Anthony Kenny, catedrático inglês, escreveu o seguinte sobre a teoria ontognosiológica de Kant:
«Como os filósofos medievais e racionalistas antes dele, Kant estabeleceu uma distinção clara entre os sentidos e o intelecto; mas dentro do intelecto cria uma nova distinção entre o entendimento (Verstand) e a razão (Versnunft). A compreensão opera em combinação com os sentidos de modo a produzir o conhecimento humano: através dos sentidos, os objectos são-nos dados; através do entendimento, os objectos são tornados pensáveis. A experiência tem um conteúdo formado pelos sentidos, e uma estrutura determinada pelo entendimento. A razão, em contraste com o entendimento, é a tentativa do intelecto ir além daquilo que o entendimento pode alcançar. Quando divorciado da experiência, é "razão pura", e esta é o alvo da crítica de Kant.» (...)
«A estrutura transcendental é, em grande parte, dedicada ao estudo do espaço e do tempo. As sensações diz Kant, têm uma matéria (ou conteúdo) e uma forma. O espaço é a forma dos sentidos externos e o tempo é a forma dos sentidos internos.»(Anthony Kenny, Nova História da Filosofia Ocidental, volume 3, Ascensão da Filosofia Moderna, pag 117, Gradiva, Lisboa; o negrito é colocado por mim),
Quando escreve «a experiência tem um conteúdo formado pelos sentidos, e uma estrutura determinada pelo entendimento» Kenny equivoca-se parcialmente. A estrutura da experiência é determinada pela sensibilidade a priori - em particular pelas formas a priori, o espaço e o tempo - e também pelo entendimento. Kenny mostra entender que o espaço e o tempo são subjectivos e irreais, em Kant, mas não atribui essa mesma irrealidade à matéria (exemplo: a madeira da árvore, o vapor de água da nuvem, o granito da casa, etc). E aí reside o seu erro.
O que falha em sir Anthony Kenny ao expor a ontognoseologia de Kant é, sobretudo, o não compreender nem esclarecer a natureza da matéria física, dos objectos materiais. Estes estão dentro ou fora de nós? Estão corporalmente fora e mentalmente dentro - porque a mente extravasa em muito o corpo físico do sujeito (Kant perfilha um idealismo material, como o de Berkeley, embora o negue). Esta posição de Kant, que usou ambiguamente a expressão "fora de nós", não foi compreendida por Kenny, nem por Bertrand Russell , Alain Renault ou Karl Popper - nem mesmo por Heidegger. Mas Hegel compreendeu Kant.
Não me consta que haja ao menos um professor catedrático de Portugal, Espanha, França, Reino Unido, EUA que tenha discernido esta questão: os fenómenos na gnoseologia de Kant são os próprios objectos materiais, tão irreais como as ideias «objectivas» de Berkeley, não há nada material além do fenómeno, não há por exemplo, o fenómeno «casa» e o númeno «casa». Os catedráticos são mónadas, celas fechadas ao mundo externo. Conseguiram o seu lugarzinho na abóbada celeste da academia, o seu nicho de "santos" em que são venerados pelos alunos de forma mais ou menos acrítica e não vão mexer na torre das interpretações "consensuais" sobre Kant, Hegel, Heidegger e outros.
E isso põe a questão: não estarão as cátedras de filosofia nestes países vazias de grandes intelectuais, de genuínos pensadores, e preenchidas por doutorados de inteligência mediano-elevada, sem genialidade filosófica, meros repetidores de alguns clichés? Parece-me que sim.
Se há uma disciplina em que a fraude científico-intelectual é institucionalmente possível em vasta escala, é a filosofia: pequenos intelectuais, de pomposa retórica e ideias razoavelmente confusas, conseguem erguer-se às cátedras, ao título de «professor doutor», mercê de um trabalho persistente, de qualidade discutível, para não dizer mediana-medíocre, e de influências pessoais.
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