Úma falácia em voga entre os "novos filósofos" da ética é a distinção entre utilitarismo dos actos e utilitarismo das regras. No prefácio de "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", de Kant, publicado por Edições 70, Pedro Galvão, da Universidade de Lisboa, escreveu, com a supervisão ou cooperação de Desidério Murcho:
«Um defensor do utilitarismo dos actos, dado que pensa que um acto é moralmente presumível apenas se maximizar a felicidade geral, tem de defender o seguinte:
«1. É permissível fazer seja o que for (ex, mentir, roubar, trair) se fazê-lo for útil para promover a felicidade geral.
«2. É obrigatório fazer tudo o que esteja ao nosso alcance (por muito sacrifíciopessoal que isso envolva) para promover a felicidade geral.»
«A alternativa principal ao utilitarismo dos actos é a deontologia, uma perspectiva que se caracteriza em parte pela oposição a estas duas teses. E Kant, sem dúvida, diria que o imperativo categórico conduz a uma perspectiva deontológica, e não ao utilitarismo dos actos (Pedro Galvão, Prefácio de "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", de Kant, pag XVIII, Edições 70; o negrito é da minha autoria).
Aquilo que Pedro Galvão define como utilitarismo dos actos não é utilitarismo. Porque o utilitarismo comporta em si mesmo uma deontologia, não é uma mera obtenção de resultados. Proporcionar a felicidade a uma maioria, sem olhar a meios, não é a doutrina de Stuart Mill. Este escreveu referindo-se ao indivíduo e aos seus desejos de dinheiro, poder, fama e outros:
«..Nada há que faça tão benéfico aos outros como o cultivo do amor desinteressado à virtude. E, por consequência, a doutrina utilitária, embora tolere e aprove estes outros desejos adquiridos, até ao ponto para além do qual se tornariam mais prejudiciais do que conducentes à felicidade geral, ordena e exige o cultivo do amor à virtude, até ao máximo que for possível, porque a considera acima de todas as coisas importantes para a felicidade geral.» (Stuart Mill, Utilitarismo, Atlântida, pag 64; o negrito é posto por mim).
Esta citação prova que o utilitarismo possui uma deontologia: cultivar a virtude e aplicá-la em proveito da maioria dos sujeitos envolvidos numa dada situação. É pois um erro instituído no campo da ética académica a dicotomia moral utilitarista/ moral deontológica. O utilitarismo de Mill, tal como o prescritivismo universalista de Kant, são ambos éticas deontológicas, O que Pedro Galvão denomina "utilitarismo dos actos" é hedonismo amoral de maiorias: é suscitar, através do vício, a felicidade geral da maioria. Não é utilitarismo, mas pragmatismo sem escrúpulos.
Decerto, o equívoco de Pedro Galvão e Desidério Murcho é o reflexo do equívoco de Simon Blackburn, o catedrático inglês, cujas posições fielmente reproduzem. Blackburn escreve no seu "Dicionário Oxford de Filosofia":
«utilitarismo dos actos Versão do utilitarismo especialmente associada a Bentham, de acordo com a qual a medida do valor de um acto consiste no grau em que este aumenta a utilidade ou felicidade geral. Um acto deve ser preferido a actos alternativos em função da maior felicidade que proporciona comparativamente a eles. Uma acção é asim boa ou má proporcionalmente ao grau em que aumenta ou diminui a felicidade geral, comparado com o grau que poderia ter sido alcançado ao agir-se de modo diferente. O utilitarismo dos actos distingue-se não apenas por sublinhar a utilidade, mas pelo facto de cada acção individual ser o objecto primitivo da avaliação ética. Isto distingue-o dos vários tipos de utilitarismo indirecto, bem como dos sistemas éticos que dão prioridade ao dever ou à virtude pessoal.» (Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, páginas 447-448, Gradiva; a letra negrito é de minha autoria).
Esta definição de Blackburn é vaga. Não se percebe nela a diferença entre utilitarismo e utilitarismo dos actos. Nem sequer refere que «os piores meios servem, desde que se atinjam os fins práticos» como teoriza acima Pedro Galvão ao definir "utilitarismo dos actos". Blackburn tem erudição mas carece de profundidade de pensamento, de espírito de síntese radical e dialéctico.
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O termo «consequencialismo» não é inteiramente apropriado para definir o utilitarismo. Há que distinguir entre o término da acção, que muitas vezes é a sua causa final - em sentido aristotélico - ou objectivo final, e consequência da acção, que é posterior à acção.
Ora, para o utilitarismo o essencial é o término da acção, em que se colhem os frutos do movimento empreendido, e não a consequência mais ou menos distante.
Decerto, pode dizer-se que o término da acção é uma consequência do seu início. Mas há a consequência externa, a posteriori, que está totalmente fora da acção e o termo "consequencialismo" pode referir-se a esta. Por isso, é um termo ambíguo.
Há muitos actos utilitaristas que não são consequencialistas, mas de imediatismo hedonista, de actualismo (a realidade reduz-se ao acto, à acção presente). Por exemplo, a política seguida pelo Estado português na última década do século XX e na primeira década do século XXI de recorrer massivamente ao crédito junto da União Europeia a fim de investir e desenvolver económica e tecnologicamente o país foi utilitarista - de um utilitarismo capitalista, bem entendido - mas não, em rigor, consequencialista. As consequências chegam agora: os pesados encargos da dívida externa, que levarão o país à falência, a curto prazo.
Se um grupo de pessoas esfomeadas assalta um pomar privado e rouba grandes quantidades de fruta para saciar a fome, é um acto utilitarista, visto que visa o princípio da maior felicidade para esse grupo. Mas, subjectivamente, não é um acto consequencialista: as consequências não foram devidamente meditadas ou, se o foram, ficaram secundarizadas. A consequência dessa acção de apropriação de fruta- diferente do término, que é a ingestão hedónica da fruta - é o julgamento em tribunal dos autores dessa violação de propriedade privada agrícola e a sua provável condenação.
O utilitarismo não é, portanto, na essência, um consequencialismo: às vezes é-o, outras vezes não. É um actualismo hedonista, um fruicionismo. Ao invés, as morais cristã, budista, islâmica, na medida em que freiam os prazeres sensíveis imediatos, são consequencialistas: pensam nas consequências do «pecado» ou «vício» do adultério, da luxúria, da gula ou da ira, actos e estados de espírito que não permitirão ao crente alcançar o Paraíso ou o Nirvana. A deontologia das religiões - cumprir a Bíblia, o Alcorão ou os Vedas - deriva exactamente da percepção das consequências de certos actos e estados de alma. O dever funda-se pois no prazer prometido da beatitude celeste e na dor anunciada do inferno metafísico ou da roda das reencarnações.
Também a moral de Kant se funda no prazer da equidade ou cidadania universal supostamente vivido pelos outros como objecto e consequência da nossa acção imparcial e não no «dever» ou «respeito ao dever» como dizia o filósofo alemão de Konisberg. A intenção em Kant está subordinada à consequência que é a irradiação de um sentimento de justiça universal e igualdade entre as pessoas. O "dever" na moral de Kant é a máscara da subordinação do prazer do indivíduo ao prazer e às regras, reais ou imaginárias, do colectivo.
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Habitualmente, designa-se o utilitarismo de Mill como uma doutrina ética consequencialista opondo-o à chamada ética deontológica que, para a generalidade dos autores, tem como expoente máximo a ética de Kant. Se meditarmos com profundidade, descobrimos que há um erro nesta divisão não dialéctica: consequência e dever não são contrários entre si, consequencialismo e deontologia não se opõem, complementam-se até numa mesma teoria.
Se Kant formulou o imperativo categórico como imperativo do dever (deón, em grego), Mill formulou o imperativo da maximização altruísta do prazer assente no princípio da imparcialidade.
«No entanto, não parece que tenha de considerar-se a imparcialidade em si mesma como um dever, mas antes como um instrumento para outro dever; porquanto se admite que o favor e a preferência nem sempre são censuráveis, e, na realidade, os casos em que se condenam constituem mais uma excepção do que uma regra. »(John Stuart Mill, Utilitarismo, pag 74, Atlântida, Coimbra, 1961; o negrito é posto por mim).
A imparcialidade subordina-se à felicidade do maior número, na ética de Mill, ao contrário da ética de Kant em que a imparcialidade é um valor absoluto, por cima de todos, mesmo que gere infelicidade. Mill tem uma visão dialéctica - eivada de variação, movimento, consoante o tempo e a rede de correlações materiais, sociais, etc - ao passo que Kant tem uma visão antidialéctica, estática, rígida.
Mill escreveu sobre o princípio-dever dos utilitaristas:
«Porquanto este critério (utilitarista) não é o da maior felicidade do próprio agente mas o da maior soma de felicidade geral.»(John Stuart Mill, Utilitarismo, pag 27, Atlântida; o negrito é posto por mim).
«Proceder como desejaríamos que procedessem connosco, e amar o próximo como a nós mesmos - eis o ideal de perfeição da moral utilitarista. Como meios para conseguir a mais exacta aproximação deste ideal, o utilitarismo exigiria, em primeiro lugar, que as leis e disposições sociais colocassem a felicidade, ou (como praticamente podemos chamar-lhe) o interesse, de cada indivíduo, tanto quanto possível em harmonia com o interesse da comunidade; e, em segundo lugar, que a educação e a opinião, que tão vasto poder têm sobre o carácter humano, usassem desse poder para incutir na mente de cada indivíduo uma associação indissolúvel entre a sua própria felicidade e o bem de todos» (ibid, pag. 34-35; o negrito é posto por mim).
Os deveres do utilitarismo de Stuart Mill são, portanto:
1) Assegurar o prazer e uma existência digna à maioria - se não for possível à totalidade - das pessoas envolvidas numa dada situação (princípio da maior felicidade), através de regras e preceitos e de uma solução "ad hoc" eficaz. fruto de uma análise adequada da situação concreta.
2) Difundir os bons princípios ou preceitos do amor e da solidariedade universal que agilizam o princípio da Maior Felicidade, entre os quais o de a felicidade de cada um não dever ser egoísta mas implicar-se em expandir a felicidade aos outros e dos outros .
No fundo, o dever do utilitarista é realizar a felicidade para o maior número de pessoas. Isso é deontologia, fundada no princípio do prazer.
A ética de Mill é, sem dúvida, uma ética deontológica hedonista, se por hedonismo entendemos a filosofia que identifica o bem com o prazer,e o mal com a dor, de um ou muitos indivíduos. A ética de Kant, tal como a dos estóicos, é uma ética deontológica não hedonista, isto é, ascética, justiceira e, por vezes, dolorista.
A ética de Kant é, ao contrário do que se diz, uma ética consequencialista: ela visa não apenas o método da acção mas a consequência desta, que é irradiar um conteúdo, indeterminado a priori, sobre toda a humanidade. Trata-se de um consequencialismo formal - «ou comem todos ou não há moralidade» em linguagem popular - que, em cada caso individual, se transforma em consequencialismo material ou substancial.
É, de facto, um pouco idiota supor que Kant não visava finalidades, consequências, nas máximas (princípios subjectivos de cada indivíduo) elevadas a lei moral. Não é pelo aspecto consequencialista que as éticas de Kant e Mill se distinguem, essencialmente.
Hedonismo e não hedonismo é, pois, a pedra de toque que distingue a moral de Mill da de Kant.
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Hay, sin duda, una confusión importante entre utilitarismo clásico y utilitarismo de las preferencias, esta última una noción añadida, posterior a Bentham y a Stuart Mill, por teóricos de la ética que no han asimilado en toda su amplitud la teoría de Mill.
En su artículo «La utilidad y el bien» escribe Robert E.Goodin:
La versión moderna más común sustituye la psicología hedonista del propio Bentham por la noción de «satisfacción de la preferencia.» Según esta idea lo que se maximiza - y, para dar mordiente ética a la noción, los utilitaristas de la preferencia tienen que aãdir «y debe maximizarse» - no es el equilibrio de placeres sobre dolores, sino más bién la satisfación de las preferencias en sentido más general. Esta última subsume a la primera, en la gran mayoría de casos en los que la psicología-con-ética hedonista de Bentham estaba en general en el camino correcto. Pero además deja lugar para explicar aquellos casos en los que no estaba.»
«En ocasiones, llevamos a cabo actos de autosacrificio, donando un dinero difícilmente ganado, o permaneciendo al margen para que otros aspirantes más merritorios puedan conseguir su justa recompensa, o arrojándose sobre granadas de mano activas para salvar de una muerte segura a nuestros compañeros. Podría decirse cinicamente que, a la postre, realizamos todos estes actos filantrópicos hacia los demás para nuestros propios fines ulteriores - si no más que para aplacar nuestra propia conciencia.Con todo, sea cual sea la satisfacción que obtengamos de esos actos no es fácil describirlas en termos abiertamente hedonistas. Igualmente, cuando un corredor de maratón soporta una gran agonía para conseguir el mejor tiempo personal o cuando los presos republicanos sufren torturas en vez de traicionar a suas camaradas, de nuevo la satisfacción que obtienen es dificil definirla en términos hedonistas».
(Robert E.Goodin in Peter Singer (ed), Compendio de Ética,Alianza Editorial, pag 339-340; el bold es nuestro)
En apariencia, si un soldado escoge morir disparando sin cesar sobre el enemigo permitiendo que 20 colegas suyos huyan y salven sus vidas, se trataria de utilitarismo de preferencias y no de utilitarismo clásico. Pero, si el soldado abandona el placer físico de vivir, por medio del sacrificio altruísta del combate, ¿no está huyendo del dolor moral que es el remordimiento que sentiría a lo largo de toda su vida posterior en caso de que se hubiera salvo y 18 de sus compañeros hubieran perecido bajo el fuego enemigo? La satisfacción de preferencias se estriba en el placer y el dolor, si no de un modo inmediato al menos de un modo mediato e indirecto, al contrario de lo que teoriza Goodin.
Stuart Mill escribió en su obra «Utilitarismo» :
«La moralidad utilitarista reconoce, por supuesto, en los seres humanos el poder de sacrificar su bién más grande en aras del bien de los otros. Sólo rechaza admitir que el sacrificio es, en sí mismo, un bien. La moralidad utilitarista considera desperdiciado cualquier sacrificio que no aumente, o no tienda a aumentar, la cuantidad total de felicidad. La única auto renuncia que aplaude es la dedicación a la felicidad, o a algunos de los medios de la felicidad, de los otros; sea de la humanidad tomada colectivamente, sea de individuos (de acuerdo con los límites impuestos por los intereses colectivos de la humanidad).» (Stuart Mill, El utilitarismo, pag 63 de la edición portuguesa).
Mill clasificaba la actitud de sacrificio a favor de otros como utilitarismo, pero otros como Robert Goodin y Peter Singer, la clasifican de utilitarismo de las preferencias «distinto al utilitarismo clássico»... Es que estos dos teóricos contemporaneos no parecen haber aprehendido el utilitarismo en todas sus facetas. En toda la actitud utilitarista hay una preferencia: hay que preferir la mayoría a la minoría, hay que preferir lanzar al paro a 150 obreros de una empresa para salvar esta y mantener en ella a 400 otros obreros en laboración, etc., etc. Por quê, entonces, inventar el "utilitarismo de las preferencias", que no es sino un "flatus vocis", una formulación tautológica del utilitarismo?
Es así la filosofía analítica de Goodin y Singer: de tanto utilizar la «micro división» - las preferencias contra las «no preferencias» - acaba perdiendo la visión de síntesis que sólo la dialéctica puede aportar.
Nota: No Centro de Formação Margens do Guadiana, com sede na Escola Secundária com 3º Ciclo Diogo de Gouveia, R. Luís de Camões, 708-508 BEJA (telefone: 284 328 063), estão abertas as inscrições para a acção de formação para professores de filosofia (Grupo 410) «A teoria geral dos valores e a Ética, na perspectiva do método dialéctico», equivalente a dois créditos,50 horas de duração (50HP), CCPFC/ACC 52326/08 CF. O formador é o autor deste blog.
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No Manual Filosofia-10º ano, de Luís Rodrigues, lê-se:
«Durante a visita a um museu, um dos visitantes apercebe-se de que dois funcionários estão a ter dificuldades em mudar de lugar um quadro muito famoso e valioso. Imediatamente, apressa-se a ajudá-los, mas infelizmente tropeça num tapete e choca com um dos funcionários derrubando-o. O quadro cai com estrondo e fica muito danificado.»
«O visitante agiu com boa intenção mas as consequências da acção foram desastrosas. Será que podemos considerar a sua acção moralmente correcta, pois agiu com boa intenção, ou devemos considerá-la como moralmente incorrecta porque as consequências foram más? »
«A resposta de Mill seria que a acção foi moralmente incorrecta. Porquê? Porque segundo a sua perspectiva consequencialista um acto deve ser julgado pelas suas consequências. Se as consequências forem boas, a acção é boa; se forem más a acção é má». (Luís Rodrigues, Filosofia 10º ano, volume 1º, Plátano Editora, pag 194).
Será que Mill classificaria como «acção moralmente má» a intervenção desafortunada do visitante e o consequente dano material do quadro? Suponho que não. Luís Rodrigues atribui a Mill uma interpretação que não lemos nos textos deste filósofo inglês.
A acção involuntária de danificar o quadro não foi moralmente má: foi materialmente má. Eticamente, o comportamento do visitante desastrado é irrepreensível. E Mill dava importância ao motivo, que neste caso prepondera sobre o resultado da acção. Não há só um princípio - o resultado prático - na avaliação moral da acção. Há princípios secundários a levar em conta: os motivos, a intenção..
Stuart Mill escreveu:
«É uma estranha noção que o reconhecimento de um primeiro princípio é inconsistente com a admissão de princípios secundários. Informar um viajante sobre o seu destino final não implica proibir a utilização de marcos miliários e sinais pelo caminho. A proposição de que a felicidade é o fim e a meta da moralidade não significa que não tenha de ser estabelecida uma rota para esse objectivo, ou que as pessoas que o procuram não tenham de ser aconselhadas a tomar uma direcção em vez de outra.» (Stuart Mill, O utilitarismo, Gradiva, pag 73; o bold é nosso).
Se o utilitarismo visa maximizar o prazer dos agentes envolvidos na acção - e aparentemente estes são três: os dois empregados do museu e o visitante que os decidiu ajudar - então seria contra a moral utilitarista condenar o visitante, partindo do princípio que os empregados permanecem neutros quanto ao resultado da acção ( nem felizes, nem infelizes, conformados com a deterioração do quadro).
Reduzir o utilitarismo à tese de que «se as consequências forem boas, a acção é boa; se forem más a acção é má» é deturpar, em larga medida, o pensamento de Stuart Mill.
Nota: No Centro de Formação Margens do Guadiana, com sede na Escola Secundária com 3º Ciclo Diogo de Gouveia, R. Luís de Camões, 708-508 BEJA (telefone: 284 328 063), estão abertas as inscrições para a acção de formação para professores de filosofia (Grupo 410) «A teoria geral dos valores e a Ética, na perspectiva do método dialéctico», equivalente a dois créditos, 50 horas de duração (50HP), CCPFC/ACC 52326/08 CF. O formador é o autor deste blog.
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Nigel Warburton escreveu sobre o utilitarismo ou doutrina da extensão da felicidade ao maior número possível de pessoas com resultados práticos, mesmo à custa de ignorar ou prejudicar uma minoria ou o próprio agente da ação:
«Alguns filósofos sugeriram outra versão modificada da teoria, conhecida como utilitarismo das regras, como uma forma de contornar a objecção que o utilitarismo normal (também conhecido como utilitarismo dos actos) tem muitas consequências desagradáveis. Esta teoria procura combinar os melhores aspectos do utilitarismo dos actos com os melhores aspectos das éticas deontológicas. Por exemplo, uma vez que, em geral, castigar pessoas inocentes produz mais infelicidade do que felicidade, os utilitaristas das regras adoptariam a regra "nunca castigues os inocentes", apesar de poderem existir casos particulares nos quais o castigo de inocentes produziria mais felicidade do que infelicidade - tal como quando actua como um factor de forte dissuassão contra o crime violento.»
«Os utilitaristas das regras, em vez de avaliarem separadamente as consequências de cada acção, adoptam regras gerais àcerca dos géneros de acções que geralmente produzem maior felicidade para o maior número de pessoas.» (Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia, Gradiva, pag. 92).
De um modo geral, os filósofos ingleses e norte-americanos são mais assistemáticos do que os filósofos alemães, franceses e da Europa continental em geral. Isso condu-los a cortes epistemológicos, por vezes geniais - por exemplo, David Hume ao colocar em causa a persistência da conexão causa-efeito ou do "eu substância" - mas fá-los cair frequentemente em divisões artificiais (hiper-análise). Esta divisão entre "dois" utilitarismos é um equívoco.
John Stuart Mill era, presumivelmente, mais inteligente do que Nigel Warburton, Simon Blackburn, John Searle e esta pleiade de catedráticos ingleses e norte-americanos em voga no século XXI: não caiu no erro de dividir o utilitarismo em "das regras" e dos "actos".
Mill, supondo-se autor de uma moral nominalista, sem leis gerais determinadas, a não ser o princípio da felicidade para o maior número, referiu duas correntes éticas que designou por moral indutiva e por moral intuitiva, extrínsecas ao utilitarismo, correntes que os seus «herdeiros» revisionistas designam por "utilitarismo das regras":
«A escola de ética intuitiva, não menos do que a escola a que pode chamar-se indutiva, insiste na necessidade de leis gerais. Ambos concordam que a moralidade de uma acção particular não é uma questão de percepção directa, mas da aplicação de uma lei a um caso particular. Aceitam também, em grande parte, as mesmas leis morais; mas diferem quanto às provas, e à fonte da qual derivam a sua autoridade. Segundo uma das opiniões, os princípios da moral são evidentes a priori, nada requerendo para exigir assentimento, excepto que o significado dos termos seja compreendido. Segundo a outra doutrina, o correcto e o incorrecto, bem como a verdade e a falsidade, são questões de observação e de experiência. Mas ambas defendem de igual modo que a moralidade tem de ser deduzida de princípios; e a escola intuitiva afirma com tanta veemência como a indutiva a existência de uma ciência da moral. »
(John Stuart Mill,Utilitarismo, Gradiva, Lisboa, 2005, pags. 45; o negrito é nosso).
O utilitarismo "das regras" não é mais do que um utilitarismo "dos actos". Senão, vejamos. Os hiper-analíticos ou pensadores fragmentários (Nigel Warburton e todos os que perfilham esta distinção) aceitariam os seguintes exemplos:
«Utilitarista dos actos - Um homem que pretende ter relações sexuais, consentidas, a todo o custo, com uma mulher e que, não olha a meios, não usando preservativo, e fazendo-o num jardim público sem ligar ao incómodo que causam em transeuntes. "Não tem regras" embora o acto agrade a ambos os participantes.
Utilitarista das regras - Um homem que pretende ter relações sexuais com uma mulher mas que estabelece regras prévias condicionantes desse fim: usar preservativo, obter a total anuência da mulher pela sedução sem coacção. E ambos obtêm satisfação.»
Se meditarmos, descobrimos que o utilitarista das regras deste exemplo é apenas um utilitarista de actos múltiplos. De facto, pretende atingir, em simultâneo, vários objectivos ou resultados:
1) Fazer amor com a mulher X;
2) Fazer amor de forma protegida contra doenças ou procriação indesejada, isto é, usando preservativo;
3) Proporcionar à mulher um prazer espontâneo, fruto da sedução mútua, sem coacção.
O que se chama regra não é senão a realização simultânea de diferentes actos ou de um acto com resultados múltiplos. Na verdade, o impetuoso apaixonado que quer, a qualquer preço, nem que seja num relvado público e sem preservativo, possuir uma mulher (classificado como utilitarista dos actos) também segue uma regra: a da expansão incontrolada do seu instinto.
Poder-se-ia dizer , portanto, que o utilitarismo "dos actos" inclui as regras, formuladas ad hoc ou previamente meditadas, não havendo, por isso, razões para a destrinça entre duas modalidades de utilitarismo.
Distinguir entre utilitarismo das regras e utilitarismo dos actos é tão absurdo como se dividíssemos o marxismo em "marxismo das regras" e "marxismo dos actos" ou o cristianismo em "cristianismo das regras" e "cristianismo dos actos". O marxismo é um só: inclui regras e actos num só momento; o cristianismo é um só, funde as regras teoréticas e a acção sensível numa só coisa, num só momento, o da acção.
Por analogia, o utilitarismo das "regras" e dos "actos" são um e o mesmo utilitarismo: a regra formula-se e dissolve-se no acto onde o resultado é o que importa.
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O consequencialismo é toda e qualquer teoria ética segundo a qual o factor decisivo da acção moral não é a intenção, abstractamente considerada, o procedimento, a norma, mas sim o resultado, a consequência da acção.
Por exemplo: «Se para matar a fome a crianças abandonadas é indispensável entrar numa quinta ou num chalé de gente rica para roubar alimentos, leva-se a cabo essa acção e dá-se os alimentos às crianças, tendo por consequência a sobrevivência destas.» O importante foi a consequência da nossa acção ( salvar as crianças) e não o método, a causa eficiente (roubo com invasão de propriedade privada).
Existe incoerência na definição de consequencialismo, entre os autores mais reputados na ética. Por exemplo, Pedro Galvão, que recolhe os pontos de vista de diversos teóricos renomados nessa área, escreveu:
«O consequencialismo é a perspectiva normativa segundo a qual as consequências das nossas opções constituem o único padrão fundamental da ética. Esta perspectiva corresponde a um conjunto muito abrangente e diversificado de teorias da obrigação moral, do certo e do errado, e não há um acordo perfeito quanto às condições que uma teoria tem de satisfazer para ser classificada como «consequencialista». (O egoísmo ético, por exemplo, nem sempre é considerado uma versão de consequencialismo.) No entanto, as teorias consequencialistas mais puras exibem seguramente três características importantes. Em primeiro lugar, aplicam-se directamente a actos individuais. Em segundo lugar, prescrevem a maximização do bem, isto é, afirmam que os agente morais estão sob a obrigação permanente e ilimitada de dar origem aos melhores estados de coisas ou situações. Em terceiro lugar, pressupõem uma teoria do valor que resulta numa avaliação dos estados de coisas em termos estritamente impessoais.» (Pedro Galvão, www.galvao.no.sapo.pt/ consequencialismo, transcrito em 30 de Janeiro de 2006; o negrito é posto por nós).
Em seguida, Galvão caracteriza um «consequencialismo das regras», noção contraditória com a que acabou de explicitar porque desloca o centro de gravidade da avaliação moral da consequência para a causa, para o método de acção e portanto, deixaria de ser um consequencialismo:
«A segunda estratégia consiste em advogar uma versão indirecta de consequencialismo. Em vez de aplicar directamente o seu padrão normativo a actos, o consequencialista pode eleger outro tipo de ponto focal - por exemplo, regras, motivos ou traços de carácter. O consequencialismo das regras, cujo representante mais influente é talvez R. B. Brandt (1979), é a opção mais frequente. Segundo esta perspectiva, o estatuto moral de um acto depende da sua conformidade a regras, de tal maneira que um acto é errado se, e apenas se, estiver em desacordo com as regras morais correctas.» (Pedro Galvão, www.galvao.no.sapo.pt/ consequencialismo, transcrito em 30 de Janeiro de 2006).
Esta segunda definição de «consequencialismo das regras» aplica-se perfeitamente à ética de Kant. No entanto, Kant é classificado por estes "especialistas" da ética como um «não consequencialista». Isto, a nosso ver, traduz uma confusão intelectual, própria do espírito hiper-analítico e hipo-sintético que caracteriza a grande maioria dos catedráticos de Filosofia nas universidades de todo o mundo. O imperativo categórico em Kant é ou não consequencialista, visa ou não implementar uma acção geradora de tal ou qual consequência? Sem dúvida, sim. Consequencialismo não se opõe a deontologismo. O próprio Stuart Mill é deontologista e consequencialista. E Kant é-o também, sob outra forma.
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