Diversos equívocos caracterizam o manual do professor da Porto Editora «Ousar saber, filosofia 11º ano» de João Simas, Luís Salvador, Artur Morão, André da Silva Costa, José Manuel Moreira, com revisão científica de Mendo Castro Henriques, sem embargo de possuir alguns textos de boa qualidade.
AMBIGUIDADE E ERRO EM PERGUNTAS DE ESCOLHA MÚLTIPLA
Diversos erros pautam exercícios com questões de escolha múltipla neste manual. Vejamos exemplos:
«Assinala com uma cruz a opção correcta.»
«1. Um argumento por analogia é um argumento...
A) dedutivo que faz uma comparação entre realidades diferentes.
B) não dedutivo que parte de diferenças significativas entre realidades análogas.
C) dedutivo que parte de um certo número de parecenças entre realidades díspares.
D) não dedutivo que parte de parecenças entre realidades dispares.»
(João Simas, Luís Salvador, Adelino Cardoso, Artur Morão, André da Silva Costa, José Manuel Moreira, «Ousar saber, filosofia 11º ano», Parte 2, com revisão científica de Mendo Castro Henriques, Porto Editora, p. 74).
O manual não indica «a única resposta correcta»... Porquê? Receio de revelar a fragilidade de um pensamento hiper-analítico e deformador da realidade?
Crítica minha: Há duas respostas correctas: B e D. São quase indistinguíveis uma da outra: a analogia é uma semelhança intuída superiormente (ana, para cima) entre dois entes ou situações diferentes entre si. Por exemplo: o homem é análogo ao chimpanzé, possuem dentição e tubo digestivo de 6 a 8 metros de comprimento, mãos, nariz, etc. Portanto, a pergunta está mal construída.
Vejamos outro exemplo.
«Assinala com uma cruz a opção correcta.»
3. A manipulação pode ser definida como...
(A) a imposição de uma tese a um dado auditório.
(B) o contrário da sedução.
(C) a livre aceitação de uma tese por parte de um auditório.
(D) o contrário de demagogia.»
(João Simas, Luís Salvador, Adelino Cardoso, Artur Morão, André da Silva Costa, José Manuel Moreira, «Ousar saber, filosofia 11º ano», Parte 2, com revisão científica de Mendo Castro Henriques, Porto Editora, p. 105 )
Segundo os autores do manual, só uma resposta está correcta mas não dizem qual.
Crítica minha: ao contrário deste manual que sustenta só uma hipótese correcta, há duas respostas correctas: A, C. De facto, a manipulação pode ser uma imposição do tipo «Ou aceitam um corte de 20% nos vossos salários ou eu, empresário, serei forçado a despedir dois terços dos trabalhadores». Mas também pode ser ou incluir a «livre aceitação de uma tese por parte de um auditório» como, por exemplo, o argumento manipulatório pró-vacinação «Deves vacinar-te porque os vírus atenuados e as toxinas da vacina ensinam o teu corpo a defender-se contra uma versão maior dessa doença». A apologia da vacinação é uma manipulação de milhões de pessoas com aceitação livre dos argumentos por parte desses milhões.
Persuasão racional não se opõe a manipulação porque esta inclui, muitas vezes, a persuasão racional. Manipulação opõe-se a não manipulação ou seja, a aleteia (desvelação da verdade) e heurística, descoberta da verdade por si mesmo.
HIPER-ANALITISMO NA DESCRIÇÃO DO ACTO COGNTIVO
A descrição do acto cognitivo neste manual padece de hper-analitismo, isto é, fragmentação excessiva de aspectos de um mesmo conceito, uma vez que oferece nove determinações ou momentos daquele acto, sem distinguir a substância do acidente, o sujeito do predicado:
«Momentos intrínsecos à actividade cognitiva
Imaginemos uma cena de laboratório (de física, de química, de biologia, erc).
a) Nos que ali trabalham, com empenho, concentração e entusiasmo, conseguimos reconhecer, em primeiro lugar, o momento psicológico: vibra no esforço e no desejo de entender, umas vezes no desânimo (...)
c) também lá se agita o momento pessoal, que muitos filósofos olham com desconfiança no plano cognitivo (...)
h) E, claro, da faina científica não podia estar ausente o momento metafísico que, de certo modo, está subjacente a todos os outros (...)
i) Rematando o processo cognitivo, emerge finalmente o momento transcendental: constitui o cerne da consciência (do cientista enquanto homem pleno) (...)
(João Simas, Luís Salvador, Adelino Cardoso, Artur Morão, André da Silva Costa, José Manuel Moreira, «Ousar saber, filosofia 11º ano», Parte 2, com revisão científica de Mendo Castro Henriques, Porto Editora, pp. 239-242 )
Há certa confusão neste texto. Se, ao contrário do que o texto indica, o momento psicológico está contido no momento pessoal, porque hão-de estar separados nesta divisão como alíneas distintas? A pessoa é substância e a sua psique, um estado de alma, é qualidade, acidente dessa substância.
O momento transcendental está contido no momento metafísico, é por assim dizer, a metafísica interna do sujeito, - se por transcendental entendermos não o transcendente, o que está além de e fora de, mas a estrutura originária, a priori, do sujeito ou da relação sujeito-objecto. Não há pois razão para colocar metafísico e transcendental como momentos do conhecimento com igual estatuto, em alíneas separadas.
OCULTAÇÃO DA ESSÊNCIA DO PENSAMENTO DE PAUL FEYERABEND
Este manual refere o filósofo Paul Feyerabend, maior em amplitude pensante que Karl Popper e Thomas Khun, de forma superficial e parcelar:
«...o filósofo austríaco Paul K. Feyerabend (1924-1994) . Diz ele: "a ciência é uma empresa essencialmente anarquista, "houve teorias científicas que se impuseram apesar de numerosas incoerências", "todas as metodologias têm os seus limites, e a única regra que sobrevive é: tudo serve!" E juntamente com Kuhn partilha a ideia da incomensurabilidade das teorias, ou seja, que elas não são comparáveis...»
(João Simas, Luís Salvador, Adelino Cardoso, Artur Morão, André da Silva Costa, José Manuel Moreira, «Ousar saber, filosofia 11º ano», Parte 2, com revisão científica de Mendo Castro Henriques, Porto Editora, p. 236 )
Não é verdade que Paul Feyerabend defendesse a incomensurabilidade das teorias tal como Thomas Khun. No seu livro «Diálogo sobre o método», Feyerabend afirma, ao contrário de Kuhn e de Popper, o carácter científico da astrologia (não da astrologia comercial, degradada). Por isso, entre o paradigma astrológico, determinista, e o paradigma anti-astrológico, indeterminista, ele optou a favor do primeiro, porque é mensurável e não incomensurável. Escreveu, para demonstrar o princípio de que os astros (em cima) influenciam decisivamente os fenómenos terrestres (em baixo):
«Tomemos a ideia de que os cometas anunciam guerras .(..) Acreditava-se que os cometas eram fenómenos atmosféricos, uma espécie de incêndio nas camadas superiores da atmosfera. (...) Ademais a excessiva quantidade de fogo e os movimentos da atmosfera alterariam a normal composição de esta e afectariam o metabolismo de homens e animais. (...) As pragas propagar-se-iam mais facilmente, o sobreaquecimento do ar originaria também um sobreaquecimento dos cérebros que, por sua vez, provocaria um aumento de decisões irresponsáveis entre os homens poderosos, o que significaria em uma palavra, a guerra. É possível que a aparição de quatro ou cinco cometas se tenha visto acompanhada dos fenómenos descritos anteriormente. De facto, Kepler, que acumulou uma grande quantidade de material importante, advertiu sobre estas relações e utilizou-as quando tratou de edificar uma astrologia empírica.» (Paul Feyerabend, Diálogo sobre el método, Ediciones Cátedra, Madrid, pág. 90).
De igual modo, entre as medicinas alternativas e naturais (acupunctura, naturopatia, ervanária, etc) e a medicina ultramoderna das biópsias, raios X, medicação quínica, Feyerabend pronunciou-se a favor da superioridade das primeiras e da perigosidade das segundas e do tratamento em hospitais. Criticando o erro ( a fé) da medicina universitária actual encontrar uma causa local específica para cada tipo de doença e recusar a ideia de Hipócrates de que a causa de todas as doenças é geral e uma só (a intoxicação dos humores, líquidos que banham os orgãos corporais), Feyerabend escreveu:
« Outro exemplo é a fé de que a investigação científica, não a experiência clínica, leva a descobrir os melhores tratamentos. Estreitamente relacionada com esta fé se encontra a ideia de que toda a doença tem uma causa próxima, que é altamente teórica e que se deve descobrir. Como se supõe que o diagnóstico revela a causa próxima, eis que se fazem radiografias, explorações cirúrgicas, biópsias e outras estupidezes do estilo.»
(Paul Feyerabend, Diálogo sobre el método, Ediciones Cátedra, Madrid, pág. 41).
Este conteúdo essencial do pensamento de Feyerabend , isto é, apologia da astrologia e da medicina natural, é ocultado neste manual, como em todos os outros manuais de filosofia do ensino secundário, porque fere a ideologia dominante dos interesses dos grandes laboratórios e das classe médicas, académico-catedrática e política que os representa. A universidade é, com a alta-roda da política, serva da indústria e do poder da finança. Não existe neutralidade nos currículos da universidade, em termos globais. Os manuais de filosofia em vez de serem contrapoderes teoréticos são vergonhosos agentes de doutrinação da ideologia dominante da democracia formal em que vivemos, democracia sequestrada.
A filosofia analítica contemporânea, juntamente com a fenomenologia, mais uma vez o dizemos, não é neutra: é a ideologia universitária da burguesia mundialista, está a monitorizar o ensino da filosofia, expurgando-o de astrologia, anarquismo, marxismo, esoterismo tradicional (Julius Évola, René Guenon, Jean Hanu, etc), sociologia holística (Ivan Ilich, etc), antroposofia, e de todo o pensamento metafísico livre ou não alinhado em geral. Vivemos, pois, sob um criptofascismo académico que proibe pensar em modo holístico livre e em certas áreas do conhecimento.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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