Na linha do racionalismo francês, com fina análise psicológica, Gilles Deleuze (18 de Janeiro de 1925- 4 de Novembro de 1995, o dia do assassínio do primeiro-ministro israelita Itzak Rabin) foi um pensador académico poderoso. Uma das suas ideias chave é a de que a Diferença se sobrepõe à Mesmidade/Identidade, embora andem de mãos dadas. Deleuze possui uma influência considerável de Leibniz - note-se que, em brincadeira cabalística, a imaginação sugere-nos que Giles De...Leuze poderia chamar-se Giles De..Leibniz.
Sabe-se que para Leibniz a mónada - um conceito retirado de Aristóteles: o ponto inespacial, que está em parte nenhuma - era a fonte primordial do universo. a mónada é uma unidade de força e movimento, tal como a Diferença que cria a intensidade e a profundidade, na teoria de Deleuze.
Leibniz, que me parece um vincado inspirador de Deleuze, escreveu sobre a mónada ou substância simples sem partes, hermeticamente fechada ao exterior:
«10. Dou também por concedido que todo o ser criado está sujeito à mudança e, por consequência, também a Mónada criada, e também que essa mudança é contínua em cada uma.» (Gottfried W. Leibniz, Monadologia)
Isto corresponde, na teoria de Deleuze, à Diferença, essa espécie de arquétipo em mutação incessante de intensidade, que cria a profundidade, o espaço, o tempo, o mundo dos fenómenos caracterizado por extensão e qualidade (qualitas) e corpos materiais (quales):
«No ser, a profundidade e a intensidade são o Mesmo - mas o mesmo que se diz da diferença. A profundidade é a intensidade do ser ou inversamente. E dessa profundidade intensiva, desse spatium, saem ao mesmo tempo, a extensia e o extensum, a qualitas e o quale.» (Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, pag 375).
O CONCEITO DE DIFERENÇA, UM MISTO DE ARQUÉTIPO EM PLATÃO E MÓNADA EM LEIBNIZ
Sobre o conceito de Diferença, capital na sua filosofia., Deleuze escreveu:
«A diferença não é o diverso. O diverso é dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. É aquilo pelo qual o dado é dado como diverso. A diferença não é o fenómeno, mas o númeno mais próximo do fenómeno. É, portanto, verdade que Deus fez o mundo calculando, mas os seus cálculos nunca estão correctos; e é mesmo esta injustiça no resultado, esta irredutível desigualdade que forma a condição do mundo. O mundo «faz-se» enquanto Deus calcula; não haveria mundo se o cálculo fosse correcto. O mundo é sempre assimilável a um "resto" e o real no mundo só pode ser pensado em termos de números fraccionários ou mesmo incomensuráveis. Todo o fenómeno remete para uma desigualdade que o condiciona. Toda a diversidade e toda a mudança remetem para uma diferença que é a sua razão suficiente. Tudo o que se passa e aparece é correlativo de ordens de diferenças: diferença de nível, de temperatura, de pressão, de tensão, de potencial, diferença de intensidade.» (Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, pag 361, Relógio d´Água; o negrito é colocado por mim).
Para Deleuze, a diferença é a forma principial dinâmica, por assim dizer, o arquétipo em movimento: enquanto que em Platão o arquétipo ou essência estática é reproduzido no mundo da matéria - é deficientemente clonado - por acção do demiurgo, que constitui a força dinâmica que plasma a essência na matéria, na chora ou espaço material caótico. Assim, a Diferença é como a mónada de Leibniz : originária, imune a influências exteriores, variando de intensidade porque em contínua transformação.
No entanto, neste texto acima a palavra diferença reveste-se de dois sentidos distintos, o que parece ter escapado a Deleuze: diferença como forma principial dinâmica (nas primeiras linhas do texto) e diferença como diversidade entre objectos e estados, como diversidade no interior do cosmos (nas últimas linhas do texto). No primeiro caso, a Diferença, como arquétipo-demiurgo, não é diferença em relação a algo, mas tem um estatuto ontológico primordial, em si: é princípio da diversidade.
Não parece ser esta a leitura que Fernando Gil faz no prefácio da edição portuguesa do "Diferença e repetição" de Deleuze.
A DIFERENÇA É O CENTRO DO PROCESSO DO ETERNO RETORNO E O MESMO SÓ ESTÁ NA CIRCUNFERÊNCIA?
Retomando o tema do eterno retorno, que é caro a Nietzschze e aos estóicos, Deleuze escreveu:
«O génio do eterno retorno não está na memória, mas no desperdício, no esquecimento tornado activo(...) Assim, a negação como consequência resulta da plena afirmação, consome tudo o que é negativo e consome-se a si próprio no centro móvel do eterno retorno. Se o eterno retorno é um círculo, é a Diferença que está no centro, estando o Mesmo apenas na circunferência - centro descentrado a cada instante, constantemente tortuoso, que gira apenas em torno do desigual.»
«A negação é a diferença mas a diferença vista do lado menor, de baixo.Invertida, vista de cima para baixo, a diferença é a afirmação. Mas esta proposição tem muitos sentidos: que a diferença é objecto de afirmação; que a própria afirmação é múltipla; que ela é criação, mas também deve ser criada, afirmando a diferença, sendo a diferença em si mesma. Não é o negativo que é o motor...» (Gilles Deleuze, Diferença e repetição, pags 120-121, Relógio d´Água; o negrito é posto por mim).
Um dos problema que esta citação levanta é: se a Diferença gira em torno do Desigual - comparemos a Diferença ao sol que tudo ilumina e gira em torno de um centro, apesar de o Sol/Diferença ser o centro irradiante do universo - como classificar a instância do Desigual? Como uma diferença formal, ontologicamente anterior à Diferença-Arquétipo-Mónada?
Há erros antidialécticos neste texto de Deleuze. Não é possível opor a Diferença ao Mesmo como o centro do círculo se opõe à circunferência. A Diferença em si é um Mesmo, porque tem consistência ontológica. Ela só é um Outro em relação a outra Diferença ou ao mundo dos fenómenos.
Também ao afirmar que "a negação é a diferença... vista de baixo" está a atribuir à negação (uma predicação) o significado de "diferença", isto é, diferença numa perspectiva de visão ... da Diferença, como ser principial. É um uso anfibólico, falacioso, do termo "diferença", - diferença em si, ou seja, Forma-Energia, e diferença para outrém, ou seja, desigualdade (negação ou afirmação de algo). É, pois, a pura sofística no texto de Deleuze - escreve muito bem mas afasta-se, poeticamente, do rigor epistémico da descrição ontológica. Lembra "O sofista" de Platão. E a mesma crítica se aplica à frase "invertida, vista de cima para baixo, a diferença é a afirmação".
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica