Segunda-feira, 29 de Novembro de 2010
Sobre la ambigüedad del "ser" en Heidegger y la interpretación de Sánchez Meca

"Teoría del Conocimiento" de  Diego Sánchez Meca es un libro muy sustancial de filosofía, con abundantes méritos. Pero tiene imperfecciones, como todo. Una de estas concierne a la interpretación de una tesis de Martin Heidegger concerniente al ser y a la esencia:

 

«El ser es, pues, algo distinto de la esencia. La esencia es el ente, pero no es el ser. Esta diferencia entre el ser y el ente es lo que Heidegger llama diferencia ontológica. Tanto las realidades como las esencias de Husserl pertenecen al dominio de lo óntico, sin entrar en el ámbito de lo ontológico. Por tanto, la actitud fenomenológica no es, desde este punto de vista, suficientemente radical. »(Diego Sánchez Meca, Teoría del Conocimiento, pag. 385, Dykinson, Madrid, 2001; la letra itálica es puesta por mí.)

 

 Importa aclarar la distinción entre ser y ente: ¿es como la distinción entre género y especie, o sea, es una diferencia específica? ¿ O es como la distinción entre género y sustancia individual, individuo concreto? ¿O es como la distinción entre dos géneros, extrínsecos mutuamente? O es como la distinción entre universal supra- genérico y ente individualizado? Sostengo que, en el planteamiento de Heidegger, se trata de este último caso, es decir, el ser lleva dentro todos los entes a la vez que transciende cada uno de ellos, principiando por el primer de los entes, el ser ahí (Dasein) o cada hombre.

 

Heidegger sigue Aristóteles al definir el "ser" - "lo que es", no exactamente lo mismo que "ser" - , como un universal por encima de los géneros o grandes agrupaciones de especies:

 

«El ser, tema fundamental de la filosofía, no es el género de ningún ente, y sin embargo toca a todo ente. Hay que buscar más alto su "universalidad". El ser y su estructura están por encima de todo ente y de toda posible determinación  de un ente que sea ella misma ente. El ser es lo transcendens pura y simplemente.  La trascendencia del ser del "ser ahí" es una señalada trascendencia, en cuanto que implica la posibilidad y la necesidad de la más radical individuación.  Todo abrir el ser en cuanto transcendens es conocimiento trascendental.»Heidegger, El Ser y el Tiempo, Pág. 48-49, Fondo de Cultura Económica, Madrid; la letra negrita es puesta por mí).

 

Nótese la expresión de Heidegger: « El ser y su estructura». ¿Qué significa? Simplemente lo siguiente: «La existencia (el ser) y su esencia (la estructura).» La existencia, a mi opinión, se divide en materia indeterminada (el ser puro) y esencia general de los entes (el ser en sus modos). La esencia de la existencia es la red que articula las diferentes esencias de los entes, interna y externamente. El ser no es solo existencia, sino existencia con sus modos (esencia general o estructura). Esto no es aclarado por Heidegger en su hermético discurso que teje la columna vertebral del pensamiento plasmado en «El Ser y el Tiempo».

 

Heidegger admite que no hay ser desconectado de los entes y que el "ser ahí", esto es, cada hombre, tiene el ser o una porción del ser en su amago:

 

«Ser es en todo caso el ser de un ente.»  (Heidegger, El Ser y el Tiempo, pág. 18, Fondo de Cultura Económica).

 

«Las ciencias tienen, en cuanto modos de conducirse el hombre, la forma de ser de este ente (el hombre). Este ente lo designamos con el término "ser ahí" (Dasein). La investigación científica no es la única ni la más inmediata forma posible de ser este ente. El "ser ahí" mismo es, encima, señalado entre todos los entes.» (…)«El "ser ahí" es un ente que no se limita a ponerse delante de los otros entes. Es, antes bien, un ente ónticamente señalado porque en su ser le va este su ser.» ( Ibíd., p. 21)

 

Heidegger atribuye un sentido algo místico al termino "ser", aunque garantiza que no mienta Díos. Considerar el "ser" como díos fue una desviación teológica en la historia de la filosofía, una sustitución del ser por el ente metafísico "Díos".

 

Por ende, repito que hay  una imprecisión en lo que Sánchez Meca describe como el  ser según Heidegger "distinto a la esencia": este "ser" es, a la vez, la existencia general (no esencia de esto o aquello, sino materia indefinible) y la estructura o esencia general que atraviesa todos los entes. Pero la culpa de esa imprecisión no puede ser imputada exclusivamente a Sánchez Meca, sino al mismo Heidegger que juega con la palabra "ser", no desvelando a cada paso su doble sentido.

 

 

 

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Sexta-feira, 24 de Setembro de 2010
Um equívoco de São Tomás: «tudo o que está na espécie está, como não delimitado, no género»

São Tomás de Aquino não possuía uma visão absolutamente dialéctica das relações género-espécie e espécie-indivíduo:

 

«Pelo contrário tudo o que está na espécie está também, como não delimitado, no género. Portanto, se o animal não fosse tudo o que o homem é, mas apenas uma sua parte, ele não poderia ser-lhe atribuído, pois nenhuma parte que o integre se pode atribuir ao seu todo.» (Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, Contraponto, pag 76)»  

 

Ora, não é verdade que tudo o que está na espécie tenha de estar contido no género. Uma espécie integra-se simultaneamente em vários géneros, facto que o Aquinate parece não ter discernido claramente. Por exemplo, a espécie homem integra-se no género animal, juntamente com as espécies paquiderme e ave, mas, diferentemente destas, a espécie homem integra-se no género "ser racional", juntamente com os anjos e outras criaturas de inteligência abstracta. Isto é dialéctica, visão multifacetada e móvel de cada realidade. Portanto a frase do texto do Aquinate acima deve ser rectificada assim: tudo o que está na espécie está também, como não delimitado, repartido pelos diferentes géneros em que essa espécie se encaixa.

 

Do mesmo modo, nem tudo o que está contido no indivíduo está contido na espécie. Por exemplo, a inteligência de seres humanos mongolóides não é comum à espécie humana, não é característica intrínseca desta

 

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Domingo, 12 de Julho de 2009
O Uno é predicado, como sustenta Aristóteles?

Aristóteles criticou Platão e os Pitagóricos por considerarem o Uno como uma substância, isto é, algo que subsiste por si, de modo individualizado. Segundo Aristóteles, o Uno não é substância nem é género (um grupo que engloba várias espécies de substâncias individuais; por exemplo: género animal, género figura geométrica, género cor) mas sim um predicado universal .

 

«Devemos investigar, do ponto de vista da substância (ousía) e da natureza, que tipo de realidade possui o Uno de acordo com o tratamento que fizemos na Discussão das Aporias, o que é a unidade e como há-de entender-se; se o uno, em si, é uma certa substância, como disseram os Pitagóricos primeiro e Platão depois, ou se, mais precisamente, há alguma natureza que lhe serve de sujeito, e como convém explicar isso para maior claridade, e mais precisamente segundo o proceder dos filósofos da natureza. Algum destes, com efeito, afirma que o Uno é Amizade, outro afirma que é o ar, ouro que é o Indeterminado (apeiron). Pois bem, se - como se disse nos tratados acerca da substância e acerca do que é - nenhum universal pode ser substância, se considerado em si mesmo não pode ser substância ao modo de unidade separada da pluralidade (já que é algo comum), é evidente que tampouco pode sê-lo o «uno»: com efeito, «algo que é» e «uno» são os predicados mais universais. Por conseguinte, nem os géneros são naturezas e substâncias separadas das demais coisas, nem «uno» pode ser um género, pelas mesmas causas pelas quais tampouco pode sê-lo «o que é» e a substância. »(Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1053b; o bold é nosso). (…) 

 

Mas contradiz-se Aristóteles ao afirmar o seguinte:

 

«Mais precisamente, nas cores, o uno é uma cor, por exemplo, o branco, e as demais parecem gerar-se sucessivamente a partir dele e do negro, e o negro é privação do branco, como o é também da luz a obscuridade (esta é, com efeito, privação da luz) de modo que se as coisas que são fossem cores, as coisas que são constituiriam um certo número, mas de quê?  Evidentemente, de cores, e o uno seria algo que é uno, por exemplo, o branco.» (...)

«E igualmente, no caso dos sons, as coisas que são constituiríam um certo número de letras e o «uno» seria uma letra vocal»

(Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1053b, 1054a; o bold é nosso).

 

«É pois evidente que em cada género, o uno é uma certa natureza, e que o uno não é substância de nenhuma delas, mas que, assim como no caso das cores há-de buscar-se o uno, como tal, em certa cor que é una, assim também o uno, como tal, no caso da substância, há-de buscar-se em certa substância que é una.» (Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1054a; o bold é nosso).

 

O branco não é uma substância, para Aristóteles, mas um acidente, uma qualidade. Aristóteles achava impossível o branco existir em si mesmo: só existe na camisa branca, na parede branca e noutros objectos brancos, ou na mente do homem por abstracção. No entanto, branco é uma essência - uma qualidade comum a vários entes, neste caso, a vários acidentes ou particularidades acessórias das coisas - e ao conceber branco como fonte das cores, isto é como essência primordial em relação às essências de azul, amarelo, vermelho, verde, roxo e outras cores, Aristóteles está a adoptar uma posição idêntica à de Platão: preenche com um conteúdo substancial a forma vazia do Uno. De facto, o Uno é aqui concebido como essência (branco), ou seja, componente principal da substância ou conteúdo do acidente. É concebido como um sujeito eidético, um suporte de todas as cores, não apenas um predicado.

 

Uno é uma definição formal - por isso, é um universal acima dos géneros, isto é, uma determinação comum a tudo o que existe e se pensa: Deus é uno, a Terra é una, o calor é uno, o verde é uno, a árvore em geral é una, esta amendoeira é una, este «agora» é uno. Ao postular que uno é branco e não amarelo ou azul, Aristóteles rompe esse formalismo e transforma-o em essencialismo primigénio: «o uno é a essência primeira dentro de cada género». Certamente branco é duplamente uno, se aceitarmos que é a união de todas as cores - essencialismo primigénio- , mas nem por isso azul ou amarelo deixam de ser, em si mesmos, algo que é uno. Aristóteles admite que a espécie branco é «uno» mas nega que o género côr seja uno, ao afirmar acima «que nem «uno» pode ser um género, pelas mesmas causas pelas quais tampouco pode sê-lo «o que é» e a substância. » (Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1053b). Isto é, em rigor, uma incoerência: acentua o significado de uno como espécie matriz de outras espécies - sentido intensivo - e e nega-o como género,aglomerado de  espécies - sentido extensivo e holístico.

 

O Uno não é somente predicado, como diz Aristóteles. É a própria substância do ponto de vista formal, é o contorno geral de cada substância e o conteúdo dela enquanto indeterminado. O Uno é, pois, sujeito e predicado.

 

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Domingo, 26 de Abril de 2009
Karl Popper e o ataque incoerente à Dialéctica

 Karl Popper ataca a dialéctica sem a compreender integralmente. Tal como Kant, Popper toma a dialéctica como uma erística, capaz de sair fora da lógica, uma arte sofística de argumentar, uma visão eclética paradoxal e não uma ciência holística e hierarquizadora de géneros, espécies e dos diversos aspectos de cada fenómeno.

 

Escreveu Popper:

 

 «A dialéctica (no sentido moderno, isto é, especialmente no sentido em que Hegel usou o termo) é uma teoria que afirma que algo – mais particularmente o pensamento humano – se desenvolve de uma forma caracterizada por aquilo a que se chama a tríade dialéctica: tese, antítese e síntese. (…)»

 

 «E é quanto basta relativamente ao que se chama tríade dialéctica. Não pode haver grandes dúvidas de que a tríade dialéctica descreve razoavelmente bem determinadas fases da história do pensamento, em especial certos desenvolvimentos de ideias e teorias, bem como dos movimentos sociais que neles se inspiram. Esse desenvolvimento dialéctico pode ser “explicado” demonstrando que se processa em conformidade com o método de ensaio e erro que atrás analisámos. Mas temos de admitir que não é exactamente o mesmo que o desenvolvimento (atrás descrito) de uma teoria por ensaio e erro. A nossa anterior descrição do método de ensaio e erro envolvia apenas uma ideia e a sua crítica, ou, usando a terminologia dos dialécticos, a luta entre uma tese e a sua antítese. Originalmente, não fizemos quaisquer sugestões acerca de um desenvolvimento ulterior, não indicámos que a luta entre uma tese e uma antítese desembocaria numa síntese. Sugerimos antes que a luta entre uma ideia e a sua crítica, ou entre uma tese e uma antítese, conduziria à eliminação da tese (ou talvez da antítese), se esta não se revelasse satisfatória; e que a competição entre teorias só conduziria à adopção de novas teorias se estas existissem em número suficiente e pudessem ser postas à prova .(…)»

 

 «Temos de ter cuidado, por exemplo, relativamente a uma série de metáforas usadas pelos dialécticos e muitas vezes levadas, infelizmente, demasiado a sério. Um exemplo é a afirmação do dialéctico de que a tese “produz” a sua antítese. Na verdade, é apenas a nossa atitude crítica que produz a antítese, e onde uma tal atitude não esteja presente – o que é muitas vezes o caso – nenhuma antítese se produzirá. Do mesmo modo, temos que ter cuidado para não pensar que é a “luta” entre uma tese e a sua antítese que “produz” uma síntese. »

 

 «Tendo deste modo observado que as contradições – especialmente, como é óbvio, a contradição entre uma tese e uma antítese, que «produz» um progresso sob a forma de síntese – são extremamente fecundas e constituem, na verdade, as forças motrizes de qualquer progresso do pensamento, os dialécticos concluem – erradamente como veremos – que não há necessidade de evitar essas fecundas contradições. E afirmam mesmo que as contradições não podem ser evitadas, dado que surgem em toda a parte no mundo.»

 

 «Uma tal afirmação equivale a um ataque contra a chamada “lei da não-contradição” (ou, mais concretamente, contra a “lei da exclusão das contradições”) da lógica tradicional: uma lei que determina que dois enunciados contraditórios nunca podem ser ambos verdadeiros, ou que um enunciado que consista na conjunção de dois enunciados contraditórios deve ser sempre rejeitado como falso por razões puramente lógicas. Fazendo apelo à fecundidade das contradições, os dialécticos afirmam que esta lei da lógica tradicional deve ser rejeitada. E declaram que a dialéctica conduz deste modo a uma nova lógica – uma lógica dialéctica. Assim sendo, a dialéctica, que eu até aqui apresentei como uma doutrina meramente histórica – uma teoria do desenvolvimento histórico do pensamento – revelar-se-ia uma doutrina muito diferente: seria em simultâneo uma teoria lógica e (como veremos) uma teoria geral do mundo.»

 

 «Estas são afirmações portentosas, mas sem o mínimo fundamento. Não se baseiam, na verdade, em nada melhor do que uma maneira de falar vaga e confusa.»

 

 «Os dialécticos dizem que as contradições são fecundas, férteis ou produtivas em termos de progresso, e nós admitimos que isso não deixa de ser, em certo sentido, verdadeiro. Será verdadeiro, porém, unicamente na medida em que estejamos dispostos a não tolerar contradições e a modificar qualquer teoria que as envolva. Por outras palavras, determinados a não aceitar nunca uma contradição. É somente em virtude dessa nossa determinação que a crítica, isto é, a indicação de contradições nos induz a modificar as nossas teorias e, nessa medida, a progredir.»

 

  (Karl Popper, Conjecturas e Refutações, Almedina, Coimbra 2006, pag 419-422; o bold é colocado por nós)

 

 Popper tem alguma razão neste texto. Mas carece de razão numa parte substancial dele. A interpretação da síntese como um terceiro momento do círculo ou espiral que se desenvolve é uma limitação hegeliana, ao menos de carácter terminológico,  na definição da dialéctica. Nesse ponto, Popper parece certo.

 

Kierkegaard, por exemplo, negou a existência da síntese circunscrevendo a dialéctica ao Aut/Aut (Ou..Ou) da tese-antítese. Também não parece que a antiga filosofia chinesa, em particular o taoísmo, que divide a Vida e o Cosmos em dois princípios opostos, relativos, o Yang (Luz, Calor, Expansão, Fogo, Masculino) e o Yin (Escuridão, Frio, Contração, Água, Feminino) consagre a síntese (de Hegel) como instância independente no processo dialéctico. E na teoria psicanalítica de Freud, nitidamente dialéctica, discernimos o Ego – o mediador, a síntese, de certo modo - como uma instância não posterior mas simultânea com o Id ou Infra-Ego (tese) e o Super-Ego (antítese)- sem embargo de o Ego preceder geneticamente o Super-Ego. De facto, a síntese – ou chamar-lhe-emos síncrese, neste caso? - pode existir e existe em simultâneo com a tese e a antítese e constitui:

 

 1)      A mediação ou mistura parcial destas.

 

 2)      O conjunto das duas. Neste caso, não existiria separada delas ou de uma parte delas, mas englobá-las-ia, seria a soma exacta das duas. Hegel chama a isto o tôdo como unidade dos contrários, não o designa por síntese.

 

 Parece que Platão admitiu a mediação, o intermédio entre os contrários  – que Hegel chama síntese –mas não o situou isoladamente num momento posterior. A crítica de Popper à tríade é, pois, parcialmente justa no que se refere à tríade diacrónica estabelecida por Hegel mas injusta, errada, no que se refere à tríade sincrónica estabelecida por dialécticos como Lao Tse, Platão, Kierkegaard e muitos outros, também chamada lei da unidade e luta de contrários formulada por Heráclito e Hegel, entre outros.

 

Popper reconhece aliás, acima, que a luta entre uma ideia e a sua crítica é uma luta entre tese e antítese e que conduz, muitas vezes, à eliminação da tese. Estamos de acordo. É, pois, um movimento dialéctico. O método de ensaio e erro, é ao contrário do que sugere Popper, perfeitamente dialéctico: o ensaio é a antítese da formulação teórica, como o acto é a antítese da potência (na terminologia aristotélica); o erro constatado pelo ensaio é a antítese da formulação teórica original, destrói parcial ou totalmente esta, impõe a sua rectificação ou eliminação. Ao dizer que a dialéctica não impregna o método de ensaio e erro, como seu carácter intrínseco, mas que é algo de «extrínseco» à falsificabilidade, à eliminação indefinida do erro pelo «racionalismo crítico», Popper mostra não compreender a universalidade da dialéctica como lógica multilateral.

 

 Ademais, Popper deturpa a dialéctica ao dizer que esta nega o princípio da não-contradição ( ou «lei de exclusão das contradições»). É uma absoluta falsidade. Isso é interpretar dialéctica como sofística – como o fazia Kant com as suas antinomias da razão pura que dão lugar ao paradoxo (incoerência do raciocínio como por exemplo: «Deus existe e não existe no mesmo instante e sob o mesmo aspecto»; «2+2 é igual 4 e 2+2 é igual a -4»).

 

 Popper ignora que «toda a diferença é uma contradição» - – a diferença insere-se no princípio do terceiro excluído; exemplo, verde e azul contradizem-se porque azul pertence ao conjunto não verde – - e interpreta o termo contradição como erro lógico, paradoxo, não como realidade multilateral de contrários e contraditórios. Há contradição dentro da lógica (a dialéctica) e contradição fora da lógica, (paralogismo, sofisma, a sofística, o ecletismo paradoxal). Esse é o equívoco de Popper: não distingue estas duas formas de contradição, ao menos no plano teórico.

 

 A dialéctica autêntica engloba os três princípios da lógica clássica: identidade, não contradição e terceiro excluído. Não se desfaz deles. Não os atropela. Aliás o princípio da não contradição é eminentemente dialéctico: uma coisa não pode ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto duas qualidades ou estados contrários entre si; mas pode ser qualidades ou estados contrários ao mesmo tempo em aspectos diferenciados.

 

Por exemplo, a dialéctica marxista –- note-se que a teoria marxista não é dialéctica em toda a sua extensão, o comunismo mundial final é uma ideia metafísica que foge à lei dialéctica de «um divide-se em dois» (o proletariado divide-se em dois: governantes e governados e isso gera uma nova sociedade de classes desfazendo o comunismo ideal) –-  diz o seguinte: a burguesia é uma classe progressista no aspecto de combater a classe feudal e, simultaneamente, é uma classe reaccionária no aspecto de combater as reivindicações socialistas revolucionárias do proletariado. Isto respeita perfeitamente o princípio da não contradição: a burguesia é, ao mesmo tempo, uma classe revolucionária, num aspecto, e uma classe reaccionária, noutro aspecto. Não há aqui confusão nenhuma.

 

 Não restrinjamos a dialéctica ao marxismo. Há muito mais dialéctica para além da visão marxista do mundo.

 

 Existe, por exemplo, uma contradição – que neste caso assume a forma de contrariedade (termo aristotélico) isto é oposição directamente bipolar como branco/negro e grande/pequeno -  a cada fracção de segundo, entre a força centrífuga do electrão do átomo do hidrogénio e a força centrípeta do núcleo. É essa contradição ou luta de forças contrárias que mantém o átomo uno. Popper seria imbecil se negasse que se trata de uma contradição e, mais ainda, se tivesse a pretensão de suprimi-la.

 

 A dialéctica impregna a fisiologia humana e a naturopatia (teoria médico-higienista e metodologias práticas) que visa preservá-la: a doença, aguda ou crónica, é uma luta entre a força vital, centrífuga (que actua de dentro para fora) e as toxinas (sais de ácido úrico, sulfúrico; colóides, etc) centrípetas (que se deslocam de fora para dentro e entopem o organismo). Assim a febre é simultaneamente um mal e um bem: um mal, na medida em que gera mal-estar e impede, em regra, as pessoas de se comportarem de forma prazenteira e normal; um bem, na medida em que a crise de suores e urinas carregadas existente na febre, faz sair do corpo, pela pele e pelo aparelho urinário, as substâncias tóxicas, restabelecendo a saúde.

 

 Bem e mal são contrários entre si mas, neste caso, não há qualquer violação do princípio da não contradição, pois bem e mal na febre aplicam-se a diferentes aspectos da fisiologia humana. Segundo parece, Popper, nem sequer conhecia a visão dialéctica da naturopatia científica neo-hipocrática sobre a saúde e a doença. É natural que não reconhecesse que a luta de contrários – e a lógica multilateral que lhe corresponde – atravessa por completo a natureza física e biocósmica nos seus infinitos aspectos, é a essência desta.

 

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Sábado, 28 de Março de 2009
Platão e a dialéctica do finito e do infinito

No Filebo, importante diálogo, Platão estabelece três géneros originais – o infinito, equiparado ao prazer sensual, o finito, equiparado ao prazer espiritual da sabedoria e da medida, e a mistura. Assim, ontologicamente, a sensualidade assemelha-se ao caos, ao ilimitado, que não tem proporções definidas, ao passo que a ciência e a inteligência assemelham-se ao ser, ao limitado e dotado de proporção (número).

 

SÓCRATES- Não é nesta mistura de infinito e de finito que nascem as estações e tudo o que nos parece belo no universo?

PROTARCO- Sem dúvida.

SÓCRATES- E há mil outras coisas que não cito, como a beleza e a força com a saúde, e muitas qualidades admiráveis na alma. Com efeito, meu belo Filebo, a deusa, vendo a violência e a maldade universal que provêm do facto de que os homens não põem limites aos seus prazeres e à sua gula, estabeleceu a lei e a ordem, que contêm um limite. Tu pretendes que ela fez mal. Pelo contrário, eu digo que é a nossa salvação. E tu, Protarco, que dizes? 

PROTARCO- Estou inteiramente de acordo contigo, Sócrates.

SÓCRATES- Estas são as três classes de que eu devia falar, se bem me compreendes.

PROTARCO- Sim, creio compreender-te. Parece-me que dizes que o infinito é uma classe e o finito uma segunda classe nas coisas existentes, mas não entendo bem qual é a terceira.

SÓCRATES- É porque, admirável rapaz, ficaste confundido com a quantidade das produções da terceira. Contudo, o infinito também apresenta muitas espécies, mas como todas elas tinham a marca do mais e do menos, pareceram-nos um único género.

PROTARCO- É verdade.

SÓCRATES- Quanto ao finito, também não contestámos que continha muitas espécies nem que havia um da sua natureza.

PROTARCO- Como teríamos podido contestar?

SÓCRATES- De maneira nenhuma. Quanto à terceira classe, penso que incluo nela tudo o que saiu das primeiras duas, tudo o que vem à existência sob o efeito da medida e do finito.

(Platão, Filebo, XIII parte; o bold é nosso)

 

A geração faz-se, pois, a partir dos contrários finito e infinito, segundo Platão. É uma visão eminentemente dialética.

 

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