Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2011
Confusão em Aristóteles ao separar figura de predicação e acto e potência dela

 

No riquíssimo livro, no plano filosófico, que é a "Metafísica", Aristóteles distingue as figuras da predicação do acto e da potência delas, revelando, pelo menos aparentemente, alguma falta de clareza. Escreveu o Estagirita:

 

 « Posto que "o que é" e "o que não é" se dizem, em um sentido segundo as figuras da predicação, em outro sentido segundo a potência ou o acto de estas, ou os seus contrários, e em outro sentido o que  é verdadeiro ou é falso no sentido mais fundamental, o qual tem lugar nas coisas segundo estejam unidas ou separadas, de modo que diz a verdade o que julga que o separado está separado e o que sendo unido está unido, e diz falsidade aquele cujo juízo está articulado ao contrário das coisas, (...) Desde logo, tu não és branco porque seja verdadeiro o nosso juízo de que és branco, mas, pelo contrário, porque tu és branco, dizemos algo verdadeiro ao afirmá-lo.»

 

(Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1051a 30-35, 1051 b, 1-10; in pags 389-390 da versão espanhola de "Metafísica" de Editorial Gredos, tradução de Tomás Calvo Martínez; o negrito é posto por mim).  

 

Qual é a diferença entre as figuras de predicação e a potência ou o acto de estas? Não existe diferença. Fora do acto -realidade actual- e da potência - realidade virtual futura- não há outro modo de as coisas, entre estas as figuras de predicação, serem. O acto e a potência incluem ambos a figura de predicação, esta ora está num, de certo modo, ora está noutro, não subsiste fora deles. Portanto, a formulação desta questão, por Aristóteles, no texto acima, é equivoca.

 

Um primeiro problema hermenêutico no texto acima é o de saber o que Aristóteles entende por figura de predicação (schêma tês kategorías). Se se tratasse das figuras do silogismo, teorizadas em «Analíticos Primeiros», estruturaria a resposta do modo que exponho a seguir. 

Vejamos a primeira figura de predicação, classificada, como as outras três, em função da posição do termo médio nas duas permissas do silogismo regular( sendo P o termo maior ou primeiro, M o termo médio, que está contido no primeiro, S o termo último ou menor). 

 

P-M

M-S

P-S

 

 Todos os europeus não são asiáticos.

 Alguns asiáticos são chineses de Macau.

 Alguns europeus não são chineses de Macau.

 

 

(Nesta figura de predicação, Europeu é o termo maior, Asiático o termo médio e  Chinês de Macau o termo menor)

 

Esta figura de predicação corresponde a uma realidade em acto. E a figura está em acto enquanto inferência lógica concreta, com referentes. A figura está em potência enquanto esquema abstracto P-M, M-S, P-S. 

 

No entanto, por figura de predicação pode entender-se outra coisa distinta da figura do silogismo, como se depreende das seguinte passagens da "Metafísica":

 

«Enfim, certas coisas são um numericamente, outras especificamente, outras genericamente e outras por analogia: numericamente são-no aquelas coisas cuja matéria é una, especificamente aquelas cuja definição é una, genericamente aquelas cuja figura de predicação é a mesma e, por fim, por analogia as que guardam entre si a mesma proporção que guardam entre si.» (Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1016-b, 30-35).

 

«Assim, a forma e a matéria são heterogéneas e também o são os predicados que correspondem às diversas figuras de predicação de "o que é" ( uns, com efeito, significam quê-é ; outros que é de certa qualidade e outros segundo as distinções expostas anteriormente.»

(Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1024-b, 10-15).

 

Neste caso, figura de predicação significa o género, a substância primeira ( o quê-é) e os seus acidentes, ou seja, as categorias do ente. Por exemplo, animal é o género de António Damásio (substância primeira).  

Aliás, Tomás Calvo Martínez, tradutor da Metafísica, escreveu em nota:

 

«27. A expressão "figura da predicação" (schêma tês kategoría) refere-se usual e tecnicamente às distintas categorias (géneros supremos). BONITZ (238-39) propõe que nesta ocasião se interprete no sentido mais amplo e menos técnico de "predicado", a fim de integrar na doutrina proposta a unidade genérica correspondente aos géneros intermédios. Pelo contrário, Ross (I, 304-305) propõe interpretar a expressão no seu sentido usual e técnico, o que nos daria uma referência à unidade genérica entendida como pertença à mesma categoria.» ( Aristóteles, Metafísica, pag 222, nota do tradutor, Editorial Gredos).

 

 Nesta outra interpretação de figura da predicação, como género (exemplo: animal) ou como substância primeira (exemplo: António Damásio), o argumento é o mesmo que expus acima: o género e a substância primeira, como outras figuras da predicação, não são distintos do acto e da potência de si mesmos, ou são acto ou potência. 

Portanto a frase de Aristóteles « Posto que "o que é" e "o que não é" se dizem, em um sentido segundo as figuras da predicação, em outro sentido segundo a potência ou o acto de estas, ou os seus contrários» encerra, em si, uma equívoca duplicação de entidades.

 

Aristóteles coloca, no texto citado no início deste artigo, um terceiro sentido da dicotomia «o que é/ o que não é»: o de as coisas estarem unidas na realidade - isso seria o verdadeiro - ou de estarem desunidas - isso seria o falso. Mas esse terceiro sentido não é afinal o segundo,  o acto e a potência da figura de predicação na realidade exterior ou os seus contrários? A meu ver, é.

 

A unidade não tem mais realidade que a pluralidade ou desunião. Ao dizer que "o que é" se exprime no que está unido, Aristóteles visava, talvez inconscientemente, dizer que a verdade é a unidade entre o captado ou inteligido e a realidade externa. Mas, na realidade exterior, no mundo das coisas, estar unido ou desunido possui, em ambos os casos, realidade ontológica, carácter de "o que é".

  

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 18:06
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

5 de Janeiro de 2024: a i...

Área 2º-4º do signo de Es...

15 a 18 de Novembo de 202...

13 a 16 de Novembro de 20...

Lua em Peixes em 10 de Ma...

6 a 7 de OUTUBRO DE 2023 ...

Plutão em 28º de Capricór...

11 a 13 de Setembro de 20...

Islão domina Europa e Ale...

Pão branco melhor que o i...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds