Contrariamente à nossa posição habitual de não fazer perguntas de escolha múltipla nos testes de filosofia a que se responde com uma simples cruz, construímos, por razões de disciplina comunitária uma matriz comum solicitada pela Inspeção Geral de Ensino, um teste em que entra este tipo de perguntas.
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA B
19 de Maio de 2017 Professor: Francisco Queiroz
GRUPO I (10 pontos x 5, 50 PONTOS)
Em cada questão, indique a única resposta correcta de entre 4 hipóteses
1) O idealismo gnoseológico ou ontognoseológico é a corrente que sustenta que…
A. A matéria física está dentro do universo e fora da mente humana
B A ideia e a matéria são uma e a mesma coisa.
C- A matéria física está fora da nossa mente e do nosso corpo.
D- A fenomenologia é o mesmo que o pragmatismo.
2) Paul Feyerabend sustentou que:
A) A metafísica deve ser abolida.
B) As ciências universitárias estão livres de ideologia e de interesses de lobbies.
C)Não se devem experimentar métodos fora do que a universidade permite.
D) Devem-se improvisar métodos ad hoc.
3) No método hipotético-dedutivo
A) Rejeita-se a indução amplificante
B) Aceita-se a indução amplificante
C) Não se usam fórmulas matemáticas
D) Não se recorre à experiência, à observação directa de factos..
4)O idealismo não solipsista objectivo sustenta que
A) A matéria é real em si mesma
B) A matéria não é real em si mesma e cada um a inventa ou vê a seu modo pessoal.
C) A matéria não é real em si mesma e todos a inventam ou veem de igual modo.
D) O cepticismo é a única teoria válida.
5)O princípio da falsificabilidade em Popper:
A) Impede que se escolha qualquer teoria como científica
B) Não impede que se escolha uma teoria em cada ciência na condição de ela ser tida como conjectura
C) É a mesma coisa que o princípio da incerteza de Heisenberg
D) Afirma que não há demarcação entre astrologia e astrofísica, valem o mesmo.
GRUPO II (60 +40 pontos)
1). Explique concretamente o seguinte texto:
«Revisibilidade e falsificabilidade na teoria de Popper coadunam-se com as noções de obstáculo epistemológico e ultra-objecto da teoria de Gaston Bachelard. A incomensurabilidade dos paradigmas defendida por Thomas Kuhn não parece concordar com o positivismo lógico».
2)Explique os três estádios da existência segundo Kierkegaard e a afirmação «Deus é, não existe, o homem não é, existe».
GRUPO III (50 pontos)
Explique concretamente o seguinte texto:
«O ser-aí de Heidegger equivale ao ser-para-si de Sartre mas o primeiro transporta o ser ao passo que o ser-para-si carrega o nada. Para Heidegger o cuidado, o porvir e o ser-para-a-morte são traços do ser-aí e o ôntico opõe-se ao ontológico.»
CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 200 PONTOS (20 VALORES)
GRUPO I (50 PONTOS)
1-B)......................................10 PONTOS
2-D).......................................10 PONTOS
3-B).......................................10 PONTOS
4-C)........................................10 PONTOS
5-B).........................................10 PONTOS
GRUPO II (60+ 40 PONTOS)
1) A revisibilidade, isto é, a qualidade inerente às teorias científicas de verem as suas teses alteradas, revistas ou mesmo anuladas de todo, segundo Popper, coaduna-se ou harmoniza-se com a noção de ultra-objecto em Bachelard, que é um objecto empírico-racional, invisível no todo ou em parte, concebido pela razão (exemplo: os átomos, os quarks e leptões; os buracos negros e a matéria escura do cosmos): a razão idealiza o ultra-objecto e revê de tempos a tempos esse conceito. O princípio da falsificabilidade em Popper sustenta que todas as teorias científicas são conjecturas, hipóteses que podem vir a revelar-se falsas e isso liga-se a obstáculo epistemológico que é todo e qualquer entrave ao conhecimento científico (por exemplo: a primeira experiência, algo enganadora; o preconceito; a falta de microscópios, computadores, telescópios e outros aparelhos necessários, etc) e que, por isso, falsifica o conhecimento. (VALE 30 PONTOS). A incomensurabilidade dos paradigmas é a impossibilidade de medir e comparar globalmente dois ou mais paradigmas, de os medir no seu todo. Por exemplo, é incomensurável preferir o heliocentrismo ao geocentrismo e vic-versa. Ora o positivismo lógico, doutrina que sustenta que a verdade se limita aos factos empíricos e suas relações lógico-matemáticas, pondo de parte a metafísica, não defende essa incomensurabilidade: opta pelo paradigma da indução amplificante contra o paradigma conjecturalista anti-indutivo de Karl Popper e Khun...(VALE 30 pontos).
2)Segundo Kierkegaard, filósofo existencialista cristão, há três estádios na existência humana: estético, ético e religioso. No estádio estético, o protótipo é o Don Juan, insaciável conquistador de mulheres que vive apenas o prazer do instante, e sente angústia se está apaixonado por uma mulher e teme não a conquistar. O desespero é posterior à angústia: é a frustração sobre algo que já não tem remédio ou que se esgotou. Ao cabo de conquistar e deixar centenas de mulheres, o Don Juan cai no desespero: afinal nada tem, o prazer efémero esvaiu-se. Dá então o salto ao ético: casa-se. No estado ético, o paradigma é do homem casado, fiel à esposa, cumpridor dos seus deveres familiares e sociais. Este estado relaciona-se com o essencialismo, doutrina que afirma que a essência, o modelo do carácter ou do comportamento vem antes da existência e condiciona esta. A monotonia e a necessidade do eterno faz o homem saltar ao estádio religioso, em que Deus é o valor absoluto, apenas importa salvar a alma e os outros pouco ou nada contam. Abraão estava no estádio religioso, de puro misticismo, quando se dispunha a matar o filho Isaac porque «Deus lhe ordenou fazer isso». O estádio religioso é o do puro existencialismo, doutrina que afirma que a existência vive-se em liberdade e angústia sem fórmulas (essências) definidas, buscando um Deus que não está nas igrejas nem nos ritos oficiais. Neste estádio, o homem casado pode abandonar a mulher e os filhos se «Deus lhe exigir» retirar-se para um mosteiro a meditar ou para uma região subdesenvolvida a auxiliar gente esfomeada. A escolha a cada momento ante a alternativa é a pedra de toque do existencialismo. Kierkegaard acentuava a noção de angústia, essa liberdade bloqueada, essa intranquilidade que surge antes ou durante muitos actos decisivos (exemplo: a angústia do aluno antes de saber a nota do teste, a angústia da mãe antes do parto, etc). Kierkegaard situa o paradoxo no interior do estado religioso e diz que se deve amar e seguir a vontade de Deus apesar de não compreendermos esta. (VALE TRINTA PONTOS).a afirmação «Deus é, não existe, o homem não é, existe» significa que Kierkegaard atribui ao termo «ser» e «é» o sentido de eternidade e imutabilidade, própria de um Deus incriado e indestrutível, e ao termo «existe» os sentido de nascimento/crescimento/eclínio/morte e alteração a cada momento, traços da condição humana (VALE 10 PONTOS).
GRUPO III (50 PONTOS)
1) O ser-aí é cada homem na sua subjectividade que carrega dentro de si o ser, isto é, a essência geral do universo e da humanidade e equivale ao ser-para-si que, em Sartre, é a consciência pensante, distinta do ser em si que é o mundo dos corpos (árvores, automóveis, animais, etc ) - que carrega em si o nada porque Sartre afirma que, ao nascer, não somos nada, psíquicamente falando, nem bons nem maus (VALE 20 PONTOS). Para Heidegger, o cuidado ou cura (sorge) é a preocupação em que vive o homem a cada instante de ter alimento, habitação, executar um trabalho com competência, agradar às outras pessoas, ter família e dinheiro, cuidar dos filhos, etc. O porvir é o sentido do futuro que engloba expectativas, esperanças, projectos. O ser-para-a-morte é a consciência de que se morrerá (finitude) um dia, novo ou velho, e isso condiciona as escolhas da vida humana. O ôntico é a realidade aparente (exemplo: eu e o mundo somos realidades separáveis, quando eu morrer o mundo permanece, realismo natural) e o ontológico é a realidade profunda, oculta (exemplo: o meu eu é indissociável do mundo exerior, fenomenologia). (VALE 30 PONTOS)
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
«O Ser e o Tempo», essa "bíblia" da fenomenologia, escrita por Heidegger, é um livro de dupla face: nele, ideias e raciocínios brilhantes juntam-se a paralogismos e equívocos de que o grande público, e mesmos os especialistas em Heidegger, não se dão conta. Escreveu Heidegger:
« Antes de tudo, há que advertir que Kant usa o termo "existência" para designar a forma de ser que na presente investigação se chama "ser diante dos olhos". (...)
«O simples facto de que Kant peça uma prova da "existência das coisas fora de mim" mostra que põe o ponto de apoio do problema no sujeito, no "em mim". Consequentemente, desenvolve-se a própria prova partindo da mudança dada empíricamente em mim. »
«Pois só em mim é experimentado o tempo que suporta a prova. O tempo é quem dá o apoio para o salto demonstrativo do "fora de mim". (...)
«O que prova Kant - concedida a legitimidade da prova e da sua base - é o necessário "ser diante dos olhos juntamente" um ente mutável e um ente permanente. Mas a coordenação dos entes "diante dos olhos" nem sequer quer dizer já "o ser diante dos olhos juntamente" um sujeito e um objeto. E uma vez provado isto, continuaria encoberto o ontologicamente decisivo: a estrutura fundamental do "sujeito", do "ser aí" como "ser no mundo". O "ser diante dos olhos juntamente" o físico e o psíquico é ôntica e ontologicamente em toda a linha distinto do fenómeno do "ser no mundo"».
(Heidegger, El Ser y el tiempo, pag. 224-225, Fondo de Cultura Económica)
Contrariamente ao que Heidegger afirma, Kant não ocultou a estrutura do sujeito como "ser no mundo". Kant sustentou que o sujeito é o criador ou co-criador do mundo fenoménico, das paisagens terrestres e celestes e seus objetos materiais, e que não existe um dualismo ontológico rigoroso entre sujeito e objeto fenoménico:
«Esta hipótese de união entre duas substâncias, a pensante e a extensa, tem por fundamento um dualismo grosseiro e transforma estas substâncias, que são meras representações do sujeito pensante, em coisas subsistindo por si. Pode-se, pois, demolir a falsa concepção da influência física, mostrando que o fundamento da sua prova é nulo e fictício.»
«O famoso problema do que pensa e do que é extenso acabaria assim, se fizermos abstração de tudo o que é imaginário, simplesmente em saber como é possível num sujeito pensante em geral, uma intuição externa, ou seja, a intuição do espaço ( do que o preenche, a figura e o movimento). A esta questão não é possível a homem algum encontrar uma resposta e nunca se poderá preencher essa lacuna do nosso saber, mas somente indicar que se atribuem os fenómenos externos a um objeto transcendental...» (Kant, Crítica da Razão Pura, páginas 367-368, nota de rodapé, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é posto por mim).
Como este excerto denota, Kant não considerou o sujeito como um espectador do mundo entendido como "ser diante dos olhos" (concepção realista, dualista) mas antes como um criador do mundo, um "ser no mundo" em sentido heideggeriano.
Também não parece que a existência da mudança - da sucessão e dos seus correlatos duração e da simultaneidade, características do tempo, segundo Kant - constituissem, para Kant, meios de prova de um mundo exterior, como sustenta Heidegger. O facto de, na concepção de Kant, o tempo ser o sentido interno e o espaço o sentido externo não faz com que o tempo seja o trampolim de prova do "mundo exterior". Este, como mundo exterior ao corpo físico - distinção que Heidegger, Russel e outros não fazem, o que prova a inépcia destes ao estudar a gnosiologia de Kant - está dado automaticamente na intuição pura de espaço e não carece de prova. Quanto ao verdadeiro mundo exterior ao espaço e ao espírito humano em geral, é impossível de demonstrar a sua existência ainda que a razão o idealize composto de númenos (Deus, alma imortal, mundo como totalidade).
Heidegger nunca compreendeu integralmente Kant, tal como a generalidade dos filósofos contemporâneos. Excetuarei Hegel e Schopenhauer e algum outro. Nem Heidegger, nem Bertrand Russel, nem Witgenstein, nem os catedráticos que hoje lecionam nas universidades mais prestigiadas entenderam, a fundo, o pensamento kantiano. Nenhum destes, nem mesmo Heidegger, clarificou o duplo sentido que Kant atribui às expressões análogas "fora de nós" e "mundo exterior":
1) O espaço está fora do nosso corpo mas dentro do nosso espírito, do vasto sector deste denominado sensibilidade, um «salão» imenso onde cabe a natureza visível, audível e palpável, feita de montanhas, céus, árvores, corpos de animais e humanos, isto é, fenómenos.
2) Os númenos ou coisas em si estão, presumivelmente, fora do nosso corpo e do nosso espírito envolvente e constituem o verdadeiro mundo exterior. ,
O «Ser e o Tempo» de Heidegger é, por conseguinte, um livro com erros importantes no plano da ontognosiologia, em especial da ontognosiologia de Kant, mas o estilo retórico e emaranhado de Heidegger, sem embargo da originalidade intelectual deste, subjuga o público vulgar e os académicos, que, mais ou menos acríticos, fingem compreender os paralogismos do grande filósofo alemão do século XX. Sou, presumivelmente, um dos únicos a gritar:«O rei (Heidegger), supostamente vestido com um fato invisível (de sapiência retórica), vai nú!».
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Lendo o «Tratado da Natureza humana», conclui-se que David Hume não acreditava no livre-arbítrio, no pleno sentido da expressão, isto é, na capacidade de escolher livremente em cada circunstância uma atitude ou caminho a empreender. Hume distinguiu dois tipos de liberdade:
«Poucas pessoas são capazes de distinguir entre a liberdade de espontaneidade, conforme se lhe chama nas escolas, e a liberdade de indiferença, entre a liberdade que se opõe à violência e a que significa negação da necessidade e das causas. O primeiro sentido da palavra é mesmo o mais corrente; e como é apenas esta espécie de liberdade que nos preocupamos em salvaguardar, os nossos pensamentos se têm dirigido sobretudo para ela e têm-na quase universalmente confundido com a outra.» (David Hume, Tratado da natureza humana, pag 474, Fundação Calouste Gulbenkian).
Provavelmente, Heidegger designaria a primeira destas liberdades por liberdade ôntica, de superfície, sensível, e a segunda - caso postulasse a sua existência - por liberdade ontológica, profunda, estutural. E prossegue Hume:
«Podemos imaginar que sentimos liberdade em nós, mas um espectador pode correntemente deduzir as nossas acções dos nossos motivos e do nosso carácter; e, mesmo que não possa, em geral conclui que poderia; se conhecesse perfeitamente todas as circunstâncias da nossa situação e do nosso temperamento e os recursos mais secretos da nossa compleição e disposição. Ora isto é a própria essência da necessidade, de acordo com a precedente doutrina.» (Hume, ibid, páginas 475-476; a letra negrita é por mim colocada).
Assim, Hume postula um determinismo bio-psico-sociológico em cada pessoa que anula o livre-arbítrio desta. Cada pessoa é regida pela necessidade, isto é, a lei infalível de causas e efeitos conjuntos que se manifesta nos diversos planos da vida (amadurecemos e envelhecemos necessariamente, sentimos fome necessariamente após algumas horas ou dias em jejum, oscilamos necessariamente entre a actividade e o repouso em cada dia; sentimos necessariamente atracção sexual por certo tipo de pessoas e aversão sexual por outro tipo, etc).
A massa popular e os parafilósofos crêem que somos livres. Os filósofos de profundidade, em regra, não.
David Hume é abordado praticamente em todos os manuais de filosofia do 11º ano do ensino secundário em Portugal - e poderia sê-lo nos manuais de 10º ano que tratam dos valores éticos e do problema do livre-arbítrio - mas nenhum deles, que me conste, foca este aspecto da doutrina de Hume que conjuga o indeterminismo ontológico - o carácter, o eu fixo não existe em cada pessoa, é construção da imaginação, tal como a causação ou lei necessária de causa-efeito não existe na natureza biofísica, é por nós imaginada - com o determinismo psico-activo ou ético-prático de cada indivíduo - ponderamos várias hipóteses mas somos subtilmente coagidos a seguir uma, aquela e nenhuma outra.
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Heidegger escreveu:
«Ontológico significa levar a cabo a reunião do ente com a sua entidade. Ontológica é aquela essência que, segundo a sua natureza, se encontra em esta história desde o momento em que a suporta segundo o desocultamento do ente de cada momento. De acordo com isto, podemos dizer que a consciência é consciência ôntica na sua representação imediata do ente. Para ela, o ente é o objecto. Mas a representação do objecto representa, de maneira impensada,o objecto enquanto objecto. Já reuniu o objecto na sua objectividade e por isso é consciência ontológica. Mas como não pensa a objectividade como tal e sem embargo, já a representa, a consciência natural é ontológica, e sem embargo, ainda não o é. Dizemos que a consciência ôntica é pré-ontológica. Enquanto tal, a consciência natural ôntico-préontológica é, em estado latente, a diferença entre o onticamente verdadeiro e a verdade ontológica.» (Martin Heidegger, Caminos de Bosque, pag. 134, Alianza Editorial; o negrito é colocado por mim).
Este texto de Heidegger merece algumas reservas na sua claridade. Por que razão «a consciência natural é ontológica, e sem embargo, ainda não o é»? Heidegger sabe-o, sem dúvida, mas poderia precisar que a consciência natural é ontológica na sua constituição, mas ôntica no seu conteúdo, na sua função representativa. O ontológico é o verdadeiro profundo por desocultar, o objectivo, o fenómeno (no sentido heideggeriano) oculto sobre as aparências, o alicerce da casa.
O ôntico é o verdadeiro aparente. Exemplo: «Onticamente, a febre é um mal porque causa mal-estar térmico, suores, etc, e onticamente é verdadeiro que os medicamentos antipiréticos baixam e fazem desaparecer a febre; ontologicamente, a um nível mais profundo, a febre é bem, porque é um mecanismo de expulsão de toxinas, sais de ácido úrico, colesterol, através de suores, sebo, urinas carregadas, etc, e, portanto, um esforço libertador da doença, e os medicamentos antipiréticos são maus porque bloqueiam a febre, acção vital de defesa do organismo.»
Na acepção de Heidegger, entidade significa o ser: a entidade do ente é o ser. Mas haveria que distinguir o ser na sua dupla vertente de qualidade de existir e de estrutura ou essência geral unificada de todos os entes. São coisas distintas, ainda que indissociáveis.
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Ao dizer «tenho tempo para isto ou para aquilo» significo: posso efectuar tal ou tal acção ou deixar que tal coisa actue sobre mim toda a acção é criação ou transformação de uma forma material, vital, social ou espiritual. Dar uma aula é uma sucessão de formas mentais e verbais o discurso do professor e dos alunos, as definições, as correlações entre estas que exige tempo, isto é, duração dessas formas. Portanto, ter tempo é criar, em potência, ou deixar desenvolverem-se formas, em potência: produzir ideias, raciocínios, imagens ou deixar que aconteçam, e no plano material e social, é manipular ou fabricar objectos, movimentar-se, fazer discursos, interpelar ou abraçar pessoas, etc. O tempo de que se dispõe é a duração da execução de uma tal acção ou seja o acto de plasmação de uma tal forma. O tempo é actualização do ser, passagem da potência ao acto. É manifestação do ser.
O tempo de trabalho na produção de ideias, serviços ou bens culturais e materiais determina, em princípio, ou deveria determinar, o nível de remuneração do trabalhador. Essas ideias, serviços ou bens culturais e materiais, são formas, minimamente estáveis, executadas e vigentes no tempo. Uma cadeira ou um automóvel são pensados automaticamente na sua coisidade, no ser das suas formas essenciais, e, secundariamente, são também pensados em termos de tempo de trabalho que exigiu a produção das suas formas.
HEIDEGGER NÃO CONCEBEU O TEMPO COMO PROPRIEDADE DA FORMA ESPACIAL
Heidegger esforçou-se por retirar o tempo do campo dos instrumentos de análise ontológica:
«O "tempo" funciona há muito como critério ontológico, ou melhor ôntico, da distinção ingénua entre as diversas regiões dos entes. Deslindam-se os entes "temporais" (os processos da natureza e a gesta da história) dos entes "intratemporais" (as relações espaciais e numéricas). Costuma-se destacar o sentido "intemporal" das proposições em relação ao curso "temporal" das orações que as enunciam. Encontra-se ademais um "abismo" entre o ente "temporal" e o eterno "supratemporal" e tenta-se franqueá-lo.» (Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 27).
Mas toda a crítica de Heidegger, de que «a ontologia tradicional confundiu o ser com o tempo», passa por alto a natureza do tempo como propriedade das formas, isto é, permanência destas, passa por ignorar o carácter intrinsecamente temporal do ser. Heidegger continua prisioneiro do dualismo de Kant que postula o espaço, como sentido externo, e o tempo como sentido interno. Por isso, a concepção heideggeriana do ser é estática, imobilista como seria a de Platão se circunscrevesse rigorosamente o ser ao mundo do Mesmo. E a sua distinção entre ôntico-existente - por exemplo: «o tempo é infinito onticamente» - e ontológico-existencial ou existenciário - no exemplo: «o tempo real é finito ontologicamente» - é algo artificial porque o ôntico é a manifestação do ontológico que transporta dentro de si.
É por isso que, ao caracterizar a ontologia de Nietzschze, Heidegger distingue como ser a vontade de poder e como sua modalidade o eterno retorno que seria a existentia, a manifestação temporal externa. O equívoco heideggeriano está em que o ser é tanto a vontade de poder (ser em si) como o eterno retorno (ser por si e para si). Como seria possível conhecer o ser como vontade de poder, que, na teoria de Nietzschze, tem duas faces - a vontade de poder dos aristocratas esclavagistas ou feudais, antiliberais até à medula, e a vontade de poder da plebe, incluido a burguesia liberal e a populaça democrática ou mesmo anarquista e comunista na sua forma extrema - se na serpente circular do tempo não se manifestassem, alternadamente, estas duas faces? O ser inclui o tempo, desdobra-se neste.
O vínculo entre tempo e forma é indissociável: o tempo é a permanência, mais ou menos efémera, das formas das coisas, formas que são o ser. Como a permanência ou duração pertence às formas das coisas, ao ser, o tempo pertence ao ser, constitui a camada periférica deste.
Faz sentido distinguir um tempo psicológico de um tempo extra animam, objectivo, pois as formas psíquicas gozam de grande autonomia em relação às formas físicas.
Max Scheler falou na existência de uma duração sem sucessão. Tal só é possível na duração eterna ou eternidade, fora do tempo mutável, sinuoso. Porque a eternidade é da mesma natureza - ou seja duração - que o tempo historicamente delimitado: é a infinitude deste. Aliás, um dos problemas centrais da filosofia é justamente o de saber se a eternidade é real em acto ou apenas uma fantasia, uma potência ilusória.
A duração é a característica essencial do tempo.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Em Ser e Tempo, Heidegger prolongou o construtivismo ontológico que Kant, um grande arquitecto do idealismo ontológico no século XVIII, desenvolvera, subjectivizando o espaço, o tempo e os corpos materiais (fenómenos, na linguagem de Kant). Heidegger desvia o curso do rio da gnoseologia do leito do idealismo («a matéria é mera percepção empírica fora de mim») para o leito da fenomenologia (a matéria é real, exterior a mim, mas correlata de mim e talvez não autosubsistente ) e prossegue a contestação ao realismo natural.
Diz, por exemplo, que o mundo só existe para os seres humanos é uma percepção global do todo dos entes só própria do homem - e que dois objectos visíveis nunca se tocam embora pareçam tocar-se: por exemplo, a mão que pousas no tampo da mesa nunca chega a tocar a mesa mas sim o campo magnético da mesa, tese que a física contemporânea pode perfeitamente defender.
«O ser junto ao mundo em sentido existenciário nunca significa nada semelhante ao ser diante dos olhos juntas coisas que vêm a estar diante dentro do mundo. Não há nada semelhante a uma contiguidade de um ente chamado ser aí (Dasein) a outro ente chamado mundo. É certo que exprimimos o estar juntas duas coisas diante dos olhos dizendo por vezes, por exemplo, a mesa está junto à porta, a cadeira toca a parede. Mas não pode tratar-se de um tocar rigorosamente considerado, e não porque ao cabo de um exame más exacto sempre se ache um espaço intermédio entre a cadeira e a parede, mas porque a cadeira não pode, de raiz e ainda que o espaço intermédio fosse igual a zero, tocar a parede. Condição indispensável seria que a parede pudesse estar diante da cadeira. Um ente só pode tocar outro diante dos olhos dentro do mundo, se tem em si mesmo a forma do ser do ser em, se o seu simples ser aí descobre algo semelhante a um mundo, a partir do qual certos entes possam fazer-se patentes mediante o contacto, para tornar-se assim acessíveis no seu ser diante dos olhos. »
«Dois entes que estão diante dos olhos dentro do mundo e por cima são em si mesmo carentes de mundo, não podem tocar-se nunca, não podem ser um junto do outro. » (Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 67-68; a letra negrita é posta por mim).
Ao postular que a parede não está diante da cadeira quando os nossos olhos nos revelam o inverso, Heidegger está a pressupor uma realidade completamente diferente da que os nossos órgãos dos sentidos nos oferecem. Seriam as nossas estruturas cognoscitivas a priori e isto é perfeitamente kantiano que espaciariam, isto é, estruturariam o espaço com as determinações do «estar diante de», «estar por cima de», «estar debaixo de», «estar encostado a», etc. Heidegger retirou realidade ao tocar ou encostar, isto é, à contiguidade entre dois corpos materiais da realidade objectiva, e transformou o tocar numa propriedade do ser-aí: o homem poderia tocar a parede ou a mesa porque só ele tem mundo - percepção global e significativa das coisas - mas a jarra pousada na mesa «não tocaria» nesta e a mesa encostada à parede «não tocaria» esta.
Tocar deixa de ser uma propriedade das coisas físicas situadas no espaço: a ave ou a maçã que caem no solo «não tocam» o solo. Esta visão mágica e poética de Heidegger o mundo como iluminação ou foco de luz de lanterna manejada pelo homem sobre o caos ou «quarto escuro» onde se amontoavam as coisas físicas - seduziu centenas de milhar de leitores de «Ser e Tempo» que não contestaram e consideraram isto um «notável progresso» gnoseológico.
O erro de Heidegger consiste em conceber o espaço somente como uma realidade intersubjectiva, uma construção de todos os Dasein (ser- aí, isto, é cada homem) e, neste ponto, o pensamento de Heidegger deriva directamente do idealismo ontológico de Kant. Sem dúvida, um espaço intersubjectivo existe há leis psicológicas expostas pela Gestalpsicologia que influenciam Heidegger mas há um espaço que existe objectivamente, independentemente da existência de humanidade.
O DISCURSO AMBÍGUO: O MAIS PRÓXIMO (FISICAMENTE) É O MAIS DISTANTE (PSICOLOGICAMENTE)
Heidegger distingue em Ser e Tempo dois conceitos: o ôntico, isto é, a realidade aparente dos seres diante dos olhos (exemplos: «o céu é azul e está por cima de mim»,«o mundo está ali, fora de mim, inclui os oceanos, as cidades e campos e os céus, entre outros»); o ontológico, isto é, a realidade profunda interpretada a partir da estrutura do ser aí (exemplo: «o mundo não existe em si mesmo, eu é que ligo os diversos objectos físicos num todo de significações que passa a ser mundo»).
«O onticamente mais próximo e conhecido é ontologicamente o mais distante desconhecido e constantemente passado por alto na sua significação ontológica.» ( Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 55-56).
«O orientar-se primaria e até exclusivamente pelas lonjuras tomadas como distâncias medidas encobre a espacialidade originária do ser em. O presumivelmente mais próximo não é em absoluto o que está à mínima distância de nós. ( ) É o que se passa também com a rua, o útil para andar. Ao andar toca-se nela a cada passo, e parece ser o mais real de todo o ao alcance da mão, desenvolvendo-se, por assim dizer, em contacto directo com determinadas partes do corpo, as plantas dos pés. E, sem embargo, está muito mais longe do que o conhecido com quem o andar assim tropeça à distância de vinte passos.» ( Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 111; a letra negrita é posta por mim).
O passeio está mais distante de nós, que o pisamos, do que o amigo que vemos aproximar a vinte metros de distância! Eis o aparente paradoxo. A espacialidade originária seria, pois, psíquica e não física: é a psique e não a geografia quem estabelece as distâncias. Está por demonstrar esta tese idealista.
Isto aplica-se ao espaço psíquico onde a proximidade é directamente proporcional à intensidade afectiva mas não ao espaço físico dominado por leis objectivas. A minha mãe que está no Porto está mais perto de mim, psiquicamente falando, do que um meu amigo de Beja, estando, eu por hipótese, em Évora. É verdadeiro, num sentido, mas falso, em outro.
Ao falar de «próximo» e «distante» em relação ao «ser aí» (cada homem), Heidegger não distingue dois níveis do ser aí contrários entre si: não distingue explicitamente o eu psíquico cujo centro de gravidade se encontra necessariamente fora do sujeito corporal, a meu ver do eu físico cujo centro de gravidade está no interior do corpo. Isto gera um discurso ambíguo.
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