Sábado, 20 de Fevereiro de 2016
Teste de Filosofia do 10º ano, turma A (Fevereiro de 2016)

 

Eis um teste de filosofia fora do estereótipo dos testes que os autores dos manuais escolares da Porto Editora, Leya, Santillana, Areal Editores, etc, divulgam. E sem questões de escolha múltipla que, frequentemente, são incorrectamente concebidas por quem não domína o método dialético e desliza para a horizontalidade da filosofia analítica vulgar. Os conteúdos deste teste de filosofia referentes a alquimia, cabala e princípio das correspondências macrocosmos-microcosmos integram-se na rubrica «Os grandes temas da filosofia» e são relativos a uma visita de estudo ao centro histórico de  Sevilha em que se fez hermenêutica de monumentos antigos e seus pormenores artísticos.

 

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja

Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA A

11 de Fevereiro de 2016. Professor: Francisco Queiroz.

 I

"A filosofia da alquimia, que aceita as noções de pleroma, kenoma e hebdómada, sustenta a divisa «solve e coagula» e a existência de três princípios/ substâncias do universo material. Na Grande Obra Alquímica, que traduz a lei dialética do uno, há quatro fases correspondendo uma ave a cada uma. O princípio das correspondências macrocosmo-microcosmos foi usado na construção da catedral medieval."

 

1)Explique, concretamente este texto.

 

2) Relacione, justificando:

A) Seis esferas da árvore cabalística dos Sefirós, as respectivas qualidades, cores e planetas associados a cada uma, e a planta do templo cristão medieval.


B) Lei da luta de contrários, por um lado, e taoísmo, Adão Kadmon, e binómio realismo/idealismo, binómio ética deontológica/ ética teleológica por outro lado.


C) Vontade autónoma/ vontade heterónoma, eu fenoménico e eu numénico em Kant, por um lado, e três partes da alma na teoria de Platão, por outro lado.


D)  Máxima e imperativo categórico em Kant e o princípio moral do utilitarismo em Stuart Mill

 

CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES

 

1) A filosofia da alquimia, doutrina esotérica, hermética que sustenta o processo da Grande Obra ou criação laboratorial da pedra filosofal que concederia a imortalidade ao homem, dotando-o de um corpo astral desmaterializado como o mítico Adão Kadmon (metade homem e metade mulher), defende que há três princípios/ substâncias originárias do universo, o enxofre ou homem vermelho (princípio masculino), sólido, o mercúrio filosófico ou mulher branca (princípio feminino), volátil, e o sal, neutro. A divisa «solve e coagula» significa dissolver o enxofre, sólido, e coagular o mercúrio líquido ou gasoso que se esparge pelas esferas celestes de forma a obter o equilíbrio e a pedra filosofal, ou lapis vermelho. O pleroma é o mundo divino, da luz, o mundo dos éons ou dos arquétipos perfeitos, o kenoma é o vazio, das trevas e da matéria exterior ao pleroma, a hebdómada é o mundo das sete esferas planetárias que tem a Terra no centro, criado por Deus ou pelo demiurgo (deus inferior) no seio do kenoma para alojar Adão que, ao sair do Éden atraído por Lúcifer, se materializou e perdeu Sofia, a sua metade espiritual  (VALE QUATRO VALORES). As quatro fases da Grande Obra Alquímica que visa produzir o elixir da longa vida ou pedra filosofal em laboratório são: nigredo, ou fase negra, da putrefação da matéria transformada no laboratório a que corresponde o corvo; albedo, ou fase branca de separação das impurezas, a ave é o cisne; citredo, ou fase multicolor, de alguma dominancia do amarelo limão, a ave é o pavão; rubedo, ou fase vermelha na qual se dá a produção da pedra filosofal cuja ave é a fénix. A lei do uno sustenta que tudo se relaciona e isso exemplifica-se no facto de estas quatro fases da Grande Obra estarem ligadas entre si num processo de continuidade. (VALE TRÊS VALORES). O princípio das correspondências microcosmo-microcosmo da filosofia hermética sustenta que o que está em baixo é como o que está em cima, há uma analogia entre o microcosmo ou pequeno universo e o macrocosmo ou grande universo. Assim, o templo cristão da idade média obedeceu a essa lei: o macrocosmos seria um corpo gigantesco de Cristo de braços abertos que atravessaria o universo inteiro e o templo a construir seria um macrocosmos que imitaria, em forma de cruz, esse corpo macrocósmicos. A abside do templo, orientada a Este, ponto cardeal onde nasce o Sol (Cristo é o Sol espiritual) equivale à cabeça, o transepto aos braços abertos, o altar ao coração, as naves ao tronco e pernas de Cristo. (VALE DOIS VALORES).

 

2-A) A árvore das Sefirós (Esferas) é o diagrama do universo, segundo a Cabala (ensinamento secreto) judaica, uma «heresia» do judaísmo como religião de massas. Essa árvore de 10 esferas, que são 10 qualidades manifestas de Deus, é composta de um hexágono em cima, um triângulo debaixo deste e um ponto isolado no fundo. Podemos aplicar este diagrama à planta em cruz da catedral cristã fazendo coincidir Kéther, a primeira Sefiró, com a abside do templo, Binan e Guevurah com a extremidade esquerda do transepto, Hockman e Chesed com a extremidade direita do transpeto, Tiferet com o altar no pilar central.

 

                               KÉTHER (Coroa)

                                Planeta: Úrano

                                Esfera nº 1

                                 Cor : Indefinida

 

BINAH:                                               CHOCKMAH

Esfera nº 3                                          Esfera nº 2

Inteligência                                          Sabedoria

Feminina                                              Masculina

Saturno                                                Neptuno

Cor Negra                                           Cor iridescente

 

GUEVURAH                                          CHESED

Esfera nº 5                                             Esfera nº 4

Justiça                                                    Misericórdia

Marte                                                       Júpiter

Cor: Vermelho                                        Cor Azul

 

                                     THIPHERET

                                      Esfera nº 6.

                                      Beleza.

                                      Sol.

                                      Cor: amarelo ouro.

                                      (VALE TRÊS VALORES)

 

2. B)  A lei da luta de contrários sustenta que a essência e o motor de desenvolvimento de cada fenómeno ou ente é uma luta de contrários. No taoísmo, antiga filosofia chinesa, o Tao ou mãe do universo divide-se numa luta entre o Yang e o Yin, o fluxo da onda (Yang) e o refluxo desta (Yin), a luz do dia (Yang) e a escuridão da noite (Yin), a diástole (Yang) e a sístole (Yin), o crescimento (Yang) e o decréscimo (Yin), o masculino (Yang) e o feminino (Yin), o vermelho e o laranja (Yang) o azul e o violeta (Yin), o verão e o calor (Yang), o inverno e o frio (Yin). O Adão Kadmon, antepassado mítico do homem, é uma luta de contrários: a sua metade direita é masculina, a sua metade esquerda é feminina. O realismo e o idealismo são contrários: o primeiro afirma que há um mundo de matéria, real em si mesmo, fora das nossas mentes e anterior a elas, ao passo que o idealismo diz que o mundo material é uma ilusão fora do corpo, é apenas percepções e ideias da nossa mente. As éticas deontológicas são, supostamente, não hedónicas, põem o dever à frente do prazer. ao passo que as éticas ditas teleológicas (télos significa finalidade) colocam o prazer, finalidade da acção, à frente do dever.(VALE QUATRO VALORES)

 

2-C) A vontade autónoma reside no eu numénico, ou eu racional, na doutrina de Kant, e permite  a cada pessoa universalizar a sua máxima ou princípio subjetivo, agir de acordo com o imperativo categórico que cada um gera no seu eu racional: trata cada ser humano como um fim em si mesmo, alguém digno de respeito, e nunca como um meio para chegares a fins egoístas. Isto liga-se ao Nous ou parte superior, racional, da alma humana, em Platão, que contempla os arquétipos e dirige os filósofos.reis que vivem colectivamente, sem ouro nem prata, numa casa do Estado e fazem as leis. Também se liga ao Tumus ou parte intermédia da alma que representa o valor militar dos guerreiros, auxiliares dos filósofos-reis. A vontade heterónoma situa-se no eu fenoménico ou eu empírico e é governada por interesses materiais, instintos e paixões contrárias ao eu racional e exprime à parte inferior da alma humana, a epythimia ou concupiscência, sede dos prazeres egoístas de enriquecer materialmente com ouro e prata, comer requintadamente, desfrutar vida luxuosa, etc. (VALE TRÊS VALORES).

 

2-D- O imperativo categórico ou verdadeira lei moral postula: «Age como se quisesses que a tua ação fosse uma lei universal da natureza». Resulta da universalização da máxima, da aplicação equitativa do princípio subjectivo moral de cada um ou máxima. Exemplo: se a minha máxima é «Combato a vacinação obrigatória porque as vacinas infectam o organismo» o meu imperativo categórico será «Vou difundir a ideia de que a vacinação é nociva e não me vacinarei nem as minhas filhas, quaiquer que sejam as sanções contra mim.» O princípio moral de Stuart Mill é, em cada situação, promover a felicidade da maioria das pessoas, mesmo sacrificando a minoria. Em regra, isto opõe-se ao imperativo categórico de Kant que é absolutamente equitativo e trata por igual todos os indivíduos. (VALE UM VALOR)

 

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Sábado, 14 de Dezembro de 2013
Confusões de Adela Cortina: o absurdo da divisão das éticas em deontológicas e teleológicas, em de móbiles e de fins

 

Os catedráticos de filosofia, como Adela Cortina e tantos outros,  costumam dividir as éticas em deontológicas e teleológicas. Esta distinção é absurda: deontologia é uma das faces da ética, a face dos deveres e das regras a cumprir; teleologia é outra face da ética, a face das finalidades, do objectivo da acção moral. A ética de Kant é apresentada como «deontológica», a de Aristóteles como «teleológica», etc. Ora, na verdade, todas as éticas são deontológicas e teleológicas em simultâneo. Excepto, talvez, a ética que se resume a isto: «Faz o que te apetecer!». Esta ética possui um télos - a satisfação do ego do sujeito - e poderá, encapotadamente, albergar uma deontologia ao sabor da subjectividade de cada um: alguns, de tendência criminosa, preencherão a máxima «Faz o que te apetece, inclusive roubar e matar pessoas!» , outros aplicarão a máxima «Faz o que te apetece, excepto matar, roubar e violar».

 

A ética de Aristóteles, que Adela classifica como «ética de fins»,  é deontológica e teleológica, em simultâneo: deontológica porque incita a cumprir deveres, a ser virtuoso e a virtude é um hábito que é o meio termo entre dois vícios, teleológica porque visa a felicidade do indivíduo no quadro do bem-estar geral da sociedade. A ética de Stuart Mill, que Adela classifica como «ética de móbiles», é deontológica e teleológica, em simultâneo: deontológica porque incita a cumprir deveres, como o de proporcionar a felicidade à maioria das pessoas através de métodos moralmente aceitáveis, teleológica porque visa a felicidade dos indivíduos no quadro do bem-estar geral da sociedade

Adela Cortina escreve:

 

«Falar de um télos aristotélico não é aceitável, porque supõe adentrar-se numa presumível essência do homem. Sem embargo, a tendência ao prazer é observável, controlável e computável, e uma moral consagrada aos factos não tem mais que desejar. Com tudo isto, pretende-se apresentar o hedonismo como uma "ética de fim dominante"  que pretende reduzir todos os possíveis fins  a um só e como um teleologismo naturalista, que identifica tal fim com um natural: o prazer.» (Adela Cortina, Ética sem moral, Editorial Tecnos, Madrid, pag. 89)

 

Ética de fim dominante? Expressão ambígua. E o cristianismo ou o catolicismo genuínos que reduzem tudo ao fim da salvação da alma através da oração e de uma vida de sacrifício não será uma "ética de fim dominante", a salvação não hedonista do eu superior?

 

A ÉTICA DE NIETZSCHZE NÃO É TELEOLÓGICA?

 

Escreve Adela Cortina sobre a ética de Aristóteles, que classifica como "ética de fins", e a ética de Nietzshe:

 

«Apesar do empenho de Aristóteles em negar gradação às características essenciais, a ética de fins corre o risco de cair em uma moral das excelências inclusive essenciais. Neste sentido, e apesar do seu radical repúdio da teleologia, que impede considerar a ética nietzschiana como uma ética de fins, Nietzsche destaca, sim, uma qualidade humana - a capacidade criadora, cujo cultivo pode levar inclusive ao super-homem - A ética aristotélica, e a nietzschiana, coincidiriam nesse sentido.»

(Adela Cortina, Ética sem moral, Editorial Tecnos, Madrid, pág 50; o destaque a negrito é posto por mim)

 

Nietzschze repudiava radicalmente a teleologia, como sustenta Adela? Não é verdade. O super-homem é um alvo teleológico da humanidade triunfante segundo Nietzsche. A teleologia inscrita na ética de Nietzsche é o regresso ao reino da aristocracia greco-romana antiga, dos valores «autênticos», em que os senhores eram semideuses e fruiam a felicidade possível, governando, sem misericórdia nem princípios democráticos, a plebe (conjunto de classes desde a burguesia até aos escravos). E quanto à «capacidade criadora» exaltada por Nietschze que leva à condição de super-homem, não esqueçamos que era, em si mesma, uma capacidade destruidora da dignidade de outros seres humanos: os democratas humanistas, o proletariado, os escravos. O super-homem só existe na medida em que existe o infra-homem

 

A FALACIOSA DISTINÇÃO ENTRE ÉTICAS DE MÓBILES E ÉTICAS DE FINS

 

Adela Cortina sustenta a divisão das éticas em dois tipos: éticas de móbiles e éticas de fins.

 

«As éticas de móbiles investigam empiricamente as causas das acções; pretendem descobrir quais são os móbiles que determinam facticamente a conduta humana. O bem ou fim moral consiste para elas em satisfazer estas operações fácticas, que uma investigação psicológica pode descobrir. Este tipo de éticas costuma surgir do afã de recorrer a factos constatáveis como fundamento da moral, fugindo das explicações metafísicas ou transcendentais. (...)»

«Entre as éticas de móbiles caberia considerar como paradigmáticas o epicurismo, parte da sofística, e as distintas versões do hedonismo, muito especialmente a versão utilitarista. Os problemas que este tipo de éticas coloca resumem-se fundamentalmente na dificuldade que para uma fundamentação do moral supõe o subjectivismo dos móbiles».

(Adela Cortina, Ética sem moral, Editorial Tecnos, Madrid, pág 47; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Adela aponta o subjectivismo como o defeito das "éticas de móbiles". E  contrapõe a estas as "éticas de fins" que veiculariam objectivismo:

 

«As éticas de fins, por seu lado, superariam tais dificuldades, consciente ou inconscientemente, tratando de investigar, não tanto o que move de facto os homens a agir, mas sobretudo em que consistem o aperfeiçoamento e a plenitude humanas. (...)

«Nas éticas de fins poderíamos incluir Platão, Aristóteles ou os estóicos, naquilo que se refere ao mundo antigo, e as correntes que restauraram este tipo de éticas, tanto na Idade Média como na Contemporânea. As suas grandes vantagens consistem em poder pretender objectividade para o conceito de bem e fim que propõem, bem e fim ligado ao querer dos sujeitos, enquanto supõe o aperfeiçoamento para o qual a sua essência tende, e em iludir a falácia naturalista porque o "é" de que se deriva um "deve" não é empírico, mas já normativo.»

(Adela Cortina, Ética sem moral, Editorial Tecnos, Madrid, pág 48; o destaque a negrito é posto por mim)

 

Dividir as éticas em éticas de móbiles e éticas de fins é como dividir os automóveis em dois tipos: automóveis de motores e automóveis de volantes (o volante, enquanto manobrado, indica o fim geográfico a que o carro se dirige). É uma distinção artificial porque, tal como os motores existem em todos os automóveis que circulam,  os móbiles existem em todas as éticas, podendo ser mais ou menos explícitos. Por exemplo, a ética freudiana cujo fim consiste em desfrutar a vida, em particular a sexualidade, nos marcos de uma sociedade liberal de matriz cristã que condena a homossexualidade, investiga os móbiles da acção humana: o Eros polimorfo que se desenvolve em várias etapas e o super-ego que o condiciona ou contraria, influenciado pelo princípio de ética freudiana.

 

Também a ética platónica, cujo fim consiste em realizar a areté (virtude) própria de cada pessoa e estrato social - o fim do filósofo é apreender a verdade noética (o Bem, o Belo, o Justo, etc) e fazer leis justas para o governo da pólis; a finalidade do artesão é fabricar bons objectos e vendê-los a preço justo - e cujos móbiles são as três partes da alma humana, o Nous, ou razão superior, o Tymus, ou coragem e valor militar, e a Epytimia, ou desejos e prazeres do ventre, é uma ética simultaneamente de móbiles e de fins.

 

 

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Quinta-feira, 13 de Outubro de 2011
Os Testes intermédios do 10º ano de Filosofia da Porto Editora: equívocos e formatação antifilosófica do pensamento

Os testes intermédios do 10º ano de Filosofia editados pela Porto Editora em 2011 estão repletos de erros teóricos e consituem um exemplo da formatação antifilosófica do pensamento dos adolescentes do ensino secundário em Portugal que uma parte substancial dos professores leva a cabo, por irreflexão e mimetismo face aos autores de manuais escolares. Vejamos alguns desses equívocos,

 

MOORE E O EQUÍVOCO DOS "ATOS INCAUSADOS"

 

A Proposta de teste intermédio 1 começa com o seguinte texto de George Moore, um dos confusos pais da filosofia analítica:

 

GRUPO I

 

«Aqueles que defendem que temos livre-arbítrio julgam-se obrigados a sustentar que por vezes os atos voluntários não têm causa; e aqueles que defendem que tudo é causado pensam que isso prova completamente que não temos o livre-arbítrio. Mas na verdade, é extremamente duvidoso que o livre-arbítrio seja inconsistente com o princípio de que tudo é causado.» ...( G.E. Moore- Ética, 1912, Capítulo VI).

 

1) Indique pela mesma ordem que o autor, as posições sobre o livre-arbítrio referidas na primeira frase do texto. ( Testes intermédios, pag 18, Porto Editora).

 

A proposta de resolução é a seguinte:

 

GRUPO I

«As posições são o libertismo e o determinismo radical (Estas são as duas formas de incompatibilismo).»  (Testes intermédios, pag. 21, Porto Editora; o negrito é posto por mim).

 

 

Crítica: em primeiro lugar, Moore confunde causa com causa necessária (esta última é componente do princípio do determinismo: as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos, nas mesmas circunstâncias). Esta confusão vocabular é funesta à clareza filosófica: Moore e os seus imitadores, como Simon Blackburn e os autores de quase todos manuais escolares de filosofia para o 10º ano em Portugal não distinguem,  vocabularmente pelo menos, entre causa livre - exemplo: Deus criou o mundo por um acto único de livre-arbítrio, que não estaria obrigado a praticar, na concepção cristã - e causa necessária, envolta nas roldanas da necessidade ou determinismo. Dizer que alguns atos voluntários não têm causa, como Moore sustenta no texto acima, é um contrasenso: a causa de um ato voluntário, como, por exemplo, ir passear ou ir ao cinema, é o livre-arbítrio, a reflexão livre de cada pessoa que precede a decisão, ou o instinto. O que Moore e outros querem dizer com a expressão "atos incausados" é que há atos que escapam ao determinismo. Mas nenhum ato escapa a causas, sejam elas necessárias ou livres, e isto Moore e os seus imitadores não o dizem. Em rigor, não há atos incausados. O princípio da razão suficiente, de Schopenhauer, assegura que toda a coisa ou fenómeno possui uma causa.

 

Por outro lado, a solução proposta acima diz que a teoria que sustenta que os atos voluntários são por vezes incausados chama-se.. libertismo. É uma névoa de confusão: não se explica o que é libertismo, nem em que se distingue do determinismo com livre-arbítrio («determinismo moderado»,na imperfeita definição em voga nos manuais). Kant é libertista, como defende Simon Blackburn? Ou é "determinista moderado", uma vez que admite que o eu fenoménico (corpo e suas necessidades materiais) é determinado pela natureza e o eu numénico (razão livre) é livre? Ninguém sabe explicar isto. Não se pensa, não se confrontam posições nesta esfera da filosofia - o meu blog é, seguramente, uma excepção, fustigando, com a espada do raciocínio dialético, o dogmatismo erróneo instalado entre os professores de filosofia (por exemplo, a confusa classificação: determinismo radical, determinismo moderado, libertismo, indeterminismo).

 

Também não se percebe como se pode classificar o "libertismo" de incompatilismo. Como pode ser incompatibilismo se, às vezes, aceita que há livre-arbítrio compatível com determinismo?

 

ERRÓNEA DEFINIÇÃO DE RELATIVISMO CULTURAL

 

Na mesma Proposta de teste intermédio 1, temos a seguinte pergunta do grupo II a coroar um texto de Harry Gensler: 

2.1. Defina relativismo cultural.(pag 21)

 

A proposta de resolução é a seguinte:

 

«2.1. De acordo com o relativista cultural, não há padrões absolutos ou universais do bem e do mal. O facto de algo ser bom, ou de algo ser mau, é sempre relativo a sociedades específicas. Se numa sociedade a maioria aceitar, por exemplo, que a poligamia é boa, então a poligamia será boa para essa sociedade; se noutra sociedade a maioria pensar o contrário, então a poligamia será má para essa sociedade.» (Testes intermédios, Filosofia 10º, pag 21, Porto Editora; o negrito é colocado por mim).

 

Crítica minha: É um erro apontar como relativismo o facto de «numa sociedade em que a maioria aceita a poligamia como um bem, então a poligamia será boa para essa sociedade». Isso é absolutismo social, imposição de uma mesma ideologia a todos os estratos da mesma sociedade. Harry Gensler pensa mal tal como os autores desta prova intermédia da Porto Editora. O relativismo é o facto de numa mesma sociedade haver uma moral, uma ciência e uma concepção político-económica dominantes e, em simultâneo ,haver morais, ciências e concepções político-económicas dominadas que não aceitam o paradigma dominante. Por exemplo, sob a ditadura de Salazar os valores dominantes veiculados na televisão e jornais eram, entre outros, «manter a integridade nacional conservando Angola, Guiné e Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe como províncias de Portugal» mas havia oposição entre os intelectuais, os estudantes e a classe operária ao colonialismo oficial de Salazar. Isto, sim, é relativismo: mostrar as diferentes verdades no seio da mesma sociedade. A definição mutilada de relativismo fornecida por Harry Gensler supõe homogeneidade no interior da mesma sociedade o que, em rigor, não é verdade.

 

 

A ÉTICA DE KANT NÃO É RELATIVISTA?

 

Surgem então as perguntas de escolha múltipla e uma só resposta tida como certa e aqui se revela a mediocridade de pensamento de quem gizou este teste, o espírito de hiper análise sem visão de síntese.

 

 

GRUPO III

 

«1.2. A teoria ética de Kant é:

       A. Consequencialista

       B. Relativista       

       C. Deontológica

       D. Teológica                                            (pag

 

A resposta apontada como certa é: deontológica (alínea C).

 

Crítica: Há três respostas certas, as da alínea A, B e C.

Para surpresa da grande maioria, direi que a ética de Kant é consequencialista porque visa uma consequência para cada cada acção humana: a transmissão de uma ideia de equidade entre os homens, de justiça, e a satisfação do eu racional. O dever não é um fim em si mesmo, ao contrário do que diz Kant. O dever  é um serviço para com os outros idealmente considerados. Se um homem que acha na rua uma carteira com 50 000 euros entende devolvê-la, apesar de poder ficar com ela uma vez que ninguém viu, é por dever para com o dono do dinheiro e a humanidade em geral. Visa-se, pois, um fim (consequencialismo) ao devolver o dinheiro: corrigir a injustiça, restituir o seu a seu dono. A resposta A está certa - contra o que afirmam as vozes dominantes e os manuais escolares.

 

Ao mesmo tempo, a ética de Kant é relativista, isto é, o conteúdo do imperativo categórico varia de pessoa a pessoa, é relativo à consciência de cada um. Relativismo da esmola: para uns, é um bem dar esmola porque seguem o imperativo categórico «Dá sempre esmola a quem te pedir porque isso corresponde ao ideal de justiça social» e para outros é um mal dar esmola porque o seu imperativo categórico é «Nunca dês esmola a quem quer que seja porque isso rebaixa a dignidade de quem pede». Logo, a resposta B está certa.

 

Obviamente, a ética de Kant é deontológica (déon= dever), estrutura-se sobre o dever. A resposta C está certa.

 

 

MILL NÃO DEFENDE QUE SÓ UMA BOA VONTADE É INCONDICIONALMENTE BOA?

 

 

Consideremos outra pergunta, na página 20 do "Testes intermédios":

 

«1.5   Tanto Kant como Mill defendem que:

 

A. Não há um princípio moral fundamental.

B. Só o prazer e a ausência de dor são incondicionalmente bons.

C. Há um princípio moral fundamental.

D. Só uma boa vontade é incondicionalmente boa.

 

A resposta tida como certa é a da alínea C.

 

Crítica: De facto, a resposta C está correcta. Mas a resposta D também está: a definição de boa vontade como a vontade incondicionalmente boa não é exclusiva de Kant. Já se encontra na «Ética a Nicómaco»  de Aristóteles e é partilhada também por Stuart Mill.

 

A ÉTICA DEONTOLÓGICA NÃO PROMOVE SEMPRE O BEM?

 

Na proposta de Teste Intermédio 2 figura a seguinte questão que pede apenas uma resposta certa de entre as quatro hipóteses (pag. 26)

 

«1.4  De acordo com uma ética deontológica:

     A. Só o prazer e a ausência de dor são bons.

     B. Devemos sempre promover o bem.

     C. Não podemos promover o bem sacrificando os direitos dos outros.

     D. Nem só o prazer e a ausência de dor são bons.»

 

A proposta de solução indica como certa a hipótese C.

 

Crítica: é uma visão unilateral, truncada. As respostas B e D também estão certas. A hipótese B diz que segundo a ética deontológica devemos promover sempre o bem. Ora, não é isso o que Kant diz? É. Exercer o imperativo categórico, mesmo que seja amargo para algumas pessoas, é fazer o bem. Exemplo: o juíz que condena a anos de prisão efectiva um grupo de narcotraficantes faz o bem, desde que inspirado no ideal de justiça incorruptível.

 

A ética deontológica de Kant - é também uma ética teleológica, como assinalei noutros artigos - preconiza que nem só o prazer e a ausência de dor são bons. O cumprimento do dever pelo dever é bom, mesmo que implique dor. Exemplo: o comandante de um navio sacrifica a sua vida num naufrágio obedecendo ao imperativo categórico «Salva em primeiro lugar a vida das crianças, mulheres e idosos, em caso de naufrágio do teu navio, e, em último lugar, a tua própria vida».

 

Há três respostas certas nesta pergunta e não uma. É este o tipo de perguntas que se vai colocar aos alunos no exame de filosofia do 11º ano de escolaridade em Portugal? Tão ambíguas e medíocres, fazendo com que os alunos que pensam recebam zero na cotação?

 

 

AS ÉTICAS DE KANT E STUART MILL SÃO EXCLUSIVAMENTE OBJECTIVAS?

 

 

Na proposta de Teste Intermédio 2 (página 26) vem a seguinte questão que pede apenas uma resposta certa:

 

«1.5 Tanto Kant como Mill aceitam:

 

   A. A subjectividade da ética.

   B. A objectividade da ética.

   C. Que a felicidade é o fim a promover.

    D. Que a felicidade não é o fim a promover.»

 

A resposta apontada como solução certa é a B: objectividade da ética.

 

Crítica: Kant e Mill, aceitam ambos, em simultâneo, a subjectividade e a objectividade da ética. Isto é incompreensível para o autor destes testes intermédios, que carece de um pensamento dialético (em cada coisa, há duas facetas contrárias que, em regra, coexistem). Na ética de Kant, é objectiva a fórmula do imperativo categórico «Age como se quisesses que a tua acção fosse uma lei universal da natureza» , a mesma para todo o ser humano, e é subjectiva a máxima, o conteúdo concreto, a coloração que cada um dá ao seu impertaivo categórico.

Na ética de Stuart Mill, é objectiva a fórmula «estender o bem, o prazer, ao maior número de pessoas» e é subjectiva a análise de cada situação concreta. Por exemplo, se um polícia encontrar seis assaltantes a agredir e a roubar duas pessoas algures não segue a regra do prazer do maior número (seis meliantes) dos envolvidos na situação. O polícia tem de defender a minoria agredida, isto exige uma análise subjectiva.

Por conseguinte, as respostas A e B estão correctas.

 

NÃO HÁ ACÇÃO HUMANA SEM INTENÇÃO?

 

Na proposta de teste intermédio 3 (página 29) lê-se a seguinte questão de escolha múltipla:

 

«1.1Não pode haver acção humana sem:

A. Deliberação.

B. Livre-arbítrio.

C. Responsabilidade.

D. Intenção.»

 

A solução apontada como certa é a D: não pode haver acção humana sem intenção.

 

Crítica: Pode haver acção humana sem intenção. Exemplo: durante uma caçada, um dos caçadores tropeça numa pedra, a espingarda que leva dispara acidentalmente e mata o amigo que vai à sua frente. A queda e o disparo, sem intenção, não são acção humana involuntária?

 

 

 

 

CONFUSÃO SOBRE DETERMINISMO MODERADO: ALGUMAS ACÇÕES DETERMINADAS SÃO LIVRES?

 

 

No teste intermédio 3 (pag 29) é colocada a seguinte questão:

 

1.2 O determinismo moderado é uma teoria compatibilista porque diz-nos que:

 

A. Só algumas acções estão determinadas.

B- Todas as acções estão determinadas.

C. Algumas acções determinadas são livres.

D. Algumas acções determinadas não são livres.»

 

A proposta de solução indica como a única correcta a resposta C: «algumas acções determinadas são livres».

 

Crítica: uma acção determinada, isto é, em que o efeito obedece necessariamente a uma causa natural, biofísica, nunca é livre. A acção de comer obedece ao determinismo da trituração dos alimentos na boca e deglutição: não pode ser feita de qualquer maneira, obedece a um determinismo,  a um mecanismo articulado de causas e efeitos.  Livre é a decisão de comer que se toma num dado momento ou a interrupção do acto de comer. A acção determinista nunca é livre: conjuga-se com a liberdade que lhe é exterior. A resposta correcta seria a da alínea A: só algumas acções, a grande maioria, estão inseridas no mecanismo do determinismo, as que consistem no livre-arbítrio não estão sujeitas ao determinismo, articulam-se com este. Jejuar é uma acção livre que põe em movimento o determinismo corporal da autólise: sente-se fome algumas horas depois do início do jejum, essa fome (psicológica) desaparece, o organismo elimina gorduras e tecidos mórbidos (células cancerosas, pús, etc), há uma baixa de açúcar no sangue, etc. O jejum é um acto livre enquanto submetido ao livre-arbítrio, mas em si mesmo não é um acto livre.

 

 

É um medíocre livro de testes intermédios de filosofia do 10º ano do ensino secundário, este, da Porto Editora.  É erróneo fazer este tipo de perguntas de resposta de cruz. Não mede com rigor o grau de saber e de inteligência filosófica do aluno, já que este nem sequer é convidado a justificar a afirmação que escolheu como certa. É a pobreza redutora de uma certa "filosofia analítica" que em muito lembra o ensino de memorização e repetição mecânica nas escolas do Estado Novo (1933-1974)  de Salazar e Caetano. Estes testes intermédios dão uma imagem da fraca qualidade do ensino de filosofia no ensino secundário em Portugal e, sobretudo, da fraca qualidade editorial nesta área, no presente momento.

 

A nível mundial, só uma ínfima minoria de pessoas dentro da área da filosofia pensa verdadeiramente: o resto é mimetismo, fórmulas decoradas, ensino massificador nas escolas, doutoramentos e mestrados em filosofia «copy paste» ou destituídos de originalidade e genialidade, subserviências a filósofos de segunda e terceira categoria. A grande filosofia é e será sempre uma praxis de elite, ainda que a elite tenha por obrigação conservar, purificar e melhorar o legado filosófico de modo a que este  possa penetrar, tanto quanto possível, no povo.

 

 

 

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Domingo, 30 de Janeiro de 2011
Incoerências no imperativo categórico de Kant

Kant formula de três maneiras o imperativo categórico ou imperativo universal do dever e desliza equivocamente entre as várias definições que são inconsistentes entre si. Escreve:

 

«O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.»(...)

«O imperativo universal do dever poderia também exprimir-se assim: Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza(Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, pag 59, Edições 70)

«O imperativo prático será pois o seguinte: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.» (ibid, pag 69)

 

Estas três formulações são inconsistentes entre si. A segunda é absolutamente democrática e igualitarista porque a lei universal da natureza não distingue ricos de pobres, negros de brancos e amarelos: a todos impõe a fome e a sede no curso de algumas horas do dia, a todos impõe o nascimento, o crescimento e a morte, e doenças diversas que não respeitam o indivíduo como um fim em si. A terceira fórmula não é democrática e igualitarista na sua aplicação, uma vez que sendo os indivíduos diferentes entre si e tendo sensibilidades que se opõem mutuamente, respeitar todos como um fim em si significa desenhar uma acção irregular, apoiando alguns mais do que outros, e em muitos casos é mesmo uma fórmula impossível de aplicar. Exemplo: se o Estado, baseado num imperativo universal de "servir o povo através de obras públicas" - aqui a primeira e a segunda fórmula do imperativo valem- expropria terrenos rurais onde há vivendas de famílias a fim de construir uma auto estrada, não trata como um fim em si essas famílias porque lhes impõe uma expropriação contra vontade destas.

 

Logo a terceira fórmula do imperativo, que exige desigualdade entre os indivíduos, um tratamento diferenciado, individualizado, está a ser espezinhada pelas duas fórmulas iniciais. Do mesmo modo, um pai que distribui desigualmente os seus apoios económicos aos filhos, dando, por exemplo, a um o triplo do dinheiro que dá a cada um dos outros porque o beneficiado é pobre e ganha muito menor salário do que os outros viola o princípio da imparcialidade que a primeira e. sobretudo, a segunda fórmula do imperativo categórico supõem.

 

Kant é pois, equívoco, sofístico, quando escreve:

 

«As três maneiras indicadas de apresentar o princípio da moralidade são no fundo apenas outras tantas fórmulas dessa mesma lei, cada uma das quais reúne em si, por si mesma, as outras. (...) (pag 79)

«O princípio : Age a respeito de todo o ser racional (de ti mesmo e de outrem) de tal modo que ele na tua máxima valha simultaneamente como fim em si, é assim no fundo idêntico ao princípio: Age segundo uma máxima que contenha universalmente em si a sua própria validade para todo o ser racional. » (ibid, pag 81; o negrito é de minha autoria).

 

Note-se o deslizar conceptual falacioso de Kant: a primeira fórmula do imperativo é, como vimos no início deste artigo, «Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.» e não como aqui (pag 81) acima se explana: «Age segundo uma máxima que contenha universalmente em si a sua própria validade para todo o ser racional. » A validade universal para mim mesmo, subjectiva e autónoma, virada «para dentro», contida na primeira fórmula, não coincide com a validade universal para cada um dos outros, heterónoma, virada «para fora», contida na terceira fórmula.

 

Na primeira fórmula do imperativo categórico não está contida a premissa de considerar cada pessoa como um fim em si mesma mas sim a premissa de eu, sujeito, me considerar um legislador universal: o fim é a perfeição da minha equidade racional e não cada pessoa de cada um dos outros.

 

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Sábado, 18 de Dezembro de 2010
Éticas deontológicas: a ética da virtude da equidade em Kant e a ética das virtudes em Aristóteles

 Aristóteles classificou a virtude de modo muito semelhante ao que Kant viria a fazer  séculos depois: não como um sentimento espontâneo, nem um talento natural, mas como um hábito de acção. Escreveu:

 

«E posto que na alma há três géneros de coisas somente: afectos, faculdades e hábitos, a virtude há-de ser, necessariamente, algum destes três géneros de coisas. Chamo afectos a avareza, a ira, a sanha, o temor, o atrevimento, a inveja, o regozijo, o amor, o ódio, o desejo, os ciúmes, a compaixão, e geralmente tudo aquilo a que é anexa tristeza ou alegria. E faculdades, aquelas por cujas causas somos nomeados ser capazes destas coisas, como aquelas que nos tornam aptos para nos zangarmos, nos entristecermos ou nos doermos. (...) De maneira que nem as virtudes nem os vícios são afectos, porque, por razão dos afectos, não nos chamamos bons nem maus, como nos chamamos por causa das virtudes e vícios.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro II, Capítulo V, pag 81 do volume I da edição espanhola de Folio)  

«É, pois, a virtude hábito voluntário, que no que nos diz respeito consiste em uma mediania estabelecida pela razão e como a estabeleceria um homem dotado de prudência; e é a mediania de dois extremos maus, um por excesso e outro por defeito.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro II, Capítulo VI, pag 84 do volume I da edição espanhola de Folio; a letra a negrito é por mim colocada.)  

 

Aristóteles diz, pois, que a nossa bondade ou maldade não reside nos instintos - de que os afectos são expressão- nem nas predisposições genéticas orgânicas - as faculdades: a inteligência, a acuidade visual, auditiva, táctil, etc - mas nos hábitos bons (virtudes) ou maus (vícios) que desenvolvemos. Assim ser bom ou mau tem a marca da vontade, do livre arbítrio. Note-se que o termo "virtude" (areté em grego) é, em Aristóteles, um exercício da vontade. Em outros pensadores, a virtude poderá designar o talento inato - a beleza física, a capacidade atlética, a inteligência - mas em Aristóteles não. A diferença entre a "virtude" em Aristóteles e a boa vontade, em Kant, está em que a primeira é uma mediania especificada, - divide-se em espécies: sabedoria, prudência, liberalidade, temperança, etc - substancial, entre o «eu» e os outros «eus» ou entre o «eu» e o seu modelo ideal  e a segunda não, é uma mediania formal, simétrica, entre o «eu» e a totalidade dos «eu» dos outros.

 

Se a ética de Aristóteles se designa por «ética da virtudes» não há razão para não designar a ética de Kant por «ética da virtude da equidade». A equidade é a igualdade de tratamento e benefício para com todos os seres humanos, qualidade que Kant considera ser o pilar da lei moral autêntica de cada um. Ambas as éticas são deontológicas (deón significa dever, corrente, em grego), isto é, assentam no dever, fornecem descrições das situações morais e dos meios ao alcance de cada homem (descritivismo) e prescrevem normas de conduta (prescritivismo). Não pode haver dúvida de que a ética de Aristóteles é deontológica. Na "Ética a Nicómaco" Aristóteles prescreve o dever de obedecer às leis, em particular de ser temperado, não cometer adultério, não fugir, não ofender ninguém, não levantar armas contra outrém:

 

«Porque também manda a lei que se façam as obras próprias do homem valoroso, como não desamparar a ordem, não fugir, não lançar as armas. E também as que são do varão temperado, como não cometer adultério, não fazer afronta a ninguém: do mesmo modo a do varão manso, como não ferir ninguém, não injuriar, e da mesma maneira nos demais géneros de virtudes e vícios, mandando umas coisas e proibindo outras, o que a lei que está bem feita faz bem, e faz mal a que está forjada de forma repentina e sem conselho amadurecido.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro V, Capítulo I, pags 154-155 do 1º tomo da da edição espanhola de Folio; a letra a negrito é por mim colocada.)  

 

Classificar a ética de Aristóteles de "deontológica" não é consensual. Esta encontra-se a meio caminho entre a ética estóica, racionalista ascética, deontológica por excelência (porque razão se considera Kant como o modelo da deontologia e não os estóicos?) e a ética hedonista, sensualista de Aristipo de Cirene.

 

Aristóteles definiu a boa vontade como um "amor sem desejo",  que abarca até os desconhecidos:´

 

«A boa vontade parece-se algo à amizade, mas não o é, porque a boa vontade pode-se ter para com os que não são conhecidos, e pode ser sem que se entenda, mas a amizade não. Mas isto já foi dito. Mas tampouco é aficção, porque a boa vontade não tem porfia nem desejo, mas na aficção ambas estas coisas se acham. Do mesmo modo a aficção vai acompanhada de conversação, mas a boa vontade emerge repentinamente, como acontece entre os que se combatem, aos quais outros se aficcionam e com eles desejam a vitória, mas nem por isso se põem a ajudá-los. Mas, como dissemos, a boa vontade ocorre repentinamente, e os que a têm, amam assim simplesmente, sem afecto. Mas parece que esta boa vontade é princípio da amizade, da mesma maneira que dos amores o é o deleite da vista, porque ninguém ama sem que primeiro se agrade com a vista, e ainda que um se agrade pela visão, nem por isso ama, a não ser quando chega a sentir a ausência, e deseja gozar a presença.  (...) E assim, falando como que por metáfora, poderia alguém dizer que a boa vontade é uma amizade remissiva ou tíbia, a qual, se persevera e vem a confirmar-se como conversação, converte-se em amizade, mas não das que se fundam em utilidade e deleite, porque nestes não há boa vontade. »(Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro IX, Capítulo V, pag 190-191 do volume 2 da edição espanhola de Folio; o negrito é colocado por mim) 

 

A boa vontade em Aristóteles é pois uma atitude benévola, não interesseira, para com qualquer pessoa . Em sintonia com esta noção, Kant escreveu:

«Como a própria lei moral há-de ser o móbil numa vontade moralmente boa, o interesse moral supõe o interesse de uma razão prática simples que seja puro e independente dos sentidos.» (Immanuel Kant, Crítica de la Razón práctica, pag 172, Alianza Editorial; o negrito é de minha autoria).

 

Poderá objectar-se que a boa vontade ou vontade autónoma, isto é, a vontade de fazer o bem ou de fazer justiça sem olhar a quem, na doutrina de Kant, conduz, em certas condições, a atitudes de punição física ou moral de um certo número de indivíduos, incluindo a prisão e a execução. É o caso por exemplo das execuções de colaboracionistas com o nazismo, ocorridas em França em 1944-1946, sob a égide do governo provisório de libertação nacional presidido por De Gaulle: havia que condenar a longas penas de prisão ou fuzilar os que trairam a pátria francesa, colaborando vergonhosamente com a ocupação militar hitleriana. Mas, mesmo nesse gesto punitivo, há benevolência para com os cidadãos em geral, sem discriminações. A punição dos traidores e criminosos publicamente reconhecidos produz bem-estar e tranquilidade nos restantes cidadãos.

  

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Segunda-feira, 28 de Junho de 2010
Lou Marinoff e a distinção equívoca entre ética deontológica e ética teleológica

No seu livro célebre «Mais Platão, menos Prozac» Lou Marinoff, filósofo norte-americano de qualidade mediana, postula a filosofia como método de aconselhamento paralelo à psicologia e à psiquiatria. Não ponho em causa as cinco fases do método teorizadas por ele, isto é, o processo PEACE: Problema, Emoções, Análise, Contemplação, Equilíbrio. Há, evidentemente, docentes de filosofia, filodoxos, não filósofos, com os seus consultórios abertos, movidos exclusivamente pela vontade de ganhar dinheiro, armados de um suposto altruísmo, à custa do método Marinoff, mas isso não invalida este nem retira legitimidade a uma moderada mercantilização do «aconselhamento filosófico».

 

A ÉTICA DEONTOLÓGICA É ESPÉCIE DO GÉNERO ÉTICA TELEOLÓGICA, CONTRA O CONSENSO GERAL NA ÉTICA TEÓRICA

 

Como teórico, Marinoff mergulha no magma da relativa confusão em que borbulham os principais catedráticos da ética a nível mundial, ao estabelecer uma diferença ao mesmo nível ( de espécie a espécie do mesmo género) entre ética deontológica e ética teleológica. Escreveu:

 

«Mesmo sabendo o que é bom , continuaremos a enfrentar um dilema: a escolha entre dois meios principais de compreender o que é justo. Estes dois meios são a ética deontológica e a ética teleológica.»

«Os deontologistas crêem que a correcção ou incorrecção do acto não têm nada a ver com o bom ou o mau resultado que ele provoca, os actos são bons ou maus por si próprios. Assim se, por exemplo, aceitarmos os Dez Mandamentos, dispomos de um conjunto de regras que nos dizem o que está certo e o que está errado, ainda antes de cometermos o acto. Mas os manuais de regras também não ajudam muito, pois quase todas as regras têm excepções. Se, na sua maioria, as pessoas concordam com as regras básicas (por exemplo: "Não matarás"), é também a maioria que quer ver algumas excepções consagradas na lei (por exemplo: autodefesa, guerra, aborto, eutanásia). Os deontologistas podem até acabar por se matarem uns aos outros, por não chegarem a acordo sobre as excepções à regra (" Não matarás"). A força da deontologia está em dispor de princípios morais; a sua fraqueza reside na dificuldade em estabelecer um conjunto de excepções aproveitável.»

 

«Os teleologistas sustentam que a correcção ou incorrecção do acto dependem, em parte, ou mesmo completamente, da bondade ou da maldade do resultado. Se, por exemplo, aceitarmos o utilitarismo ("a maior felicidade para o maior número"), somos teleologistas. Enquanto um deontologista podia facilmente condenar o Robin dos Bosques (porque roubar é um crime) o teleologista esperaria até ver que destino ele dava ao produto do roubo. Se o Robin dos Bosques abrisse uma conta num banco suíço, o teleologista diria que, por ter roubado para ter proveito pessoal, ele era um criminoso; se o Robin distribuísse o saque pelos pobres, o teleologista diria que ele era um justo, que só estava a ajudar os outros." (Lou Marinoff, «Mais Platão, menos Prozac», Editorial Presença, pag. 193; a letra negrita é colocada por mim).

 

Está correcta a distinção entre éticas deontologistas e éticas teleologistas, consensual a nível mundial? A meu ver, não. Toda a ética é teleológica ou teleologista isto é visa atingir determinados fins. Inclusive a ética de Kant, tomada como modelo contemporâneo da ética deontológica.

Kant descreveu como imperativo categórico o seguinte princípio: «Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal» (Kant, Crítica da Razão Prática, parte I, livro I, A 55).  Ele dá-nos a finalidade - a equidade no comportamento para com os outros, a transmissão do bem fazer ou do bem punir sem olhar a quem, isto é, iluminada por um ideal de justiça universal-  e esconde os meios, o conteúdo deontológico concreto, que deixa ao critério de cada um. Como não será, pois, uma ética teleológica a ética de Kant? Nela os fins universais e altruístas são mais importantes que os meios, ao contrário do que se diz habitualmente.

 

Por outro lado, a ética de Stuart Mill, igualmente teleológica mas eivada de pragmatismo, tem uma dimensão deontológica. Buscando a felicidade da maioria em cada circunstância, Mill sustenta que nem sempre os fins justificam os meios, isto é, não vale todo e qualquer meio ou método. Confusamente, os sucessores de Mill vieram dividir a árvore do utilitarismo em dois ramos - o utilitarismo dos actos e o utilitarismo das regras - sem perceberem ou sem quererem reconhecer que este último é deontologismo.

 

Se a distinção de Marinoff e dos teóricos da ética em geral entre deontologismo e teleologismo é equívoca, qual é então a distinção certa?

É aquela que coloca a deontologia como espécie dentro do género ética teleológica ou ética de fins. Assim há uma ética teleológica «deontológica»  rígida em Kant, defensora dos direitos individuais, e uma ética teleológica pragmática, flexivelmente «deontológica», defensora do primado do direito colectivo do maior número, em Stuart Mill.

 

HÁ UM INTERMÉDIO ENTRE ABSOLUTISMO E RELATIVISMO TOTAL,  QUE MARINOFF NÃO DISCERNE

 

Sobre a oposição absolutismo-relativismo nos valores éticos, escreveu Marinoff:

 

«A Sonia e a a Isabelle estavam envolvidas numa das batalhas tradicionais da filosofia: relativismo contra absolutismo. Os relativistas argumentam que os princípios e os actos não são intrinsecamente certos ou errados, que são as culturas e os indivíduos que lhes atribuem valor (por exemplo: a beleza está nos olhos de quem a vê). Nesta linha de pensamento nenhuma coisa é, de per si, melhor ou pior do que outra coisa. Os preceitos estéticos e morais a que obedecemos são de nossa responsabilidade, não podem ser julgados de maneira objectiva.»(Lou Marinoff, «Mais Platão, menos Prozac», Editorial Presença, pag. 141; a letra negrita é colocada por mim).

 

As coisas não são exactamente o dualismo simplista que Marinoff, neste texto, e outros delineiam. Há um intermédio entre absolutismo e relativismo total, tal como há um intermédio entre a ditadura totalitária (nazi-fascista, estalinista ou teocrática) e o anarquismo, intermédio que é a democracia liberal. Esse intermédio é  o relativismo ancorado no absolutismo - um relativismo dogmático - que se distingue do relativismo total, flutuante sobre a nuvem do cepticismo.

Por exemplo, matar é intrinsecamente errado na ética utilitarista mas pode ser extrinsecamente correcto, segundo esta ética, em certas circunstâncias. Os princípios absolutos não desapareceram no relativismo de Mill: as suas posições, a sua influência é que sofrem variação e daí  que em certas circunstâncias, seja legítimo (de um ponto de vista extrínseco) matar seres humanos e em outras, não.

 

FALTA DE CLAREZA SOBRE O SIGNIFICADO DE METAÉTICA

 

Marinoff emprega de forma confusa, o termo meta-ética:

 

«Então, em que ficamos na nossa busca de vida dos justos? Adoptamos o relativismo meta-ético, se queremos usar um termo técnico. Como vimos no Capítulo 8, o relativismo é a doutrina que nega a existência do bem absoluto, que defende que, conforme as circunstâncias, certos actos são mais apropriados do que outros. Se conseguir imaginar que algumas vezes a deontologia funciona melhor que a teleologia, enquanto que noutros casos se dá o inverso, então o leitor é um relativista metaético.» (Lou Marinoff, «Mais Platão, menos Prozac», Editorial Presença, pag. 193-194; a letra negrita é colocada por mim).

 

Metaética não é oscilar entre duas posições éticas, o deontologismo de Kant e o utilitarismo de Mill, como sustenta Marinoff. Quem oscila, está circunscrito ao campo da ética. Metaética é o que transcende a ética, constitui o seu enquadramento ou o seu horizonte, sem ser ética. Por exemplo, a determinação da existência e da importância de livre arbítrio e determinismo na acção humana é um problema metaético, enquanto ontologia. A biologia, a geografia, a geologia, a astrologia real ( a influência real dos astros no comportamento humano, excluindo ou reduzindo o livre-arbítrio), a química, são componentes da metaética.

 

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Segunda-feira, 5 de Março de 2007
Difere, no essencial, a ética das virtudes de Aristóteles da ética deontológica de Kant?

É habitual, nos actuais manuais de ética, estabelecer uma divisão triádica entre as correntes éticas: ética das virtudes, ética deontológica e ética consequencialista.

 

Tomemos, por exemplo, a explanação «RAZÕES PARA O UTILITARISMO:UMA AVALIAÇÃO COMPARATIVA DE PONTOS DE VISTA ÉTICOS» de Claudio F. Costa (Universidade Federal do Rio Grande do Norte):

 

 

«É comum que da boa intenção se siga a boa ação e que desta última se siga um bom resultado e vice-versa. Por causa disso, teorias éticas podem identificar o locus primário do valor moral nas disposições de caráter do agente, das quais emerge a sua intenção, no tipo de acção que ela produz, ou na conseqüência resultante da acção. No primeiro caso temos as éticas da virtude, no segundo as éticas deontológicas ("deon" = dever) e no terceiro as éticas teleológicas (´telos`=objectivo, fim) ou consequencialistas. »

 

   

 

Esta  divisão triádica é errónea: na verdade, não há nenhuma distinção essencial entre ética das virtudes e ética deontológica. São uma só. A virtude não é apenas cultivada por Aristóteles mas também por Kant. O imperativo categórico kantiano é uma regra que deriva da virtude da equidade racional para com toda a humanidade. Separar a «virtude» do «tipo de acção» que ela produz é um erro de hiperanálise ( divisão mecanicista do que é indivisível). É como separar o braço da mão - esta está contida no braço. A virtude é a acção, racional e benévola, que se repete indefinidamente. Aristóteles sustentou que «a virtude do homem será hábito que faz o homem bom e com o qual executa o homem o seu ofício bem e perfeitamente.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco I, Livro II, Capítulo VI).

 

  

 

Vejamos como Claudio F.Costa define as éticas da virtude:

 

«1. Éticas da Virtude

 

«A ética da virtude teve a sua origem entre os filósofos gregos, principalmente em Aristóteles(1), tendo sido redescoberta contemporaneamente por filósofos como G. E. M.Anscombe(2) e Alasdair McIntyre(3). Ela deixa de localizar o centro irradiador do valormoral no agir para localizá-lo no ser daquele que age. Ela se resume no dito "O que vale é a intenção". O que vale não é o que o agente faz, mas as disposições de caráter que determinam motivos ou intenções das quais resultam as ações que possibilitam às pessoasviverem bem em uma sociedade. Essas disposições chamam-se virtudes. Virtudes podem ser morais e não-morais. Virtudes morais são a bondade, o senso de justiça, a sinceridade, a honestidade, a fidelidade, a lealdade... E virtudes não-morais são a coragem, a força de vontade. Muitos consideraram a bondade e o senso de justiça as duas virtudes morais cardinais(4). Essas duas virtudes parecem, ademais, ser interdependentes, pois uma boa pessoa, para escolher as boas ações, precisará possuir senso de justiça e ninguém deseja o zelo justiceiro sem magnanimidade de um inquisidor». (Cláudio F.Costa; o negrito é colocado por mim).

 

 Note-se que a frase «O que vale não é o que o agente faz, mas as disposições de caráter que determinam motivos ou intenções das quais resultam as ações que possibilitam às pessoas viverem bem em uma sociedade» está errada. A virtude não é só intenção: é intenção mais acção. Se ficarmos apenas pela intenção, sem agir, isso não é virtude, mas vício de preguiça, omissão de auxílio a outrém ou coberdia.

 

Esta ética aristotélica não é senão ética deontológica (deón, dever, em grego). Também Kant coloca o centro de gravidade da ética na acção subordinada à intenção moral. E aí nada o diferencia de Aristóteles e de muitos outros filósofos. A ética de Kant é apenas uma modalidade dentro desta ética pluralista das virtudes: aquela modalidade que eleva a equidade, o querer agir de forma universal, sem distinções de pessoas, à categoria de virtude maior. A ética de Kant é a ética das virtudes do iluminismo, a ética personalista da sociedade burguesa, formal, isto é, abstracta, vazia, para  permitir que cada pessoa construa uma máxima ou norma moral pessoal que a satisfaça no quadro do respeito pelos direitos de todas as outras.

  

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