nós é a posteriori em relação aos antepassados e à bionatureza anterior ao nosso nascimento.
Na «Metafísica», Aristóteles fala da anterioridade na ordem do ser das qualidades simples em relação aos seres compostos: a brancura é, na ordem do ser, anterior ao campo branco e ao lenço branco ou ao cavalo branco. Ora um dos ingredientes da causalidade é a anterioridade da causa em relação ao efeito. O outro é o da eficiência ou acção da causa no sentido de produzir aquele efeito.
Na teologia, Deus ou deuses é a priori em relação à generalidade dos entes do mundo (pessoas humanas, animais, árvores, montanhas, céu) e estes são a posteriori em relação a Deus.
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Apesar do seu brilhantismo no raciocínio, Kant desceu ao magma de alguma confusão de ideias no que respeita à definição de fenómeno e de intuição. O filósofo alemão definiu assim fenómeno:
«O objecto indeterminado de uma intuição empírica chama-se fenómeno». (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 61).
É óbvio que Kant distingue entre fenómeno - por exemplo, cadeira - e intuição do fenómeno - ver ou tocar a cadeira, neste exemplo. Mas o que constitui o fenómeno? As intuições empíricas e, essencialmente, as intuições puras: a figura e a extensão. E alguns conceitos a priori. O fenómeno, como por exemplo, bicicleta, cão ou nuvem nada é em si mesmo: é apenas uma figura sem cor, nem som, nem cheiro, nem matéria, inscrita num espaço que é irreal, intuição a priori. Kant é um idealista ontológico: os objectos materiais não existem fora do espírito humano, são complexos de sensações e intuições tridimensionais. Não há, por exemplo, cavalo-númeno e cavalo-fenómeno, como pensa a generalidade dos estudiosos de Kant. O cavalo é apenas representação de algo incognoscível. Kant escreveu:
«Assim, quando separo da representação de um corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força, divisibilidade, etc., e igualmente o que pertence à sensibilidade como seja a impenetrabilidade, dureza, cor, etc, algo me resta ainda dessa intuição empírica: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuiçao pura, que se verifica a priori no espírito, mesmo independente de um objecto real dos sentidos ou da sensação, como simples forma da sensibilidade.»(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 61).
Ora este texto desmonta o objecto real dos sentidos ou fenómeno mostrando que não passa de um complexo de intuições formais (figura, espaço) e de conceitos A cor, a dureza, de uma bicicleta não pertencem à bicicleta: são sensações, intuições empíricas, modos ilusórios de percepcionar esse veículo que é fenómeno. O carácter unitário da biclicleta como aglomerado de peças metálicas é um conceito do entendimento, é a categoria de substância e acidente, não está na bicicleta. E o problema coloca-se: ao vermos uma bicicleta que está fora do nosso corpo físico mas dentro da nossa mente que o circunda e constitui o espaço, estamos a ter um conjunto de intuição empíricas e sensações (visão da cor, sensação da dureza do metal ou do selim, etc) de um fenómeno que se reduz a intuições empíricas geométricas (as linhas da bicicleta), a uma matéria indeterminada (algo que não tem cor, nem peso, nem cheiro, nem ductilidade) e a conceitos (substância única e divisível em partes).
Assim, a noção de intuição empirica funciona ambiguamente em Kant: é a matéria do fenómeno («Dou o nome de matéria ao que no fenómeno corresponde à sensação» diz Kant; mas uma matéria absolutamente abstracta, como a hylé de Aristóteles, pois a cor, o cheiro, o som, a sensação de dureza são meras sensações, aparência), o objectivamente «real para nós» e é a percepção da matéria desse fenómeno, percepção esta que já inclui cor, som, cheiro, grau de dureza, etc. Note-se ainda que, seguindo a teoria das qualidades primárias e secundárias de Descartes, Kant estabelece duas modalidades de intuição empírica enquanto percepção, distinguindo sensação (subjectiva, ilusória) de intuição (objectiva):
«O sabor agradável de um vinho não pertence às propriedades objectivas desse vinho, portanto de um objecto mesmo considerado como fenómeno, mas à natureza especial do sentido do sujeito que o saboreia. As cores não são propriedade dos corpos, à intuição dos quais se reportam, mas simplesmente modificações do sentido da vista que é afectada pela luz de uma certa maneira. O espaço pelo contrário, como condição de objectos exteriores, pertence necessariamente ao fenómeno ou à intuição do fenómeno». (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 69, nota de rodapé; o destaque a negrito é de minha autoria).
Neste caso, o sabor e a cor de um vinho seriam a intuição subjectiva e o vinho a intuição objectiva e o fenómeno. Mas o que é o vinho sem cor, nem sabor?
Em suma, a contradição de Kant reside no facto de expulsar do fenómeno para o campo das sensações (intuições do fenómeno) e para o campo dos conceitos aquilo que realmente o caracteriza: a cor, o sabor, a dureza, a matéria concreta de que é feito (no caso de árvore: madeira e folhagem), tornando o fenómeno uma figura fantasmagórica, um esqueleto sem carne, pura forma num dado tempo.
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Diversas imprecisões pautam o manual do professor da Areal Editores «Ser no mundo, filosofia 11º ano» de André Leonor e Filipe Ribeiro, com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, sem embargo de possuir textos de boa qualidade.
OS EMPIRISTAS DIZEM QUE A ÚNICA FONTE DE CONHECIMENTO É OS SENTIDOS?
Diz o manual da Areal:
« Segundo os empiristas, a única fonte do conhecimento são os sentidos. O conhecimento não pode resultar da razão, dado que esta não possui qualquer informação. » (André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág. 163; o destaque a negrito é de minha autoria).
Isto não é, rigorosamente, verdade. Para alguns empiristas, os radicalmente sensualistas ou sensacionistas, anti-intelectualistas, os sentidos são a única fonte de conhecimento. Mas para outros, como David Hume, os sentidos são a principal mas não exclusiva fonte de conhecimento: a razão e a imaginação são também fontes (imateriais) do conhecimento.
David Hume escreveu:
«Há sete espécies de diferentes de relação filosófica: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. Podem dividir-se estas relações em duas classes: as que dependem inteiramente das ideias que comparamos entre si e as que podem variar sem qualquer mudança de ideias. É da ideia de triângulo que deduzimos a relação de igualdade que existe entre os seus três ângulos e dois rectos; e esta relação é invariável enquanto a nossa ideia permanecer a mesma. As relações de contiguidade e distância entre dois objectos pelo contrário podem variar apenas por uma alteração de lugar, sem qualquer mudança nos objectos ou nas ideias; e o lugar depende de inúmeras circunstâncias diversas, as quais a mente não pode prever. O mesmo se pasa com a identidade e a causação.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 103, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrito é colocada por mim).
Afinal estas relações filosóficas vêm dos sentidos? Ou são construções da razão e da imaginação aplicadas aos dados dos sentidos e simultâneas a estes? São construções da razão, a posteriori. Não se pode limitar o conhecimento ao dado empírico, segundo Hume e outros empiristas.
O DOGMATISMO SÓ DEFENDE QUE O CONHECIMENTO É POSSÍVEL?
Lê-se no manual:
«Entende-se por dogmatismo a posição que defende que o conhecimento é possível e que a defesa da sua impossibilidade não faz sentido. Para o dogmático, é evidente que há contacto entre sujeito e objecto e que o conhecimento que temos da realidade corresponde à verdade. Por conseguinte, é também evidente a possibilidade de apreensão da realidade por parte do ser humano. Segundo os defensores do dogmatismo, essa confiança resulta da capacidade racional do ser humano.»(André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág 154).
Há uma flutuação de imprecisão nesta definição de dogmatismo. Este é a teoria das certezas, do conhecimento real, efectivo e não apenas da possibilidade do conhecimento. O probabilismo, uma síntese entre cepticismo e dogmatismo, estabelece que o conhecimento é provável, possível, - e nesse ponto é dogmatismo - mas recusa-se a determiná-lo em concreto - e aqui é cepticismo. Portanto, o probabilismo defende que o conhecimento é possível tal como o dogmatismo. Não é a possibilidade que os distingue já que é comum a ambos.
A frase «Segundo os defensores do dogmatismo, essa confiança resulta da capacidade racional do ser humano.» está parcialmente errada. Há empiristas, dogmáticos, que sustentam que essa confiança na verdade do conhecimento resulta da capacidade perceptiva empírica, e não da razão...
SÓ HÁ CONHECIMENTO VERDADEIRO? NÃO HÁ CONHECIMENTO VEROSÍMIL?
Vejamos agora uma tese da filosofia analítica que o manual defende:
«1- Só existe conhecimento se ele for verdadeiro.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág 147).
Há conhecimento da Bíblia e da ideia de Paraíso nela contida. Ora, o Paraíso é verdadeiro? É verosímil: pode existir, de facto, embora não possamos jurar que existe. Há conhecimento mentalmente verdadeiro e potencialmente falso na realidade extra-mental. A este conhecimento chama-se verosímil, provável. A teoria da Terra Oca é um conhecimento especulativo, verosímil sobre a existência do reino de Agartha, onde viveria uma civilização de seres humanos, no interior do núcleo do planeta Terra. Não é um conjunto de proposições sem sentido, como diz o positivismo lógico.
Os autores do manual tomam a posição do «ou é preto ou é branco, não há tons intermédios, ou o conhecimento é verdadeiro ou não é conhecimento». É uma falácia de falsa dicotomia. Existe o conhecimento verosímil.
INDISTINÇÃO ENTRE DOGMATISMO INGÉNUO E DOGMATISMO CRÍTICO
Sobre as duas posições extremas quanto à possibilidade de conhecimento lê-se mo manual:
«Originariamente, podem ser identificadas duas posições extremas quanto à possibilidade do conhecimento: dogmatismo ingénuo e cepticismo radical.
Os defensores do dogmatismo ingénuo sustentam que o ser humano é capaz de conhecer. Para os defensores do cepticismo radical o conhecimento não é possível. Estas duas posições radicais contrastam com outras posturas mais moderadas. Alguns pensadores acreditam que é possível conhecer uma parte da realidade (por exemplo, os defensores do dogmatismo metafísico) outros acreditam que o conhecimento do mundo é limitado mas que a verdade existe, apesar de não nos ser acessível (posição defendida, por exemplo, pelo cepticismo moderado).»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág 167).
Crítica minha: dogmatismo ingénuo está incompletamente definido ao dizer-se que «os defensores do dogmatismo ingénuo sustentam que o ser humano é capaz de conhecer» quando a definição correcta é: «o dogmatismo ingénuo sustenta que o ser humano conhece a realidade sem duvidar das aparências». O manual não alude a dogmatismo crítico, que é o contraponto do dogmatismo ingénuo, mas apresenta a noção vaga de dogmatismo metafísico como sendo esse contraponto. Ora o dogmatismo ingénuo inclui, em regra, o dogmatismo metafísico (Exemplo: creio no Paraíso, no Inferno e creio que a erva é verde e o céu é azul e que o Sol e a Lua se deslocam no céu ao longo do dia») ainda que exista dogmatismo metafísico crítico. Ingénuo não se opõe a metafísico mas sim a não ingénuo, crítico.
AUSÊNCIA DE DEFINIÇÃO CLARA DO BINÓMIO IDEALISMO-REALISMO
Os tratados ou dicionários de filosofia, nas suas classificações das correntes gnosiológicas, fazem sempre referência,ao binómio realismo-idealismo. Este manual «Ser no mundo, 11º ano» quase omite pura e simplesmente o tema, apesar de ter uma ou outra referência transversal:
«Platão representa a forma mais antiga de racionalismo, ainda que normalmente seja conhecido como idealista devido à sua teoria das ideias universais.» (André Leonor, Filipe Ribeiro, ibid pág. 161).
Há citações de autores para definir realismo como a seguinte, que aponta o «realismo das ideias» em Platão:
«Herdeiro desta tradição, a primeira concepção de um Russel segundo a qual os objectos e as relações matemáticas têm uma existência real e separada do espírito, é também um realismo (...) Através do realismo exprime-se a ideia segundo a qual o espírito não é Todo-Poderoso, que não pode por si próprio atingir ou conduzir ao verdadeiro, que a verdade se impõe sem que possamos dispor dela...» (VVAA, Dicionário Prático de Filosofia, Terramar, pp. 328-329, citado in «Ser no Mundo, Filosofia 11º», Areal Editores, pág 256).
Não se fornece, no entanto, a definição, ou as diversas definições, de idealismo. Isto é uma prova de debilidade teórica de autores e revisores do manual, de não dominarem a ontognosiologia, em particular a distinção entre o idealismo -nas suas várias acepções - e o realismo - nas suas várias acepções. Descartes é idealista ou realista? E David Hume? E Kant? Apesar de abordarem a doutrina destes filósofos em alguns aspectos, os autores do manual nada dizem sobre o assunto. Presume-se que não sabem classificar como realismo ou idealismo estas doutrinas e os seus diferentes degraus.
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No seu livro « 7 ideias filosóficas que toda a gente deveria conhecer», Desidério Murcho (18 de Maio de 1965; Brasil?) professor de filosofia na universidade de Ouro Preto e autor de manuais escolares, escreve:
« Hume não distingue, nos seus textos, entre três categorias filosóficas importantes: o necessário, o a priori e o analítico. A tudo isto chama Hume simplesmente "relações de ideias", que contrastam com as questões de facto, onde também não distingue o contingente, o a posteriori e o sintético. É uma questão de facto que está agora a chover, por exemplo, mas basta relacionar ideias, pensa Hume, para saber que cinco é um número ímpar.» ( Desidério Murcho, 7 ideias filosóficas que toda a gente deveria conhecer, Bizâncio, pag. 84; a letra negrita é posta por mim).
Onde estão as citações de Hume que comprovem estas asserções? Não existem. Desidério Murcho equivoca-se. Dá de Hume, superior em inteligência e erudição a Murcho, uma imagem caricatural. Comecemos por constatar que David Hume distingue perfeitamente entre a contingência - que pode englobar a contiguidade e a sucessão - e a necessidade ou determinismo, isto é, a conjunção constante, a conexão infalível entre as mesmas causas e os mesmos efeitos, nas mesmas circunstâncias:
«Assim, ao seguir o nosso caminho, involuntariamente descobrimos uma nova relação entre a causa e o efeito, quando menos o esperávamos e quando estávamos inteiramente concentrados em outro assunto. Essa relação é a sua conjunção constante. A contiguidade e a sucessão não bastam para nos fazer afirmar que dois objetos são causa e efeito, a não ser que constatemos que estas duas relações se mantêm em muitos casos. Podemos ver a vantagem que há agora em abandonar o exame direto desta relação para descobrir a natureza daquela conexão necessária que constitui parte tão essencial dela.» (David Hume, Tratado da natureza humana, pag 123, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é posto por mim).
Alguém pode negar que, no texto acima, o autor distingue entre o contingente, que não permite determinar invariavelmente a relação de causa-efeito, e o necessário, que vertebra esta relação?
HUME DISTINGUIU ENTRE A POSTERIORI (ACONTECIMENTO DA EXPERIÊNCIA OU DERIVADO DA EXPERIÊNCIA) E CONTINGENTE, AO CONTRÁRIO DO QUE DIZ MURCHO
Hume escreveu ainda:
«É preciso notar agora que embora o acaso e a causação sejam diretamente contrários, é-nos contudo impossível conceber esta combinação de chances, que é necessária para tornar uma possibilidade superior a outra, sem supor uma mistura de causas entre as chances e uma conjugação de necessidade nalguns pontos com indiferença total noutros.» (David Hume, ibid, pag 164; o negrito é posto por mim).
Nesta citação acima, Hume distingue conceptualmente o acaso, isto é, a contingência, da causação, isto é, o determinismo ou necessidade, afirmando que são diretamente contrários.
Contrariamente ao que afirma DM, Hume distinguiu entre a posteriori, isto é, acontecimento da experiência ou derivado da experiência, e contingente, isto é, sujeito à incerteza, dependente de uma certa margem de acaso:
« O vulgo, que avalia as coisas pelas primeiras aparências, atribui a incerteza dos acontecimentos a uma incerteza de tal ordem nas causas que muitas vezes as priva da sua influência habitual, mesmo que na sua atuação elas não encontrem obstáculo ou impedimento. Mas os filósofos, observando que quase todas as partes da natureza contêm uma imensa variedade de molas e princípios, que estão ocultos em razão da sua pequenez ou afastamento, descobrem que é pelo menos possível que a contrariedade dos acontecimentos provenha não de uma contingência na causa, mas sim da atuação secreta de causas contrárias. Esta possibilidade transforma-se em certeza por uma observação ulterior, quando eles notam que, mediante rigorosa investigação, uma contrariedade de efeitos revela sempre contrariedade de causas, e provém de que elas se paralisam e opõem mutuamente.» (David Hume, ibid, pag 171; o negrito é posto por mim).
Neste excerto acima, Hume afirma que os acontecimentos ou factos a posteriori, empíricos, são frequentemente contingentes aos olhos do vulgo, mas não o são aos olhos dos filósofos. Isto significa distinguir o contingente do a posteriori, substituindo o primeiro pela categoria do necessário no reino a posteriori dos factos.
Quanto á afirmação de DM de que «Hume não distinguiu sintético de contingente e a posteriori», resta perguntar: que se entende por sintético? Será obrigatório que todos os filósofos definam sintético como o fazia Kant dizendo que juízo sintético é aquele em que o predicado acrescenta algo novo ao sujeito, como por exemplo, o juízo «A soma dos três ângulos de um triângulo é 180º graus» ou o juízo «A maçã é vermelha»?
Não, não é obrigatório. Portanto, David Hume fica livre do peso dessa crítica de Murcho. Sintético pode definir-se de outra maneira, diferente de Kant: é um resumo holístico de um sistema ou ente de partes múltiplas; é um resumo unitário e superador de dois momentos contrários entre si, a tese e a antítese (definição de Hegel).
HUME DISTINGUIU A PRIORI DE «NECESSÁRIO», CONTRA O QUE AFIRMA MURCHO
É também falsa a afirmação de Murcho de que Hume não distinguiu o a priori de necessário. Hume escreveu:
« Não há fundamento algum para uma conclusão a priori relativamente às operações ou à duração de qualquer objeto de que a mente humana possa formar uma concepção. De qualquer objeto se pode imaginar que se torne inteiramente inativo ou é aniquilado num instante; e é um princípio evidente que tudo o que podemos imaginar é possível.» (David Hume, ibid, pag 298).
Hume afirma que não há conhecimento a priori...A priori é uma região do conhecimento, fora do mundo empírico, região que Hume nega formalmente, e necessário é um modo do ser e do conhecer, fora ou dentro do mundo empírico. São distintos entre si. Hume nega o raciocínio necessário:
«Segundo o meu sistema, todos os raciocínios são apenas efeitos do hábito, e o hábito só exerce influência enquanto aviva a imaginação e nos faz conceber fortemente um objeto. » (David Hume, Tratado da natureza humana, pag 189-190, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é posto por mim).
Mas existe a causação como uma das sete relações filosóficas que são o equivalente às categorias de Kant, com a diferença marcante de que aquelas não existem a priori como estas últimas. A causação, segundo Hume, não é a priori mas derivada da experiência:
«A ideia de causação deve pois originar-se de qualquer relação entre os objetos, e é esta relação que agora deveremos esforçar-nos por descobrir. Em primeiro lugar, verifico que todos os objetos que consideramos causas ou efeitos são contíguos, e que nada pode agir num tempo e lugar distantes, por pouco que seja, do tempo e lugar da sua própria existência. (...) Podemos, pois, considerar a relação de contiguidade essencial à de causação. »(David Hume, Tratado da natureza humana, pag 110, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é posto por mim).
A imaginação é um poder à priori que formula habitualmente ideias a posteriori, como casa, nuvem ou cavalo, e ideias aparentemente a priori como, por exemplo, Deus, pois nunca ninguém viu Deus, mas este é uma ideia composta de várias ideias simples (pai, juíz, imperador, sábio, etc). Creio que ,segundo Hume, o a priori se reduz às faculdades (imaginação, memória) em repouso mas não no seu atuar.
Sendo a causação, entendida como conexão infalível entre causa A e efeito B, o mesmo que necessidade, esta é uma relação filosófica a posteriori, extraída pela imaginação da experiência. Logo, contra o que diz Murcho, necessidade e a priori são coisas distintas no sistema empirista de Hume.
Parece, pois, que Murcho não conhece com rigor a teoria de David Hume, não capta o essencial do pensamento deste, talvez demasiado complexo para o simplismo do parafilósofo luso-brasileiro.
Quanto à afirmação de Murcho de que Hume «não distinguiu necessário e a priori de analítico», cabe perguntar: o que se entende por analítico? Estaremos obrigados a aceitar como único significado do termo analítico a definição kantiana de juízo analítico como aquele em que o predicado nada acrescenta de novo ao sujeito como, por exemplo, «a esfera é redonda»?
Não, não estamos. Por isso, Hume fica livre da acusação de Murcho. Analítico pode significar: que decompõe em elementos um todo e aumenta o conhecimento. Isto é diferente da noção kantiana.
KANT NÃO DISTINGUIU COM RIGOR O NECESSÁRIO DO A PRIORI?
Desidério Murcho escreve sobre Kant:
«Kant introduziu uma distinção entre o a priori e o necessário, por um lado, e o analítico, por outro. Apesar de continuar a não distinguir com rigor o a priori do necessário, como fazemos hoje, distinguiu cuidadosamente o analítico deste par conceptual.» (Desidério Murcho, ibid, pag 84).
Não tem razão DM ao apontar a Kant o "não distinguir com rigor a priori de necessário". A tábua das categorias, na ontognosiologia de Kant, é uma estrutura do entendimento a priori, anterior à experiência e fora desta, que inclui doze categorias (a priori) uma das quais é a necessidade-contingência. Então, as restantes categorias ou conceitos puros - Unidade, pluralidade, totalidade; realidade, negação, limitação; inerência e subsistência, causalidade e dependência, comunidade; possibilidade-impossibilidade, existência-não existência - são todas a priori. ou puras.
«Esta é pois a lista de todos os conceitos, originariamente puros, da síntese que o entendimento a priori contém em si, e apenas graças aos quais é um entendimento puro; só mediante eles pode compreender algo no diverso da intuição, isto é, pode pensar um objeto dela.» (Kant, Crítica da Razão Pura, página 111, Fundação Calouste Gulbenkian).
Há alguma falta de rigor nesta distinção entre o a priori, que engloba o conjunto das doze categorias, e a necessidade que integra uma dessas categorias? Não há.
Kant apresenta o a priori como o não empírico, isto é, o transcendental. Por exemplo, no seguinte excerto:
«A qualidade da sensação é sempre meramente empírica e não pode, de modo algum, ser representada a priori (por exemplo, as cores, o sabor, etc). (...)
«É digno de nota que, nas grandezas em geral, só possamos conhecer a priori uma única qualidade, que é a continuidade, enquanto em toda a qualidade (no real dos fenómenos) nada mais podemos conhecer a priori a não ser a sua grandeza intensiva, o ter um grau; tudo o mais é da alçada da experiência.» (Kant, Crítica da Razão Pura, páginas 207-208, Fundação Calouste Gulbenkian).
E sobre a necessidade diz:
«O esquema da necessidade é a existência de um objeto em todo o tempo.» (Kant, ibid, pag 186).
«Antes de mais, cumpre observar que as verdadeiras proposições matemáticas são sempre juízos a priori e não empíricos, porque comportam a necessidade, que não se pode extrair da experiência.» (Kant, ibid, pag 46).
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Gilles Deleuze é mais um dos filósofos que não compreendeu o núcleo essencial da doutrina de Kant. Escreveu:
«A ideia fundamental de que Kant denomina a sua "revolução coperniciana" consiste no seguinte: substituir a ideia de uma harmonia entre o sujeito e o objecto (acordo final) pelo princípio de uma submissão necessária do objecto ao sujeito (...)
«Seria legítimo esperar que o problema de uma submissão do objecto pudesse ser facilmente resolvido do ponto de vista de um idealismo subjectivo. Mas nenhuma solução é mais estranha ao kantismo. O realismo empírico é uma constante da filosofia crítica. Os fenómenos não são aparências, mas também não são produtos da nossa actividade. Afectam-nos na medida em que somos sujeitos passivos e receptivos. Podem ser-nos submetidos; precisamente porque não se trata de coisas em si. Mas como o serão, sabendo-se que não somos nós que os produzimos?» (Gilles Deleuze, A filosofia crítica de Kant, pag 23, Edições 70; o negrito é de minha autoria).
O equívoco de Deleuze reside em dizer que os fenómenos «afectam-nos na medida em que somos sujeitos passivos». É um erro. Quem nos afecta não são os fenómenos, mas os númenos, entes metafísicos. É certo que Kant denomina a sensibilidade de faculdade receptiva mas ao mesmo tempo mostra, sem ser muito claro, que esta cria o fenómeno, ou seja, é activa:
«Dou o nome de matéria ao que no fenómeno corresponde à sensação; ao que, porém possibilita que o diverso do fenómeno possa ser ordenado segundo determinadas relações dou o nome de forma do fenómeno. Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se podem ordenar e adquirir determinada forma não pode, por sua vez, ser sensação, segue-se que se a matéria de todos os fenómenos nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espírito, pronta a aplicar-se a ela e portanto tem que poder ser considerada independentemente de qualquer sensação.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 62, Fundação Calouste Gulbenkian).
Conforme se depreende desta citação a forma do fenómeno - por exemplo: maçã e cadeira são fenómenos - está a priori no espírito, isto é, na sensibilidade. Não está, pois no próprio fenómeno como coisa fora de nós, como sustenta Deleuze ao dizer «os fenómenos «também não são produtos da nossa actividade.». Ora, a forma é aplicada para criar o fenómeno? Sim. Quem aplica a forma? O espírito do sujeito, que se compõe de sensibilidade, entendimento e razão.
Por outro lado, a matéria do fenómeno é dada - eu diria: é forjada - a posteriori. Há assim um construtivismo kantiano: a forma a priori junta-se à matéria a posteriori para gerar o fenómeno espacial ou objecto exterior (a árvore, a nuvem, a mão, etc). E isto passa-se no interior da sensibilidade de cada um que inclui o espaço exterior ao corpo (Kant é idealista).
«...Os chamados objectos exteriores são apenas simples representações da nossa sensibilidade, cuja forma é o espaço, mas cujo verdadeiro correlato, isto é, a coisa em si, não é nem pode ser conhecida por seu intermédio; de resto, jamais se pergunta por ela na experiência.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 70, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é colocado por mim).
A matéria dos fenómemos é a sensação: eles não são senão projecções sensoriais fora do nosso corpo mas dentro do nosso espírito, essa imensa abóbada cósmica que envolve, concentricamente, o nosso corpo. Os objectos exteriores são apenas representações, conteúdos da consciência fora do corpo físico do eu perceptivo: é o mesmo que diz Berkeley, por outras palavras - ainda que Kant se procure demarcar falaciosamente daquele filósofo escocês. Os fenómenos são criações da sensibilidade e do entendimento e situam-se dentro da primeira. Deleuze afirma sobre os fenómenos que «não somos nós que os produzimos». É falso. Nós criamos os fenómenos através das formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e das categorias do entendimento. Deleuze nem sequer percebe isso.
Alguém, no mundo universitário, apontou esta errónea interpretação de Deleuze sobre a doutrina de Kant? Não. Isto significa que o universo dos catedráticos de filosofia partilha a mesma superficialidade, a mesma ausência de profundidade de pensamento sobre a ontolognosiologia de Kant. Sejam Popper, Deleuze, Habermas, Blackburn, Nagel, Sartre ou até o excepcional Heidegger, todos conceptualizam, mais ou menos confusamente, a génese e a natureza do fenómeno em Kant. Há, pois, que romper com a tradição contemporânea das interpretações esquivas e equívocas de Kant. É o que fazemos.
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