Domingo, 10 de Julho de 2011
George Berkeley e David Hume: a mesma ideia de substância material como percepção ou ideia, o mesmo idealismo

 

David Hume (7 de Maio de 1711- 25 de Agosto de 1776) perfilhou o mesmo idealismo imaterialista que George Berkeley (12  de Março de 1685-14 de Janeiro de 1753) e não disfarçou a sua admiração por John Locke (29 de Agosto de 1632- 28 de Outubro de 1704, empirista e associacionista, referindo-se a este último como «grande filósofo»: 

 

« Levantou-se um problema muito importante com relação às ideias abstractas ou gerais, a saber, se elas são gerais ou particulares quando a mente as concebe. Um grande filósofo contestou a opinião estabelecida sobre este assunto e afirmou que todas as ideias gerais não são senão ideias particulares adstritas a um certo termo que lhes dá significado mais extenso e faz que evoquem outros indivíduos a elas semelhantes.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 46, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; o negrito é da minha autoria).

 

Sobre a substância, em particular como matéria exterior ao corpo humano e independente de nós, Hume escreveu:

 

«Mas creio que ninguém afirmará que a substância é uma cor, um som, ou um sabor. A ideia de substância deve portanto provir de uma impressão de reflexão, se ela na realidade existe. Ora as impressões de reflexão reduzem-se às nossas paixões e emoções, nenhuma das quais com certeza pode representar uma substância. Portanto não temos uma ideia de substância distinta da de uma colecção de substâncias particulares, nem queremos dizer outra coisa quando falamos ou raciocinamos sobre ela.»

«A ideia de substância, assim como a de modo, não é senão uma colecção de ideias simples unidas pela imaginação, às quais se deu um nome determinado, que nos permite evocar, quer para nós próprios, quer para os outros, essa colecção.» (David Hume, ibid, pag. 45).

 

Comparado com o de David Hume, o pensamento de Berkeley limita-se a acrescentar Deus, o Autor da natureza, à tese de que os objectos materiais são percepções (impressões sensoriais) ou ideias no espírito humano:

 

«As ideias impressas nos sentidos pelo Autor da natureza chamam-se objectos reais; e as excitadas na imaginação, por menos regulares, vivas e constantes, designam-se mais propriamente por ideias ou imagens de coisas que copiam ou representam. Mas as nossas sensações embora nunca fossem vivas e claras são no entanto ideias, isto é, existem no espírito ou são por ele percebidas como as que ele mesmo forma. Às ideias dos sentidos atribui-se realidade maior, por mais fortes, ordenadas e coerentes do que as criadas pelo espírito; isso não prova que existam fora de ele. São também menos dependentes do espírito ou substância pensante que as percebe porque as provoca a vontade de um espírito mais poderoso; mas são ideias e nenhuma ideia forte ou fraca pode existir senão no espírito que a percebe.» (Berkeley, Tratado do conhecimento humano, pags 36-37, Atlântida; o negrito é de minha autoria).

 

 

Berkeley diz, basicamente, o mesmo que Hume: os objectos materiais fora do nosso corpo ( as casas, as montanhas, o céu com nuvens, etc) são apenas percepções ou um misto de percepções e ideias nossas, sempre alojados na esfera do nosso espírito que transcende o corpo. A cadeira e a mesa que vejo são percepções trabalhadas pela imaginação que as coloca fora do meu corpo, mas não existem fora do meu espírito. E Kant diz, essencialmente, o mesmo, recorrendo a conceitos como formas a priori da sensibilidade e do entendimento, fenómeno, númeno, apercepção transcendental pura, etc.

 

O mais surpreendente é que os Dicionários de Filosofia e os tratados de gnosiologia, que é como quem diz, as cátedras universitárias em geral classificam Hume de fenomenista, de empirista radical... mas não de idealista. O artigo sobre Hume do "Dicionário Oxford de Filosofia" de Simon Blackburn não classifica uma única vez de idealista o filósofo escocês:

 

«Hume foi o primeiro empirista moderno a recusar a ajuda quer dos princípios a priori do raciocínio, quer de qualquer outra ideologia que garanta a harmonia entre as nossas percepções e o mundo.» (Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, pag 210, Gradiva).

 

Mas empirista não se opõe a idealista, como idealismo se opõe a realismo. Empirismo e idealismo são espécies de géneros diferentes. Há empiristas idealistas e racionalistas idealistas. Há empiristas realistas e racionalistas realistas.

 

 

Se a ontognoseologia de Berkeley é, basicamente, a mesma que a de David Hume, por que razão atacou Kant o primeiro e não o segundo? Talvez por Berkeley sustentar, dogmaticamente, a existência de Deus e Hume não. E talvez porque foi lendo Hume que Kant se apercebeu da inexistência de determinismo rigoroso na natureza. E o ataque de Kant a Berkeley foi falacioso:

 

« O idealismo (o idealismo material, entenda-se) é a teoria que considera a existência dos objectos fora de nós, no espaço, ou simplesmente duvidosa e indemonstrável, ou falsa e impossível; o primeiro é o idealismo problemático de Descartes, que só admite como indubitável uma única afirmação empírica (assertio), a saber, eu sou; o segundo é o idealismo dogmático de Berkeley, que considera impossível em si o espaço, com todas as coisas de que é condição inseparável, sendo, por conseguinte, simples ficções as coisas no espaço. (..) Mas o fundamento deste idealismo foi por nós demolido na estética transcendental.» (Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, pag 243, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é posto por mim).

 

Veja-se a posição de Kant, que sustenta a irrealidade do espaço, posição igual à de Berkeley que ele tão veementemente condena:

 

«Afirmamos pois a realidade empírica do espaço (no que se refere a toda a experiência exterior possível) e, não obstante, a sua idealidade transcendental, ou seja, que o espaço nada é, se abandonarmos a condição de possibilidade de toda a experiência e o considerarmos com algo que sirva de fundamento das coisas em si.» (Immanuel Kant, ibid, paginas 68-69).

 

"Realidade empírica" do espaço significa realidade aparente do espaço: nós vemos o espaço como algo situado fora do nosso corpo, mas esse "fora" é uma projecção subjectiva do nosso eu. O espaço, em si, é impossível tanto para Kant como para Berkeley. O ataque de Kant a Berkeley é uma série de paralogismos, de raciocínios errados, baseados na ambiguidade da terminologia kantiana. Para Kant, se a mente do sujeito se extiguisse, o espaço desapareceria porque é um cenário irreal de aparência objectiva. E para Berkeley, sucede o mesmo.

 

 

  

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 21:39
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1 comentário:
De Nilson B. Nunes a 20 de Dezembro de 2018 às 12:30
“NIHIL IN INTELLECTU NISI PRIUS IN SENSU” (Berkeley, T. Aquino, Hume, Locke, Aristóteles), “NISI INTELLECTUS IPSE” (Leibnitz, Kant).


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