Em «Oposição/ Contradição», um artigo muito interessante sobre a dialéctica, Enrico Rambaldi desenvolveu variados equívocos. Passemos a analisar alguns.
O REALISMO DA CONTRADIÇÃO NÃO É EXCLUSIVO DA DIALÉCTICA (INTERNALISTA)
Após descartar o senso comum por rejeitar a racionalidade da existência de contradições e oposições e "não ser significativo", Rambaldi escreve:
«Entre os modos de entender a oposição e a contradição que, pelo contrário, são significativos, um é o de evidenciá-las, para negar que seja possível um juízo de verdade, ou para contradizer um discurso e sobre ele construir outro; um segundo é o de analisá-las para delimitar o campo do saber; um terceiro, realista, é o de considerá-las o motor de todo o desenvolvimento.» (Enrico Rambaldi, Oposição/Contradição, Enciclopédia Einaudi, volume 10, pag 45, Casa da Moeda).
Esta distinção está confusa: há realismo da contradição - ou seja existência autónoma desta, fora da mente humana - tanto na segunda posição como na terceira, esta última heraclitiana/ hegeliana /marxista. O realismo não pode restringir-se à doutrina que coloca a contradição como motor interno de desenvolvimento de todos os entes e processos. É realista também a doutrina que reconhece a contradição como forma externa às coisas e entre estas mas não situada na essência interna de cada coisa.
Quanto ao cepticismo, não se trata de privação absoluta: o cepticismo apenas nos priva da certeza ontológica, mas não da imagem sensorial gnoseológica. Assim, o céptico possui algo, a verdade da aparência em si mesma e a dúvida metódica sobre a meta-aparência, a essência oculta, o ser do fenómeno.
O CEPTICISMO PIRRÓNICO É SUBJECTIVISMO RADICAL NEGATIVO? E O CONJECTURALISMO DE POPPER É SUBJECTIVISMO MODERADO CONSTRUTIVO?
Rambaldi designa o cepticismo de subjectivismo radical negativo:
«Subjectivismo radical negativo»
«(...) Na sua forma mais rigorosa (pirronismo), o cepticismo não deixa qualquer possibilidade de que este ou aquele juízo possa, mesmo fortuitamente, ser verdadeiro, mas demonstra , pelo contrário, a necessidade da dúvida universal. » (Enrico Rambaldi, Oposição/Contradição, Enciclopédia Einaudi, volume 10, pag 45-46, Casa da Moeda; o negrito é colocado por mim).
Esta definição de cepticismo é parcialmente errónea: o cepticismo comporta juízos verdadeiros, para o cepticismo pirrónico o juízo «sinto calor neste dia de verão» é verdadeiro, porque se reporta a sensações, a percepções empíricas. Para os cépticos, a dúvida não é universal no sentido de extensão total, de abrangente de todo o tipo de representação e ideação. A dúvida hiperbólica desenvolvida por Descartes, essa sim, foi total, mas não coincide com o pirronismo. Descartes duvidou das percepções empíricas, do "eu", de tudo, Pirron duvidou só do lado oculto, física ou especulativamente falando.
Na verdade, o cepticismo pirrónico não é um subjectivismo radical negativo: Pirrón não negava que vissemos o céu como azul e sentíssemos como salgada a água do mar, simplesmente negava que pudéssemos saber (intelectualmente ou sensório-idealmente) o que é o sabor salgado e se a côr existe mesmo no céu ou não. É um objectivismo antimetafísico e anti-racionalista: objectivismo no seu duplo sentido, porque a doutrina é perfilhada por muitos e porque capta o objecto exterior tal como é, na sua aparência visível e palpável; anti-racionalismo porque nega à razão o poder de arquitectar certezas por si mesma, para além da evidência sensorial. E a teoria de Popper de que «as ciências são conjuntos de conjecturas, inverificáveis como teses» não é, senão, um cepticismo pirrónico.
Rodolfo Mondolfo escreveu:
«Os primeiros cépticos, PIRRÓN e TIMÓN, colocam três problemas capitais para o sábio: qual é a natureza das coisas; que atitude devemos assumir face a elas; que resultará dessa atitude. À primeira questão respondem (desenvolvendo motivos do relativismo de Heráclito e de Protágoras): só conhecemos o que sentimos; podemos afirmar que o fenómeno tal como nos aparece, por exemplo que o mel nos parece doce, mas que tal seja o seu ser em si. E por isso, a resposta à segunda questão é que devemos reconhecer e seguir os fenómenos, mas suspender o juízo sobre o que está oculto (a coisa em si); desta maneira temos no fenómeno o critério necessário para a conduta prática, sem possuir o inalcançável critério da verdade objectiva.» ( Rodolfo Mondolfo, Breve Historia del pensamento antiguo, Editorial Losada, pág 75, Buenos Aires, 1953; o negrito é posto por mim).
E Rambaldi classifica, de forma errónea, a teoria das conjunturas e refutações de Karl Popper de subjectivismo moderado construtivo:
«1.2 Subjectivismo moderado construtivo»
«Nem todas as perspectivas que excluem (ou se recusam a examinar a examinar se) os conceitos podem recapitular o mundo exterior implicam, no entanto, um tal pessimismo. Existem, pelo contrário, algumas que desenvolvem um uso heurístico positivo de contradições e oposições. Assim, Popper critica grande parte da epistemologia sua contemporânea porque ela lhes não concedia espaço adequado.» (Enrico Rambaldi, Oposição/Contradição, Enciclopédia Einaudi, volume 10, pag 46, Casa da Moeda; o negrito é colocado por mim).
Popper não é, em termos de princípio filosófico, mais construtivo do que Pirron ou Carnéades, autor do probabilismo, um cepticismo diferencial. Sucede que Popper é um céptico pragmático e, como tal, valoriza a acção, os exemplos corroborados, mas nega certeza a qualquer doutrina científica fundada na indução, excepto à matemática e à ontologia realista (o mundo material subsiste fora do meu espírito). Não há, pois, razão para esta distinção entre subjectivismo radical negativo e subjectivismo moderado construtivo, quando se põe Pirron num prato da balança e Popper no outro. Decerto, a obra de Popper é muito mais substancial do que a de Pirron mas a posição filosófica é, talvez salvo uma ou outra diferença, a mesma: cepticismo.
Nem o cepticismo pirrónico clássico nem a teoria de Popper são espécies do género subjectivismo. Subjectivismo pertence ao género "número de sujeitos que perfilham uma doutrina" e cepticismo é espécie do género «grau de certeza de uma doutrina».
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica