Já em artigo intitulado «Ser aí (Dasein) e pre-sença em Heidegger», publicado em 4 de Fevereiro de 2006, neste blog, frisei a incorrecção na versão brasileira de «Ser e Tempo» que constitui traduzir Dasein por presença. Escrevi:
«Na versão brasileira da editora «Vozes», a tradutora Márcia de Sá Cavalcante opta por substituir a expressão «ser-aí» por «pre-sença» na tradução da palavra Dasein e justifica-se assim:
«Pre-sença não é sinónimo de existência e nem de homem. A palavra Dasein é comunmente traduzida por existência. Em Ser e Tempo , traduz-se em geral, para as línguas neolatinas pela expressão "ser-aí", être-là, esser-ci, etc. Optamos pela tradução de pre-sença pelos seguintes motivos: 1) para que não se fique aprisionado às implicações do binómio metafísico essência-existência;(...)4) pre-sença não é sinónimo nem de homem, nem de ser humano, nem de humanidade, embora conserve uma relação estrutural. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade.»( Nota N1 de Márcia de Sá Cavalcante in M. Heidegger, O Ser e o Tempo, parte I, Pág. 309).
Designar o ser aí por presença é limitar ao momento presente a caracterização do Dasein e é colocar-se sob o fogo da crítica do próprio Heidegger, que escreveu ao criticar a ontologia tradicional que concebia o ente como presença:
«Então torna-se patente que a interpretação antiga do ser dos entes se orienta pelo mundo ou pela natureza no sentido mais amplo, e que, com efeito, extrai do tempo a compreensão do ser. A prova extrínseca disso mas somente disso é a determinação do sentido do ser como parousia ou ousia, que significa ontológico-temporalmente presença. O ente concebe-se enquanto ao seu ser como presença, quer dizer, compreendemo-lo por respeito de um determinado modo do tempo, o presente. (Martin Heidegger, O Ser e o Tempo, Fondo de Cultura Económica, Págs 35-36).
Heidegger foi muito claro ao definir Dasein como cada homem, ao contrário do que acima escreveu Márcia Cavalcante:
«O ser aí (Dasein), quer dizer, o ser do homem, define-se na definição vulgar, do mesmo modo que na filosófica, como zoón logón ékon, o ser vivo cujo ser está definido sobretudo pela faculdade de falar.»
(Martin Heidegger, O Ser e o Tempo, Fondo de Cultura Económica, Págs 36).
Pre-sença não é, pois, termo adequado para exprimir a ek-sistência do homem, isto é, a sua natureza de ente lançado pelo ser na clareira que é mundo. Na carta a Jean Beaufret, de 23 de Novembro de 1945, Martin Heidegger escreveu:
«"Da-sein" é uma palavra chave no meu pensar, por isso ela é causa de graves erros de interpretação. "Da-sein" não significa para mim exactamente "eis-me" mas se é que me posso exprimir num francês impossível: ser-o-aí e o-lá significa exactamente aleteia, desvelamento-abertura.» (Heidegger, in Carta sobre o Humanismo, anexo, Guimarães Editores, pág 129).
Quem opera a aleteia ou desvelação do ser? Não é o cão, nem o gato, nem Deus, mas sim o homem, o ser-aí, o-lá. Se o ser para os gregos era designado como presença não faz sentido designar o ser-aí, que é distinto do ser, por presença.
A NEBULOSIDADE DE HEIDEGGER SOBRE A CONEXÃO ENTRE SER E TEMPO E SOBRE A NATUREZA DO TEMPO
Já afirmei que as acusações de Heidegger à ontologia tradicional de esta «confundir o ser com o tempo», ou de «extrair do tempo a compreensão do ser» isto é, de misturar a água corrente do tempo com a pedra do ser, são infundadas. Se a pedra está dentro da água, como realmente sucede, é deslocada, revirada, desgastada por esta e esse facto não pode ser escamoteado. Não é possível determinar o ser sem o visualizar ou conceber através do vidro ou do rio móvel do tempo. Platão só determinou o ser que não é Deus, o demiurgo, mas sim o conjunto das formas imóveis e eternas: o Belo, o Bem, o Justo, a Proporção, o Sábio, etc. porque o comparou com o tempo e o isolou das coisas mutáveis sujeitas ao devir do tempo. O ser imóvel o ser concebe-se a partir do ser móvel o tempo ou o ser revestido de tempo. Há um carácter temporal do ser a mutabilidade da sua essência e por isso o tempo não é extrínseco ao ser no seu todo mas apenas a um núcleo central do ser, do mesmo modo que os raios da roda da bicicleta giram e não são extrínsecos à roda mas sim ao centro desta donde partem. Não existe tempo puro mas sim tempo-matéria. Se a matéria e qualquer outra forma de existência desaparecer não há tempo. Este é, por assim dizer, um acidente essencial do ser.
Se considerarmos os diversos estádios de desenvolvimento do ser humano infância, meninice, adolescência, juventude adulta, meia idade, velhice como as facetas do «cubo» do ser antropológico é fácil perceber que só o tempo faz girar as faces do cubo, expondo, numa sequência, os diversos estádios do ser.
É paradoxal a definição que Heidegger fornece do tempo:
O tempo não está diante dos olhos, nem no sujeito, nem no objecto, nem dentro, nem fora e é anterior a toda a subjectividade e objectividade, porque representa a própria condição da possibilidade de este anterior. Tem em geral um ser? E se não, é um fantasma, ou é mais que todo o possível ente?» ( ) Antes de tudo trata-se de compreender que a temporalidade, enquanto horizontal-extática, temporaliza o que chamamos um tempo mundano, que constitui a intratemporacialidade do ao alcance da mão e do diante dos olhos. (Martin Heidegger, O Ser e o Tempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 452).
O tempo original é a eternidade imóvel de Platão. Mas Heidegger hesita em identificar o tempo original com a eternidade do ser arquetípico. Parece não se aperceber disso. A temporalidade original é, pois, uma intemporalidade: se temporaliza o tempo mundano é porque se decompõe neste. Como intemporalidade, a temporalidade original é a forma imutável do ser, confunde-se com este, com os arquétipos. O tempo original é ser. É, não a forma do ser, mas a constância ou imutabilidade da forma. É pois um acidente essencial, intrínseco, na ousía que é o ser. Mas Heidegger é incapaz de precisar isto, de admitir esta fusão, este ponto inicial donde dimanam como feixes divergentes o ser e o tempo. Fulmina os leitores com a expressão «temporalidade horizontal-extática» que significa, confusamente, que o tempo original é um êxtase do ser, vem depois deste. Não é. Se entendido como eternidade, o tempo original é uma propriedade do ser. Nem o ser imóvel é anterior à eternidade nem esta é anterior àquele.
Heidegger escreve, ao criticar Hegel:
«O espírito não cai no tempo, mas existe como temporalização original da temporalidade. Esta temporaliza o tempo mundano, em cujo horizonte pode aparecer a história como um gestar intratemporal. O espírito não cai no tempo, mas a existência fáctica cai, na queda, a partir da temporalidade original e própria.» ((Martin Heidegger, O Ser e o Tempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 459).
Este espírito a que Heidegger se refere nem sequer é identificado como o ser. Mas é a máquina temporalizadora, isto é, fabricante do tempo vulgar que parece ser, aos olhos do vulgo, uma sucessão uniforme e infinita de agoras do passado até ao futuro. O espírito será um intermediário entre o ser e o tempo vulgar. É, aparentemente, a componente, o substrato imutável do «ser-aí», o a priori, que escapa à facticidade (o ter este corpo e este psiquismo, esta família, esta localidade, esta profissão, etc).
O tempo original foi interpretado por Heidegger como númeno: nem objectivo, nem subjectivo, nem dentro, nem fora e anterior à divisão entre sujeito e objecto (na gnoseologia de Kant: anterior à divisão fenómeno (a posteriori) / formas a priori da sensibilidade [espaço, tempo]). Esta concepção corresponde exactamente ao mundo do Mesmo em Platão, o mundo anterior ao tempo, aos céus com os movimentos astrais, que formam o Mundo do Semelhante, e à terra.
Ao invés de Heidegger, Wittgenstein produziu uma notável interpretação do tempo, fisicalizando-o, tomando-o como uma forma dos objectos:
«Espaço, tempo e cor (coloração) são as formas dos objectos.» (Ludwigg Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico; Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, Gulbenkian, Lisboa, 1987, pag 33).
Se os objectos, metafisicamente considerados, como arquétipos, constituírem o ser é fácil perceber que o tempo é uma forma desses objectos na realidade, uma sucessão de formas, o movimento destas como auto-transformação. Há que meditar a definição de Platão, no «Timeu», do tempo como "imagem móvel da eternidade". A imagem é uma forma e, neste caso, uma forma móvel. Assim, o tempo não é o número que segue o movimento como teorizou Aristóteles mas a forma mutante: não é aritmética, mas geometria.
A natureza do tempo é formal-substancial, forma substancial das coisas, formalidade mutável, móvel. Mas para Heidegger o tempo original é informal, anterior à matéria e traduz-se no espírito gerador da temporalização, espírito cuja ligação ao ser permanece nebulosa, enigmática.
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