O "paradoxo do mentiroso" é um argumento aceite como válido pela filosofia analítica anglo-saxónica. Blackburn o enuncia-o assim:
«Paradoxo do mentiroso - Paradoxo alegadamente devido a Epiménides. Há um certo número de paradoxos que pertencem à família do mentiroso. O exemplo mais simples é a frase «Esta frase é falsa», que tem de ser falsa se for verdadeira, e verdadeira se for falsa. Uma sugestão de solução é afirmar que a frase nada diz; mas as frases que nada dizem não são, no mínimo, verdadeiras. Nesse caso, consideramos a frase " Esta frase não é verdadeira" que, se nada diz, não é verdadeira e, logo, é verdadeira (a este tipo de raciocínio chama-se por vezes "o paradoxo fortalecido do mentiroso"). Outras versões do mentiroso, introduzem pares de frases, como uma inscrição na parte da frente de uma camisola que afirma " A frase na parte de trás desta camisola é falsa" e outra na parte de trás que afirma "A frase na parte da frente desta camisola é verdade". É claro que, tomadas isoladamente, ambas as frases são bem formadas, e, se não fosse pelo que a outra afirma, poderiam ter dito algo verdadeiro. Por isso qualquer tentativa para afastar o paradoxo afirmando que as frases envolvidas não têm significado enfrenta problemas.»
(Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, pag 320, Gradiva, 2007; o destaque a negrito é posto por mim).
Há aqui uma pura manipulação sofística, um pseudo raciocínio: a frase, dita por um mentiroso, é falsa se for verdadeira, é verdadeira se for falsa. É óbvio que isto é uma impossibilidade lógica: verdadeira, em que sentido? Falsa, em que sentido? Obrigatoriamente, terá de ser em sentidos diferentes e isso Blackburn e os seus partidários não discernem e não explicam. A dialética é, para eles, estranha. A sua analítica analisa, isto é, decompõe em elementos diversos, menos do que a dialética. Blackburn não pensa dialeticamente: mistura no mesmo plano, verdade e falsidade, o que viola o princípio da não contradição. Como é que uma frase é falsa sendo verdadeira? Está-se a confundir o fundo com a forma, o conteúdo com o continente, a locução com o locutor.
Trata-se de um pseudoparadoxo, o que se descobre pela aplicação do método dialético e do seu princípio «um divide-se em dois». Não existe um só enunciador da frase «Esta frase é falsa» mas dois: o mentiroso em acto e o mentiroso em potência. Se é o mentiroso em acto que diz «esta frase é falsa», a frase seria, logicamente, verdadeira, se tivesse algum conteúdo: o mentiroso em acto está obrigado a mentir. Se é o mentiroso em potência, ou seja, alguèm que no momento presente fala verdade mas que virá ou poderá vir a mentir no futuro, a frase «Esta frase é falsa», se porventura tivesse algum conteúdo, seria igualmente verdadeira, embora com conteúdo concreto diferente da frase dita pelo mentiroso em acto.
Quando se diz «esta frase é falsa» não se distingue entre o triplo sentido da palavra verdade: como essência ideal, ligada a referentes ideais, teoréticos, como essência confirmada no plano da existência material e como existência linguística.
Blackburn afirma confusamente acima: «Nesse caso, consideramos a frase " Esta frase não é verdadeira" que, se nada diz, não é verdadeira e, logo, é verdadeira (a este tipo de raciocínio chama-se por vezes "o paradoxo fortalecido do mentiroso").»
Então a frase que nada diz, não verdadeira, é verdadeira? É pura sofística. É confundir, numa amálgama, planos distintos. Se a frase nada diz, é falsa enquanto essência mas é verdadeira enquanto existência linguística, construção formal de palavras. A dialética, como ciência do uno, dos géneros e das espécies, impõe distinguir os vários sentidos de um mesmo conceito-termo, as várias ramificações deste, mas não é praticada por estes senhores da filosofia "analítica" que sofrem o fetichismo das palavras, os «efeitos especiais» destas, sem penetrar o sentido mais profundo de cada uma.
Ao considerar a frase "esta frase não é verdadeira" não se distingue, em regra, que há duas proposições dentro da mesma frase, uma que funciona como enunciado a outra como enunciador : cada proposição possui o seu domínio próprio mas o pensamento caótico, sofístico, confunde-as . Se a frase interior é falsa como essência, isto é na sua relação com o referente, a frase exterior, englobante e judicativa sobre a primeira, é verdadeira. Não há paradoxo nenhum nisto.
Se disser «A frase "o número atómico do oxigénio é 78" é falsa», esta frase é verdadeira enquanto reportando-se a objetos reais, os átomos e os seus constituintes eletrónicos: sabe-se, de acordo com a tabela periódica dos elementos químicos, que o número atómico do oxigénio é 8. O que é falso é a frase dentro da frase ( a que está balizada por aspas: "o número atómico do oxigénio é 78", a que chamo a frase interior ) não a frase como enunciado global. Esta última só pode ser dita por alguém que fala verdade neste momento - o mentiroso em potência - e não pelo mentiroso em acto. Este dirá apenas: "o número atómico do oxigénio é 78".
Dizer «esta frase é falsa» pode significar: é falsa no seu conteúdo concreto mas é verdadeira enquanto invólucro externo desse conteúdo. Portanto não há aqui nenhum paradoxo, mas apenas sofisma, confusão do terreno do verdadeiro com o terreno do falso. A palavra frase é tomada, sem que as pessoas se apercebam, em dois sentidos distintos, um anterior-interior e o outro posterior-exterior, este último um juízo de verdade sobre o primeiro. Há duas frases: a primeira é "esta frase" - uma frase oculta, com aspecto de sujeito, frase de sentido indeterminado, hermeticamente fechada como uma boneca russa dentro da outra - e a segunda é "esta frase é falsa". Ora como pode a boneca russa mais pequena fechada no interior da maior avaliar o aspecto desta? Não pode. E como pode a boneca russa maior avaliar o aspeto, o valor de verdade, da que está fechada no seu interior? Não pode.
Quando se diz na parte da frente da camisola " A frase na parte de trás desta camisola é falsa" e na parte de trás se lê "A frase na parte da frente desta camisola é verdadeira" não há aqui nenhum paradoxo real. Afinal, qual é a frase em questão? É vazia. Ora o paradoxo não actua sobre o nada, só existe quando há conteúdos determinados, como por exemplo, o paradoxo «Deus ama infinitamente todas as pessoas e condena ao sofrimento eterno as que forem malvadas e impenitentes apesar de as amar». Amar e castigar eterna e inflexivelmente são contrários que se excluem no mesmo ente em relação ao mesmo objeto.
Diz-se que é um paradoxo o facto de o cretense Epiménides ter dito o seguinte: «Todos os cretenses são mentirosos". Não há paradoxo nenhum, porque Epiménides podia ser mentiroso ocasional - não se mente sempre, em regra - e proferir esta afirmação sendo ela verdadeira.
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Orlando Vitorino, (1922- 14 de Dezembro de 2003), filósofo português discípulo de Álvaro Ribeiro e José Marinho, escreveu:
«Uma abissal, mas significativa divergência, assim se observa: na filosofia clássica, representada por Aristóteles, o pensamento precede o conhecimento, que dele resulta; na filosofia moderna, representada por Kant, o conhecimento é anterior ao pensamento e constitui seu conteúdo e objecto.» (Orlando Vitorino, Exaltação da filosofia derrotada, pag 86, Guimarães Editores; o negrito é posto por mim).
Parece haver um certo magma de confusão neste pensamento de Orlando Vitorino. Só os sensistas ou sensacionistas defendem que o conhecimento (empírico) é anterior ao pensamento. Ora, Kant não é um sensacionista: para ele, as sensações não fornecem, por si sós, conhecimento, precisam de ser elevadas, via imaginação ao intelecto que delas forma os conceitos empíricos. Por exemplo, é a partir da percepção empírica do fenómeno cavalo, obtida na sensibilidade, que o entendimento constrói o conceito empírico de cavalo.
Como é possível afirmar que, em Kant, o conhecimento é anterior ao pensamento? É um absurdo. Kant não é um empirista mas um empiro-racionalista. Kant admite o conhecimento a priori mas este é sempre um pensamento, um juízo, não há conhecimento anterior a pensamento. O conhecimento inicia-se com a experiência, mas em conjugação com o intelecto a priori. O conhecimento é pensamento a priori ou é pensamento a posteriori vitalizado pelas sensações:
«Se porém todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência. (...) uma questão ... vem a ser esta: se haverá um conhecimento assim, independente da experiência e de todas as impressões dos sentidos. Denomina-se a priori esse conhecimento e distingue-se do empírico, cuja origem é a posteriori, ou seja, na experiência.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 37, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é colocado por mim).
«Podemos, contudo, reduzir a juízos todas as acções do entendimento, de tal modo que o entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de julgar. Porque, consoante ficou dito, é uma capacidade de pensar . Ora pensar é conhecer por conceitos.»(Kant, ibid, Livro I, 1ª Secção,pag 103)
E Aristóteles não faz o pensamento anteceder o conhecimento: são simultâneos. Ainda que pudessemos admitir que o raciocínio (um pensamento) antecede por milésimas de segundo, o conhecimento, não podemos esquecer a intuição noética, o pensamento instantâneo que nos fornece as essências ou formas eternas:
«A ciência é conhecimento racional e, por sua vez, o conhecimento racional dá a conhecer a coisa e a sua privação» (Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1046 b, 5-10).
«Assim, pois, a respeito das coisas que são uma essência, e que são actos, não é possível errar, mas antes captá-las ou não». (Aristóteles, ibid, Livro IX, 1051 b, 30-35).
Ora a captação de uma essência é simultamente pensar e conhecer. Não há um pensar anterior ao conhecimento, em Aristóteles, se excetuarmos Deus que pensa sobre si mesmo e desconhece o cosmos. As formas eternas não são um pensamento vivo nem são matéria, porque o pensamento é acto de uma inteligência, divina, astral ou humana. São as ideias não pensantes, as formas inteligíveis mas não inteligentes, o pensamento não humano, por assim dizer, congelado, fixo. As essências de cavalo e montanha subsistirão mesmo que não haja nenhum homem para as apreender ou conceber.
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Schopenhauer estabeleceu uma diferença entre a ideia, que em Platão é um singular, copiável de forma degradada, e o conceito que, em Aristóteles, é essência (dispersível) ou género supra-essencial, isto é, uma forma que se multiplica sem degradação. O conceito-forma está em todas as coisas concretas que lhe correspondem - Aristóteles chega a dizer que não há esfera fora das esferas de bronze, ferro e outras existentes - mas a ideia não.
Em Schopenhauer, nem a ideia nem o conceito guiam o desenvolvimento histórico concreto, à maneira da doutrina de Hegel que estabelece degraus que as sociedades vão percorrendo: mundo oriental (só um homem livre), mudo greco-romano (alguns homens livres) mundo cristão transformado pela reforma luterana e pela revolução francesa (todos os homens são livres), eis o travejamento hegeliano da história. Schopenhauer não embarca nesta hierarquização dos estados da história, insiste no individual e imprevisível.
«Sendo a matéria da arte a ideia e a da ciência o conceito vemos que ambos se ocupam do que existe sempre e sempre da mesma maneira, não do que agora é e agora não é, agora é assim e agora é de outra forma: por isso ambos têm a ver com aquilo que Platão estabeleceu como o objecto exclusivo do verdadeiro saber. A matéria da história é, ao contrário, o individual na sua individualidade e contingência, o que é uma vez e logo não volta a ser, as combinações efémeras de um mundo humano que se move como as nuvens com o vento,e que com frequência se transformam completamente devido ao mais pequeno acidente. Desse ponto de vista, a matéria da história apresenta-se-nos como um objecto quase nada digno de uma séria e esforçada consideração por parte do espírito humano; um espírito humano que, precisamente porque é tão perecível, deveria escolher para seu estudo o imperecível» (Arthur Schopenhauer, El mundo como voluntad y representación, Complementos, pag 493, Editorial Trotta, Madrid).
Schopenhauer é, pois, uma das fontes do existencialismo, doutrina segundo a qual o rio da existência humana de cada um escolhe, caprichosamente ou não, o leito da essência. As nossas acções ou actos-existência fazem o nosso carácter-essência e não o inverso.
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Não há dúvida de que Aristóteles era um platónico «envergonhado». Postulava que as formas, como, por exemplo, azul, cavalo, homem, existiam desde a eternidade. Se existiam anteriormente às coisas materiais, constituíam um mundo inteligível similar ao de Platão - com a única diferença de que as formas em Platão eram singulares e únicas e em Aristóteles são singular-colectivas, anteriores aos objectos mas actualizáveis nestes. Senão atente-se nesta passagem:
«Mais exactamente, a verdade e a falsidade consistem nisto: a verdade em captar e enunciar a coisa (pois enunciar e afirmar não são o mesmo); enquanto que ignorá-la consiste em não a captar (já que não tem lugar o erro acerca do quê-é, a não ser acidentalmente) e o mesmo sobre as substâncias carentes de composição: não é possível, certamente, o erro acerca delas; e todas elas são em acto, não em potência, já que, se não fosse assim, gerar-se-iam e destruir-se-iam, mas o que é mesmo não se gera nem se destrói, pois teria que gerar-se a partir de outra coisa. Assim, pois, a respeito das coisas que são uma essência, e que são actos, não é possível errar, mas captá-las ou não» (Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1051 b, 20-30; o negrito é de minha autoria).
Que significa que o erro sobre a essência só pode ocorrer acidentalmente ? Vou dar um exemplo de como interpreto esta frase. Suponho que todos apreendem as essências de sete, dezanove e trinta e três. Mas, embora a generalidade das pessoas saiba que multiplicar o número-essência 7 pelo número-essência 19 dá como resultado o número-essência 153, pode ocorrer que uma, por acidente, cometa o equívoco de considerar o número-essência 163 como resultado da multiplicação.
.As essências estão em acto em si mesmas e em potência para os objectos físicos que virão a surgir no tempo - esta é a leitura dialética da posição de Aristóteles. Ao dizer que «o que é mesmo não se gera nem se destrói» Aristóteles revela-se um platónico: a essência é eterna e imutável e tem de subsistir, em acto, fora dos objectos físicos, para além de existir nestes. No entanto, o Estagirita não crê no mundo inteligível de Platão acima do céu visível, com os arquétipos. Fez este mesmo mundo descer à imanência, imergir na matéria prima universal ou hylé.
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De acordo com o que se lê no Dicionário Oxford de Filosofia de Simon Blackburn, conclui-se que o filósofo analítico inglês Peter Frederik Strawson (23 de Novembro de 1919- 13 de Fevereiro de 2006), catedrático da Universidade de Oxford, se equivocou ao delinear o conceito de categorial. O categorial é, uma substância segunda (adoptando a terminologia de Aristóteles), isto é, a essência de uma espécie de objectos ou entes. Senão vejamos:
«Categorial - Termo usado por Locke (Essay, m.3) e ressuscitado por Strawson (Individuals, pag 168) para referir um substantivo ou "predicável" como "homem", "mulher" ou "tigre" que fornece um princípio para individuar e contar exemplos de coisas de um tipo. "Manteiga" e "coisa" não são categoriais porque não há qualquer princípio que permita contar manteiga (ao contrário do que acontece com porções de manteiga) nem coisas (nunca podemos distinguir quando temos uma coisa ou duas. "Vermelho" não é um categorial mas sim um adjectivo." (Simon Blackburn, Dicionário de filosofia, pag 61, Gradiva; o negrito, excepto o da primeira frase, é colocado por mim).
Se a responsabilidade destes exemplos confusos é de Strawson - nunca se pode excluir a hipótese de ser do próprio Blackburn, um grande fabricante académico das nuvens da confusão "analítica" que, aliás, participa nesta definição nebulosa no Dicionário Oxford- concluiremos que o catedrático inglês nascido em 1919 pensava equivocamente.
Nunca podemos distinguir quando temos uma coisa ou duas? É ridícula esta asserção. Quando temos dois guarda-chuvas (duas coisas) na mão ou quando só temos um guarda-chuva (uma coisa), é impossível distinguir numericamente as duas situações? Coisa é tão categoriável como "mulher" ou "tigre". Dizemos: "Há três coisas que quero dizer-te hoje àcerca das duas mulheres que conhecemos ontem e do tigre que vimos no jardim zoológico". Nesta proposição, tanto o substantivo coisa como os substantivos mulher e tigre permitem individuar, isto é, designar esta coisa, aquela mulher ou aquele tigre.
Se a essência-substantivo homem é um categoriável - com efeito diz-se: "João e Francisco são dois homens" - por que razão a essência-substantivo manteiga não é um categoriável, já que se pode individuar e contar («Olha, comprei três pacotes de manteiga, de 250 gramas cada» ?)
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Com prefácio do catedrático medievalista Mário Santiago de Carvalho, a Contraponto editou em 1995 "O ente e a essência" de São Tomás de Aquino. Servi-me dessa edição para leccionar a estudantes alentejanos uma parte do já "desaparecido", na minha escola, programa de Filosofia do 12º ano do ensino secundário em Portugal, que incluía a escolha de três entre vinte obras conceituadas de filosofia. Tanto o texto original de São Tomás como o prefácio de Mário Santiago de Carvalho padecem de imprecisões teóricas, algumas das quais passo a explanar.
O ARISTOTELISMO NÃO É ESSENCIALISMO?
Em prefácio de uma edição portuguesa de "O Ente e a Essência" de São Tomás de Aquino escreveu Mário Santiago de Carvalho:
« Como se insistiu, este é um mérito de Tomás de Aquino, e ele terá consistido em servir-se com rigor da lógica, elucidando-a e pondo-a ao serviço das tarefas da ontologia Este é portanto um aspecto que não quereríamos desvalorizar , pois é, de facto, a linguagem da lógica, o aristotelismo, com o avicenismo e o essencialismo, que galvanizam este texto. » (Mário Santiago de Carvalho in prefácio de "O Ente e a essência" , pag 61, Contraponto, Porto).
Que significa para Mário Santiago o termo essencialismo? Tudo leva a crer que significa platonismo, pois separa aristotelismo de essencialismo. Trata-se de um equívoco: o aristotelismo é um essencialismo, uma vez que nele as essências antecedem a existência das coisas materiais, tal como em Platão.
A AMBÍGUA DISTINÇÃO ENTRE ESPÉCIE E "NATUREZA HUMANA"
São Tomás, enquanto fiel a Aristóteles, distinguiu entre a essência em si mesma (segundo a sua absoluta consideração) e a essência individuada (segundo o ser que possui em cada indivíduo):
«Mas a natureza ou essência assim compreendida pode ser considerada de dois modos. Do primeiro modo, segundo a sua noção própria, que é a sua absoluta consideração. (...) Por exemplo, ao homem enquanto homem, corresponde-lhe "racional" e "animal" e outros predicados que entram na definição; mas ser branco ou negro, ou qualquer outra coisa semelhante que não pertença à noção de "humanidade" não corresponde ao homem enquanto homem». (...)
«Do segundo modo considera-se (a essência) segundo o ser que possui neste ou naquele indivíduo. Neste caso, pode atribuir-se-lhe algo por acidente, em razão daquilo em que se encontra. Por exemplo, diz-se que o homem é branco, porque Sócrates é branco, embora isso não pertença ao homem enquanto homem.» (São Tomás de Aquino, "O Ente e a Essência", pag 82-83)
«Compete pois à "natureza humana", segundo a sua consideração absoluta, ser atribuída a Sócrates. A noção de espécie, por sua vez, não lhe compete segundo a sua absoluta consideração, mas deriva de acidentes que a acompanham segundo o ser que possui no intelecto. Por esse motivo, o termo de espécie não é atribuído a Sócrates, como se se dissesse "Sócrates é espécie". Mas isso teria necessariamente de suceder, se a noção de espécie conviesse ao homem segundo o ser que tem em Sócrates, ou segundo a sua absoluta consideração, quer dizer enquanto é homem.» (Tomás de Aquino, ibid, pag 85).
Se a "natureza humana", que é o mesmo que a essência homem, como .São Tomás diz no início do livro, convém ao indivíduo Sócrates, porque razão "espécie ´não poderia ser atribuída a homem? É óbvio que, no sentido da extensão, da quantidade dos indivíduos que a integram, Sócrates não é a (toda a) espécie humana, e neste sentido, espécie não lhe convém. Mas do ponto de vista da essência, da forma comum à espécie, esta convém a Sócrates a ponto de se poder dizer: "Sócrates é uma incarnação ou exemplificação da espécie humana" . Aristóteles identificou bem a essência com a espécie (eidos) .O texto de Aquino acima tem falta de clareza.
O ABSOLUTO É EXTERIOR AO SINGULAR E AO UNIVERSAL? A ESSÊNCIA É MÚLTIPLA NA ALMA?
Referindo-se aos dois modos de considerar a essência teorizados por São Tomás, escreveu Mário Santiago de Carvalho:
«A consideração absoluta é evidentemente o ideal da ciência, o índice de que é genuinamente científica a linguagem que fazemos. (...) Sempre que possível, o ontólogo deve privilegiar este plano que não é singular nem universal, mas é absoluto.»
«No segundo modo, a natureza ou essência já não se considera na sua significação, mas na sua realização. Encontramo-nos a um nível menos abstracto. Neste segundo plano acontece aquilo que se recusava ao primeiro. Se, neste, a essência não podia ser una nem múltipla, já no segundo caso é isso que acontece, ela é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e é una na realidade (os unissingulares)». (Mário Santiago de Carvalho, in introdução de "O Ente e a Essência", pag 36; o negrito é de minha autoria).
Por que razão o plano da essência na sua consideração absoluta (exemplo: "o homem enquanto homem") «não é singular, nem universal, mas absoluto», segundo Santiagpo de Carvalho?
Há uma confusão antidialéctica de níveis neste pensamento de Mário Santiago. O absoluto engloba o singular, o particular (no sentido de parte, regional, grupo de entes da mesma espécie) e o universal. Absoluto não se opõe a singular e universal mas sim a relativo: há um singular absoluto e um universal absoluto, um singular relativo e um universal relativo.
Mário Santiago de Carvalho afirma que no caso do seu modo da consideração absoluta «a essência não poderia ser una nem múltipla». Mas sustentar isto é violar o princípio do terceiro excluído: ou as coisas são unas ou não unas, isto é, são múltiplas. Há coisas que são unas e múltiplas em simultâneo, segundo a perspectiva. A essência é sempre una. A essência "cavalo" no seu modo de consideração absoluta - o cavalo enquanto cavalo - é única em todas as mentes humanas: um quadrúpede, mamífero hipomorfo, da ordem dos ungulados, com crinas, veloz, uma das três sub-espécies da espécie Equus Ferus.
Como pode Mário Santiago asseverar que a essência não é una? É um paralogismo.
E afirma ainda que a essência no modo que tem em cada singular "é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e una na realidade (os unissingulares).» Grande nuvem de confusão aqui paira! A essência de Sócrates, que é a essência homem individuada em Sócrates, é una na alma (na percepção, no pensamento) e não múltipla. Podemos admitir que diferentes pessoas conceptualizem Sócrates de modo diferente - e aqui entra a multiplicidade - mas cada uma delas o conceptualiza de forma una.
Quando Santiago de Carvalho diz que «qualquer conceito é universal» equivoca-se no que toca à filosofia de Aristóteles: segundo este, as espécies não são conceitos universais mas sim comuns, isto é, «regionais», abrangendo comunidades sectoriais. Só o género e os universais supra-genéricos, como o ser, o uno, o semelhante, etc, são universais.
ARISTÓTELES NÃO CONCEBIA COMO UMA ESSÊNCIA CHEGA À EXISTÊNCIA?
Escreve ainda Mário Santiago de Carvalho, referindo-se à pretensa superioridade do pensamento de Tomás de Aquino sobre o de Aristóteles:
«Podemos dizer, em resumo deste capítulo, o seguinte: ao substituir a teoria do hilomorfismo universal São Tomás pôs em relevo um tipo de composição muito particular, o da essência com a existência. (...) Considerada deste ponto de vista, à substância ou ao concreto como primeiro objecto da ontologia acresce uma consideração que Aristóteles não podia conceber (como é que uma essência chegou à existência? - como é que esta essência se mantém em existência?)» (Mário Santiago de Carvalho in Introdução de "O Ente e a Essência", pag 49: o negrito é posto por mim).
Ao contrário da tese que sustenta Mário Santiago de Carvalho de que o Estagirita grego não concebia como é que as essências se mantinham em existência, Aristóteles concebia as essências como autosubsistentes, eternas, incriadas, acto, e, portanto, não se punha o problema de as essências chegarem à existência como o põe o cristianismo de São Tomás que identifica Deus com a existência pura, suporte das essências:
«As coisas eternas são, quanto à substância, anteriores às coisas corruptíveis e nada que esteja em potência é eterno. (...) O corruptível em sentido absoluto é o corruptível quanto à substância. Portanto, nenhuma das coisas que são incorruptíveis em sentido absoluto está em potência em sentido absoluto. (Nada impede que o esteja em algum aspecto, por exemplo, quanto à qualidade ou ao lugar.) Logo todas elas estão em acto. Tão pouco está em potência qualquer das coisas que são necessariamente. (Certamente, estas são as realidades primeiras; e, desde logo, se elas não existissem, não existiria nada.)» (Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1050 b, 15-20)
Este texto é muito claro: as essência, por exemplo a essência cavalo ou a essência árvore são incorruptíveis, anteriores aos cavalos e às nuvens físicas, e estão em acto. Isto é platonismo. Essas essências, actos em si mesmas, estão em potência para os cavalos e nuvens que se gerarem, materialmente, no futuro próximo ou longínquo.
O mundo em Aristóteles, é eterno e incriado. Tanto quanto me é dado perceber, o cosmos apenas passou do repouso ao movimento dos astros e esferas celestes quando os planetas e estrelas contemplaram Deus, o pensamento puro e imóvel, e desejaram alcançá-lo pondo-se a rodar. As essências eternas - Sol, Lua, Vénus, Júpiter, esferas celestes, árvore, montanha, homem, cavalo, etc - não foram criadas por Deus, como sustentavam São Tomás e os teólogos cristãos, coexistem desde a eternidade com o próprio Deus, não recebem deste a existência.
O problema da essência (to ti en einai) e da existência (einai, to ón) já está colocado por Aristóteles, não é um tema que principiasse com São Tomás de Aquino. A essência eterna, forma pura, já possui existência, uma existência imaterial.
A INTENÇÃO (INTENTIO) É UM CONHECIMENTO DE MÉDIA DIMENSÃO?
Sobre a intenção (intentio), noção existente na filosofia do Aquinate e em outras da escolástica, escreveu Mário Santiago de Carvalho:
«Examinando mais atentamente o que isto quer dizer, verifica-se que entre a singularidade individual (cada um dos homens) e a universalidade (o conceito, que enuncia o que há de comum aos homens) há um modo de ser próprio, intermediário, que é o modo de ser de uma determinada natureza na inteligência. O modo de ser na inteligência (i.e. o modo como se concebe uma dada realidade) partilha de ambas as notas. Ele é universal (porque se aplica uniformente aos vários indivíduos da mesma espécie) e particular (porque é apenas e sempre a representação mental do indivíduo que num certo momento pensa,»
«É este modo de ser intermediário (a que se dá o nome de "intencional") com as suas notas, que mais nos deve ocupar...» (Mário Santiago de Carvalho, Introdução a "O ente e a essência", pag 37, Contraponto; o negrito é colocado por mim).
A intentio é a percepção empírica, o dado fenoménico, ou o conceito, isto é a ligação entre o cérebro/ inteligência ou orgão sensorial e os objectos físicos exteriores,que pode ou não exprimir integralmente o ser dos objectos exteriores. Guilherme de Ockham escreveu:
«É pois, a saber, que se chama intenção da alma algo que há nela apto para significar outra coisa (...)assim as palavras são signos secundários daquelas coisas das quais são signos primários as intenções da alma. Isso que há na alma, e que é signo da coisa, e do qual se compõe a proposição mental ao modo como a proposição oral se compõe de palavras, se chama algumas vezes intenção da alma; outras, conceito da alma; outras, paixão da alma; outras, semelhança da coisa..» (Ockham, Suma de la lógica in Los filósofos medievales, selección de textos, de Clemente Fernandez, pag 1074, Biblioteca de Autores Cristianos; o negrito é por mim colocado)
Daqui se conclui apenas que a intentio é posicionalmente um intermédio entre o mundo físico exterior e a consciência vazia ou parcialmente vazia do indivíduo. Mas não se pode dizer que a intentio é, por natureza, um intermédio no plano gnosiológico, um conhecimento misto de singular e universal, como sustenta Santiago de Carvalho no texto acima. Os números um, dois, três e quatro são intenções e constituem conceitos universais que se aplicam a biliões de singulares. Em si o conceito de dois não é singular: é um universal, aplicável universalmente a casos singulares.
A ESSÊNCIA DE HOMEM E A DE SÓCRATES DIFEREM SÓ NA QUESTÃO DO LIMITADO/ILIMITADO? OU TAMBÉM NO QUID DA FORMA?
Por matéria delimitada, São Tomás de Aquino entende a matéria concreta, tridimensional, com dimensões corporais definidas. Por exemplo: este homem de 189 centímetros de altura, aquela casa de 120 metros quadrados de área coberta. Escreveu o Aquinate:
«Por esta razão, deve saber-se que o princípio de individuação não é a matéria considerada de qualquer modo mas unicamente a matéria delimitada. Chamo "matéria delimitada" à que se considera submetida a dimensões determinadas. Ora esta matéria não entra na definição de homem, mas entraria na definição de Sócrates, se Sócrates tivesse definição. Na definição de homem, ao contrário, entra a matéria não-delimitada. Na definição de homem, não se põem estes ossos e esta carne, mas os ossos e a carne tomados em abstracto, que constituem a matéria não-delimitada do homem. É evidente, por conseguinte, que a essência de homem e a essência de Sócrates não diferem senão quanto ao "delimitado" e ao "não-delimitado" ». (Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, pag 75, Contraponto; o negrito é posto por mim).
O equívoco de São Tomás é considerar o delimitado como a diferença entre a essência Sócrates com a essência homem que não tem limites mas apenas a proporção entre as diferentes partes. Mas falta uma diferença essencial que reside no "quid" de cada uma das essências, a individual e a específica: a forma de Sócrates, calvo, nariz achatado, lábios grossos difere da forma homem como espécie - homem não calvo, nariz correcto, etc. É, pois, a disparidade entre duas formas, a que envolve a matéria de cada corpo e a que paira como espécie.
A FORMA É RECIBIDA NA MATÉRIA DELIMITADA?
Depois de se referir a duas modalidades de essências - a de Deus, que é apenas existir puro, e a das inteligências separadas, que são forma e existência - São Tomás escreve:
«Na terceira modalidade, a essência encontra-se nas substâncias compostas de matéria e de forma, nas quais o existir é igualmente recebido e finito, já que recebem o existir a partir de outro. Além disso a sua natureza ou quididade é recebida na matéria delimitada. Por esse motivo são finitas, quer pela parte superior quer pela inferior.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 96, Contraponto; o negrito é posto por mim).
Neste texto há um erro de São Tomás: originalmente, e na natureza, a forma não é, em regra, recebida na matéria delimitada mas sim na matéria não delimitada, delimitando ou confinando uma porção desta. Pois a matéria só se torna delimitada, isto é, condensada, sujeita a dimensões singulares e concretas, ao receber a forma específica. As árvores nasceram quando a forma árvore se uniu à matéria-prima indeterminada, infinita, não delimitada (hylé). É óbvio que o oleiro faz o vaso imprimindo a forma numa matéria delimitada: uma certa porção de barro. Mas aqui trata-se da arte humana de produzir e não da génese originária na natureza.
A CONTRADIÇÃO DE ARISTÓTELES PATENTE EM SÃO TOMÁS: A ESSÊNCIA SÓ EXISTE NAS COISAS SINGULARES MAS TEM DE EXISTIR PREVIAMENTE ÀPARTE COMO FORMA ETERNA
Toda a "Metafísica" de Aristóteles gira em torno de um eixo dinâmico: um essencialismo ( "as formas ou essências são eternas e preexistem aos objectos materiais" e nisto é igual a Platão) que se procura converter em existencialismo (" as formas essenciais não existem fora dos objectos materiais, fora da existência material" e aqui opõe-se a Platão) mas não tem como fazê-lo, senão mediante uma certa incoerência.
Aristóteles é um platónico envergonhado. Critica a existência das formas platónicas mas ele mesmo é levado a admitir que as formas são eternas e têm de subsistir por si, fora da matéria. Mário Santiago de Carvalho não dá conta de se ter apercebido desta inconsistência do aristotelismo na introdução à edição que traduziu para português. Neste excerto da "Metafísica" Aristóteles admite que há formas eternas não geradas, ou seja, formas fora da matéria, tal como Platão postulava, e em seguida afirma que não existe a essência esfera fora das esferas materiais (de bronze, pedra, etc) nem a forma casa fora das casas plasmadas na matéria:
«Assim pois, é evidente por aquilo que foi dito que não se gera o que se denomina forma ou substância, enquanto que o composto que se denomina segundo esta gera-se, sim, e que em todo o gerado há matéria, e um é isto, e outro é aquilo.»
«Mas existe acaso uma esfera fora de estas ou uma casa fora dos tijolos? A ser assim, não ocorreria que não se geraria nenhum objecto determinado? (...) Assim, pois, é evidente que se existem realidades fora dos indivíduos, tal como alguns costumam falar das Formas, a causalidade das Formas não terá utilidade nenhuma para explicar as gerações e as substâncias.» (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1033 b, 15-30).
São Tomás cai na mesma incoerência inerente ao aristotelismo:
« De maneira semelhante, também não se pode dizer que as noções de género ou de espécie correspondam à essência, enquanto que esta é uma realidade fora das coisas singulares. como afirmavam os PLATÓNICOS» ( Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 82; o negrito é posto por mim).
Neste excerto acima, o Aquinate nega que a essência exista fora do objecto singular.
Compare-se agora com o excerto seguinte em que o filósofo dominicano afirma que a essência está fora do objecto singular e fora da alma, o que nega o nominalismo e o conceptualismo irrealista e afirma um realismo platonizante das essências:
«Com efeito, é falso dizer que a essência do homem, enquanto tal, tem o ser neste singular. Na verdade, se ser neste singular pertencesse ao homem enquanto é homem, nunca estaria fora deste singular. Paralelamente também, se pertencesse ao homem enquanto é homem não ser neste singular, nunca seria nele. A verdade porém está em dizer que o homem enquanto é homem, não tem que existir neste singular ou naquele, nem na alma.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, paginas 83-84, Contraponto; o negrito é posto por mim).
De duas uma: ou a essência «Homem» existe no colectivo de todos os homens e não em cada homem singular; ou existe, algures, aparte, para gerar cada homem ao unir-se à matéria-prima indeterminada (hylé).
A única diferença significativa entre Platão e Aristóteles, neste aspecto da cosmogénese, é que o primeiro introduz o demiurgo, um deus-operário, que imprime formas dos arquétipos na matéria e o segundo faz desaparecer, aparentemente, o demiurgo e confere às formas eternas mobilidade, autonomia, para se imprimirem na matéria, uma vez que o Deus aristotélico é imóvel e não intervém no mundo.
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Na "Fenomenologia do Espírito" Hegel escreveu:
« Mas o espírito não se mostrou ante nós como simples recolhimento da autoconsciência na sua pura interioridade, nem como o mero afundamento da autoconsciência na substância e no não ser da sua diferença, mas como este movimento do si mesmo que se aliena de si mesmo e se afunda na sua substância que, como sujeito, se adentrou em si partindo dela e convertendo-a em objecto e conteúdo, ao superar esta diferença da objectividade e do conteúdo. Aquela primeira reflexão partindo da imediatez é o diferenciar-se o sujeito da sua substância ou o conceito que se cinde, o ir para dentro de si e o devir do eu puro. Enquanto esta é um puro operar do eu=eu, o conceito é a necessidade e o surgir do ser aí (Dasein) que tem a substância como sua essência e subsiste para si. Mas o subsistir do ser aí para si é o conceito posto na determinabilidade e, portanto, o seu movimento nele mesmo, consiste em afundar-se na simples substância, que somente é sujeito como esta negatividade e este movimento. O eu não tem razão para aferrar-se à forma da autoconsciência contra a forma da substancialidade e objectividade, como se tivesse medo da sua alienação; a força do espírito consiste em permanecer igual a si mesmo na sua alienação e, como que é em si e para si, em pôr o ser para si somente como momento, como se punha o ser em si.» (Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, pags 470-471; o negrito é posto por mim).
Note-se que, neste excerto de Hegel, o termo substância possui um sentido fisicalista: a matéria é substância, o espírito em si não. Estamos, pois, em termos de terminologia, longe da res divina ( substância divina) expressão que Desacartes usava ao referir-se a Deus. Temos, no texto acima, as três fases do espírito, estático e em movimento,- as que compõem a dialéctica espiralar, quase circular, de Hegel - assim expressas:
1. Autoconsciência em si. O ser em si. O espírito, Deus, um pensamento universal abstracto, o ser, antes de criar o mundo físico, o espaço e o tempo. A imediatez, em sentido ontológico e protológico.
2. A substância da autoconsciência ou a autoconsciência alienada: o ser fora de si, na sua diferença como substância material, a matéria, o mundo da natureza biofísica, que é uma alienação do espírito puro, o objecto e o conteúdo (material) do espírito, substancialidade e objectividade. É negatividade porque a matéria nega o espírito, ao não possuir ideias, raciocínio, imaginação.
3. A autoconsciência como conceito: o ser para si, ou a consciência que, após mergulhar na matéria, reentra em si, na primeira fase, mas enriquecida com o saber da experiência.
O termo imediatez em Hegel parece ter um significado duplo: há a imediatez do ser puro, que é espírito ainda virgem, abstracto, ao qual nada foi acrescentado, uma imediatez ontológica, por assim dizer; e a imediatez da sensação, que é natureza biofísica "reflectida" instantaneamente na consciência humana, sem a reflexão própria do conceito, do intelecto, uma imediatez gnosiológica.
Hegel dá ao termo essência um sentido material. Isto é expurgar a essência, do seio do ser puro. Ser = espírito, essência= matéria, conceito = ser para si, ser individuado (Dasein) que é reflexão, regresso do pensar a si mesmo. Em Aristóteles, a essência (eidos) era uma forma eterna, destituída de matéria. Aristóteles designava a essência incarnada na matéria por substância primeira (proté ousía). Mas com Hegel, a essência passa a designar a substância, a forma preenchida por matéria. E isso abre caminho já ao materialismo de Marx e Engels.
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Em um dos seus mais belos textos filosóficos, datado de 1942, Heidegger escreveu:
«A expressão óntico, inspirada no grego tò ón, o ente, significa aquilo que se cinge ao ente. Mas o grego "ón", ente, encerra dentro de si uma essência própria de entidade (ousía) que no transcurso da sua história nunca permanece igual.(...) Como ón significa tanto "ente" como "o quê é" ( 1) on enquanto "ente" pode ser reunido (legéin) em direcção a "o quê é" ( 2) . Até se pode dizer que, de acordo com a sua ambiguidade, ón já está reunido como ente por mor da sua entidade. É ontológico. Mas com a essência do ón e a partir de ela, esse reunir que é, o lógos, transforma-se em cada caso e com ela, a ontologia. Desde que ón, o que se apresenta, se abriu como físis, a presença do que se apresenta reside, para os pensadores gregos, no fainestaí, na manifestação do não oculto que se mostra a si mesma. De acordo com isto, a multiplicidade do que se apresenta, tà onta, é pensada como aquilo que na sua manifestação é simplesmente aceite como o que se apresenta. A aceitação (dékestai) fica sem continuidade. Efectivamente, não continua a pensar mais além, na presença daquilo que se apresenta. Fica na dóxa. Pelo contrário, o noein é aquele perceber que percebe o presente na sua presença e a partir de aí abarca-a com ele.»( Martin Heidegger, Caminos de Bosque, El concepto de experiencia de Hegel, pag 133, Alianza Editorial, Madrid; o negrito é posto por mim).
1) Nota minha: A tradução espanhola desta passagem diz: "Como ón significa tanto "ente" como "lo que es". Atrevi-me a alterá-la, substituindo "o que é" por o "quê é" porque me parece absurda a versão espanhola: o ente é "o que é", "algo que é" , e não "o quê é" , tò tí, isto é o quid, a forma específica ou individual.
2) Nota minha: de novo corrijo aqui a tradução espanhola de "lo que es" substituindo-a por "lo qué-es" ( o quê é).
Ser possui na língua grega, o significado de presença, conforme sublinha Heidegger. Mas a essência não é, em rigor, presença, mas forma, estrutura. A essência delimita, especifica ou individualiza o ente, como a forma da estátua de mármore delimita ou individualiza o mármore em bruto. No texto acima, a presença designa o "ser" e o presente indica o "ente".
A acusação de Heidegger à tradição filosófica é a de esta esquecer o ser, que subjaz ao ente e o transcende, em favor do ente. Por exemplo: a metafísica cristã, confundiu o "ser", qualidade totalizante, com o ente "Deus", um espírito omnipotente, benéfico e autor do mundo.
A minha crítica a Heidegger, pensador brilhante da ontologia e, em certa medida, da filosofia analítica, reside na sua ambígua interpretação do termo "ser", nomeadamente expressa na seguinte passagem de Sein und Zeit:
«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. E com razão - si definitio fit per genus proximum et differentiam specificam. O "ser" não pode, com efeito, conceber-se como um ente; enti non additur aliqua natura; o "ser" não pode ser objecto de determinação predicando dele um ente.» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, pag 13, Fondo de cultura económica de España, Madrid; o negrito é colocado por mim).
Penso que o conceito de ser é definivel. A sua definição é dupla:
A) É o existir universal (presença).
B) É a essência geral de todos os entes, incluindo do ser-aí (cada homem, na sua singularidade).
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Aristóteles distinguiu quatro predicáveis: o próprio, o acidente (symbebêkós), a definição e o género. Predicável significa uma entidade da qual se predica (diz, qualifica) algo - por exemplo, a espécie homem é predicável porque de homem predica-se animal («O homem é um animal») e o género animal é predicável porque de animal predica-se ente vivo («Todo o animal é um ente vivo»). Parece haver alguma subtil confusão, nesta classificação, entre dois planos: o ontológico (do ser) e o eidológico (da essência). O grande filósofo grego escreveu:
«Toda a proposição e todo o problema (problemata) indicam ora um género (génos), ora um próprio (ídios), ora um acidente (pois também a diferença, ao ser genérica, há-de ser colocada no mesmo lugar que o género); e, já que entre o próprio, há o que significa quê é o ser (Tò tí en eînai) e há o que não significa isso, há-de dividir-se o próprio nas duas partes anteriormente ditas, e a uma se chamará definição (horismós, em grego), que significa quê é o ser, e a outra, de acordo com a designação dada em comum a ambas, se chamará próprio. Assim pois é evidente, a partir do que foi dito, por que razão, de acordo com a presente divisão, tudo vem a reduzir-se a quatro coisas: próprio, definição, género ou acidente. (Aristóteles, Tópicos, Livro I in Tratados de Lógica (Órganon), pag 94-95, Editorial Gredos, Madrid).
O texto alude à diferença genérica. A diferença é genérica ou específica? Dentro de um género, as diferenças entre as diferentes espécies - exemplo, no género animal - são específicas e não genéricas. Não é clara, pois, a alusão à diferença genérica - existe, de facto uma diferença entre os géneros, mas existem também as diferenças específicas no seio de cada género.
Sobre a definição, essência traduzida no plano verbal, Aristóteles sustenta, acima, que faz parte do próprio tal como o próprio. Há aqui uma certa ambiguidade, uma duplicação de sentidos de próprio: há o próprio substância (exemplo: este vaso de barro), que inclui a forma comum, não própria, que lhe veio de cima, e o próprio acidente (exemplo: este barro), que é a porção de matéria ordenada e individuadora, aquilo que é mesmo singular e único. Não esqueçamos que para Aristóteles, a matéria é o princípio da individualização, a concreção no máximo grau.
A relação entre a substância e o acidente desenrola-se no plano ontológico, do que é e do que não é: a substância é, o acidente é e não é. O acidente é algo mas não é intrínseco à substância - referimo-nos ao acidente extrínseco, como por exemplo, a esferográfica (acidente) pousada sobre a substância mesa. Quando se trata do acidente intrínseco à essência (exemplo: o piscar de olhos ou o sorrir de cada ser humano) a descontinuidade mantém-se como característica do acidente: este é descontínuo, ora acontece ora desaparece, e só a sua forma, em conexão necessária com a substância, o classifica como acidente intrìnseco à substância, ao próprio.
A essência é, sempre, captada por abstracção, imprescindível no plano filosófico e científico; a essência existe misturada com a existência, com o existir ou ser puro.
Mas a relação entre o género, a essência-definição e o próprio - este entendido como substância, isto é, um composto de forma e matéria - desenvolve-se primariamente, não no plano ontológico, mas no plano eidológico, que é um plano formal concreto.
Assim, o termo próprio encontra-se na encruzilhada do seu duplo sentido: é o que é (tó on) - sentido ontológico em comparação com o acidente - e é o quê é (tó tí)- sentido eidológico, que lhe é dado pelo facto de ser constituido por uma forma individual participada pela forma-espécie-definição e pelo género.
O aparente paradoxo da concepção aristotélica é o de duas entidades não individuais mas colectivas - a forma comum (definição) ou espécie e a matéria-prima (Hylé) - forjarem entes individuais concretos ao unirem-se, sendo a matéria o princípio da individuação.
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Teodorico de Freiberg, um pensador dominicano alemão (1250? - 1320) que se opôs à doutrina de Tomás de Aquino, escreveu sobre o ente:
«1. Ora o ente é o que há de mais geral. Compreende em si, na sua extensão, tudo, quer segundo a coisa quer segundo a significação. Significa a essência de tudo aquilo de que é predicado, seja predicado de uma substância seja de um acidente, conforme diz o Filósofo no princípio do Livro IV da Metafísica. Não há inconveniente em ser predicado da substância e do acidente, indicando a essência daquilo de que é predicado. Isto porque o ser é predicado da substância e do acidente segundo uma noção diferente, dado que a substância e o acidente derivam de noções diferentes, enquanto são entes.»
«2. De facto ambos são ditos "ente" enquanto têm uma certa essência. Mas a substância tem a essência segundo uma noção diferente da que o acidente tem. Isto é claro com base naquilo que Agostinho diz no capítulo 16 de A Imortalidade da Alma: «O que faz com que qualquer essência seja uma essência é o facto de ser.» Contudo o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pags. 27-28; o negrito é colocado por mim).
Teodorico não é de uma clareza absoluta porque não distingue as propriedades do ser das propriedades da essência. Joga na ambiguidade do termo "ser" que, ora é interpretado como existir ora como configuração, quid. E invoca Santo Agostinho mas, de facto, este equivocou-se: não é o ser que faz com que uma essência seja essência; o ser faz com que uma essência exista enquanto essência, ou seja, esteja impressa, plasmada, numa matéria indeterminada (o ser) gerando um ente concreto. Ser é ontologia e essência é eidologia. Em certo sentido, esta é anterior à ontologia. Se eu pensar em um cavalo com tromba de elefante e barbatanas de peixe em vez de patas traseiras penso numa essência que não existe no mundo biocósmico, mas que existe apenas na minha imaginação. Logo, não é o ser que faz com que a essência seja: é a forma, como princípio, que desenha ou estrutura a essência, não o ser. Há essências que são e outras que não são. Homem de sangue verde é uma essência imaginária, que não é (não existe no real), mas homem de sangue vermelho é uma essência real. Logo não é o ser que faz a essência: o ser é um correlato da essência, não o autor ou causa eficiente, fabricante, daquela. Parece que Platão, sem embargo de deslizar anfibologicamente em dois sentidos da palavra ser - existência e conjunto das formas imóveis inteligíveis - terá teorizado a Díade do Grande e do Pequeno como fonte das formas ou essências e o Uno como fonte do ser.
Também não parece que «o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente». Se entendermos por ser o existir, a mesma noção de existir se aplica à substância - a forma permanente do ente - e ao acidente - a forma transitória e parcelar do ente.
O ente (tó on) é para Aristóteles um sujeito indeterminado, universal, apto a contrair-se em qualquer substância: as suas características primordiais são existir e ser uno. « E o ente constitui o comum a todas as coisas» (Aristóteles, Metafísica, 1004 b, 20-25) .A filosofia - séculos mais tarde designada ontologia - é a ciência do ente, do que é. Género, espécie, substância primeira e acidente são modos do ente.
Teodorico distingue a quididade - uma qualidade determinada e estrutural; a essência ou forma da espécie, em Aristóteles - do quid ( que o tradutor Mário Santiago de Carvalho traduz por "o que" e nós por "o quê é») - a qualidade determinada particularizada ou individuada em tal ou qual ente. Mas mistura o quid com o quod e nesse sentido afasta-se de Aristóteles:
«4. Mas "quididade", que deriva de "o que" por abstracção, significa apenas o princípio formal que faz com que uma coisa seja essencialmente qualquer coisa. E é isto que comunmente se diz, e bem, ou seja, que nos simples a quididade e aquilo que é "o que" se identificam. Ora isto não acontece nos compostos de matéria e de forma. Nestes só a forma é quididade.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 32; o negrito é colocado por mim).
«8. Neste segundo modo de significação, tomado em sentido comum, é evidente que "brancura" e "branco" diferem quanto à significação. "Brancura" significa somente a qualidade, e "branco" significa o agregado do sujeito e da qualidade. E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.» (ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).
A minha discordância relativamente a esta posição, inteligentemente explanada, é a seguinte: o quid ou quê-é, na perspectiva aristotélica, não engloba a totalidade do ente, mas constitui, de certo modo, o invólucro, a configuração, a estrutura deste. Uma estátua de mármore é um quid, não pelo mármore em bruto, mas pela forma que neste o escultor imprimiu. O quod é o ente abstractamente considerado, como algo existente, sem forma determinada.
A CONFUSÃO DA EXISTÊNCIA COM A ESSÊNCIA
A incoerência fende,subtilmente, o texto de Teodorico:
«5. O ser e "o que é" diferem no seguinte. O ser designa toda a essência da coisa. "O que é" significa uma parte da coisa, nas coisas compostas.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 45; o negrito é colocado por mim).
Ora isto contradiz a seguinte passagem acima citada:
«E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.»(ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).
Comparando estas dois pensamentos, deduzimos que, na interpretação de Teodorico, o ser e o quê-é (na sua terminologia: "o que") são uma e a mesma coisa já que «significam toda a essência da coisa». Isto é um equívoco, uma confusão entre existência (ser) e essência ("quê-é, "o que").
O prefaciador Mário Santiago de Carvalho, sem embargo dos seus altos méritos na difusão da filosofia medieval, não parece ter detectado o equívoco do dominicano alemão do século XIV, equívoco que se desmonta assim: se "o que" ou quid constitui toda a essência da coisa, isto é, o composto forma-matéria, como sustentou Teodorico, então a substância primeira ou ente individualizado - exemplo: este vaso azul de barro - em nada se distingue da sua espécie ou substância segunda - o conjunto dos vasos azuis de barro. Aristóteles apontou a matéria como princípio de individuação mas essa teoria está aqui ausente. Em Teodorico, a matéria, originariamente destituída de forma, está incluída no quid, o que constitui um desvio do pensamento aristotélico e uma confusão entre a forma, acidental ou essencial (quid) e a não forma (matéria-prima, hylé).
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