Kant formula de três maneiras o imperativo categórico ou imperativo universal do dever e desliza equivocamente entre as várias definições que são inconsistentes entre si. Escreve:
«O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.»(...)
«O imperativo universal do dever poderia também exprimir-se assim: Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza.» (Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, pag 59, Edições 70)
«O imperativo prático será pois o seguinte: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.» (ibid, pag 69)
Estas três formulações são inconsistentes entre si. A segunda é absolutamente democrática e igualitarista porque a lei universal da natureza não distingue ricos de pobres, negros de brancos e amarelos: a todos impõe a fome e a sede no curso de algumas horas do dia, a todos impõe o nascimento, o crescimento e a morte, e doenças diversas que não respeitam o indivíduo como um fim em si. A terceira fórmula não é democrática e igualitarista na sua aplicação, uma vez que sendo os indivíduos diferentes entre si e tendo sensibilidades que se opõem mutuamente, respeitar todos como um fim em si significa desenhar uma acção irregular, apoiando alguns mais do que outros, e em muitos casos é mesmo uma fórmula impossível de aplicar. Exemplo: se o Estado, baseado num imperativo universal de "servir o povo através de obras públicas" - aqui a primeira e a segunda fórmula do imperativo valem- expropria terrenos rurais onde há vivendas de famílias a fim de construir uma auto estrada, não trata como um fim em si essas famílias porque lhes impõe uma expropriação contra vontade destas.
Logo a terceira fórmula do imperativo, que exige desigualdade entre os indivíduos, um tratamento diferenciado, individualizado, está a ser espezinhada pelas duas fórmulas iniciais. Do mesmo modo, um pai que distribui desigualmente os seus apoios económicos aos filhos, dando, por exemplo, a um o triplo do dinheiro que dá a cada um dos outros porque o beneficiado é pobre e ganha muito menor salário do que os outros viola o princípio da imparcialidade que a primeira e. sobretudo, a segunda fórmula do imperativo categórico supõem.
Kant é pois, equívoco, sofístico, quando escreve:
«As três maneiras indicadas de apresentar o princípio da moralidade são no fundo apenas outras tantas fórmulas dessa mesma lei, cada uma das quais reúne em si, por si mesma, as outras. (...) (pag 79)
«O princípio : Age a respeito de todo o ser racional (de ti mesmo e de outrem) de tal modo que ele na tua máxima valha simultaneamente como fim em si, é assim no fundo idêntico ao princípio: Age segundo uma máxima que contenha universalmente em si a sua própria validade para todo o ser racional. » (ibid, pag 81; o negrito é de minha autoria).
Note-se o deslizar conceptual falacioso de Kant: a primeira fórmula do imperativo é, como vimos no início deste artigo, «Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.» e não como aqui (pag 81) acima se explana: «Age segundo uma máxima que contenha universalmente em si a sua própria validade para todo o ser racional. » A validade universal para mim mesmo, subjectiva e autónoma, virada «para dentro», contida na primeira fórmula, não coincide com a validade universal para cada um dos outros, heterónoma, virada «para fora», contida na terceira fórmula.
Na primeira fórmula do imperativo categórico não está contida a premissa de considerar cada pessoa como um fim em si mesma mas sim a premissa de eu, sujeito, me considerar um legislador universal: o fim é a perfeição da minha equidade racional e não cada pessoa de cada um dos outros.
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