Gilles Deleuze é mais um dos filósofos que não compreendeu o núcleo essencial da doutrina de Kant. Escreveu:
«A ideia fundamental de que Kant denomina a sua "revolução coperniciana" consiste no seguinte: substituir a ideia de uma harmonia entre o sujeito e o objecto (acordo final) pelo princípio de uma submissão necessária do objecto ao sujeito (...)
«Seria legítimo esperar que o problema de uma submissão do objecto pudesse ser facilmente resolvido do ponto de vista de um idealismo subjectivo. Mas nenhuma solução é mais estranha ao kantismo. O realismo empírico é uma constante da filosofia crítica. Os fenómenos não são aparências, mas também não são produtos da nossa actividade. Afectam-nos na medida em que somos sujeitos passivos e receptivos. Podem ser-nos submetidos; precisamente porque não se trata de coisas em si. Mas como o serão, sabendo-se que não somos nós que os produzimos?» (Gilles Deleuze, A filosofia crítica de Kant, pag 23, Edições 70; o negrito é de minha autoria).
O equívoco de Deleuze reside em dizer que os fenómenos «afectam-nos na medida em que somos sujeitos passivos». É um erro. Quem nos afecta não são os fenómenos, mas os númenos, entes metafísicos. É certo que Kant denomina a sensibilidade de faculdade receptiva mas ao mesmo tempo mostra, sem ser muito claro, que esta cria o fenómeno, ou seja, é activa:
«Dou o nome de matéria ao que no fenómeno corresponde à sensação; ao que, porém possibilita que o diverso do fenómeno possa ser ordenado segundo determinadas relações dou o nome de forma do fenómeno. Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se podem ordenar e adquirir determinada forma não pode, por sua vez, ser sensação, segue-se que se a matéria de todos os fenómenos nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espírito, pronta a aplicar-se a ela e portanto tem que poder ser considerada independentemente de qualquer sensação.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 62, Fundação Calouste Gulbenkian).
Conforme se depreende desta citação a forma do fenómeno - por exemplo: maçã e cadeira são fenómenos - está a priori no espírito, isto é, na sensibilidade. Não está, pois no próprio fenómeno como coisa fora de nós, como sustenta Deleuze ao dizer «os fenómenos «também não são produtos da nossa actividade.». Ora, a forma é aplicada para criar o fenómeno? Sim. Quem aplica a forma? O espírito do sujeito, que se compõe de sensibilidade, entendimento e razão.
Por outro lado, a matéria do fenómeno é dada - eu diria: é forjada - a posteriori. Há assim um construtivismo kantiano: a forma a priori junta-se à matéria a posteriori para gerar o fenómeno espacial ou objecto exterior (a árvore, a nuvem, a mão, etc). E isto passa-se no interior da sensibilidade de cada um que inclui o espaço exterior ao corpo (Kant é idealista).
«...Os chamados objectos exteriores são apenas simples representações da nossa sensibilidade, cuja forma é o espaço, mas cujo verdadeiro correlato, isto é, a coisa em si, não é nem pode ser conhecida por seu intermédio; de resto, jamais se pergunta por ela na experiência.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 70, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é colocado por mim).
A matéria dos fenómemos é a sensação: eles não são senão projecções sensoriais fora do nosso corpo mas dentro do nosso espírito, essa imensa abóbada cósmica que envolve, concentricamente, o nosso corpo. Os objectos exteriores são apenas representações, conteúdos da consciência fora do corpo físico do eu perceptivo: é o mesmo que diz Berkeley, por outras palavras - ainda que Kant se procure demarcar falaciosamente daquele filósofo escocês. Os fenómenos são criações da sensibilidade e do entendimento e situam-se dentro da primeira. Deleuze afirma sobre os fenómenos que «não somos nós que os produzimos». É falso. Nós criamos os fenómenos através das formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e das categorias do entendimento. Deleuze nem sequer percebe isso.
Alguém, no mundo universitário, apontou esta errónea interpretação de Deleuze sobre a doutrina de Kant? Não. Isto significa que o universo dos catedráticos de filosofia partilha a mesma superficialidade, a mesma ausência de profundidade de pensamento sobre a ontolognosiologia de Kant. Sejam Popper, Deleuze, Habermas, Blackburn, Nagel, Sartre ou até o excepcional Heidegger, todos conceptualizam, mais ou menos confusamente, a génese e a natureza do fenómeno em Kant. Há, pois, que romper com a tradição contemporânea das interpretações esquivas e equívocas de Kant. É o que fazemos.
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