Sábado, 4 de Fevereiro de 2006
Perspectivismo e ecletismo (Crítica de Manuais Escolares-II)

Perspectivismo surge, com frequência, definido sem clareza em livros e manuais de Filosofia. Eis um exemplo, extraído de um manual de Filosofia do 11º ano em Portugal (o itálico no texto é colocado por nós):

 

«Diz-se, por vezes, que a beleza está nos olhos de quem a vê. Será que a verdade também depende da perspectiva que se adopta? Esse é um dos sentidos da expressão «plurivocidade da verdade».(...)»

«Podemos distinguir dois tipos de perspectivismo:»

«O perspectivismo fraco é a ideia de que podemos olhar para diferentes aspectos da realidade e concluir correctamente diferentes verdades

«O perspectivismo forte é a ideia de que podemos olhar para os mesmos aspectos da realidade e concluir correctamente verdades diferentes e incompatíveis

(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, Didáctica Editora, pag 222).


Não é claro este texto. O conceito de perspectivismo foi delineado por Nietzchze em "A gaia ciência" e não comporta «concluir correctamente diferentes verdades» mas apenas uma «verdade», a sua, ver o mundo não de todos os ângulos . Desse perspectivismo deriva, dialecticamente, um antiperspectivismo,  um cepticismo relativo, a que Nietzschze chama fenomenalismo, que se limita a reconhecer que o conhecimento teórico se reduz a interpretações, a probabilidades de se alojar na verdade:

Citemos Nietzschze (o negrito é colocado por nós no texto):

 

«Todos os nossos actos são bem, no fundo, supremamente pessoais, únicos, individuais, incomparáveis, certamente; mas desde que a consciência os traduz na sua língua, deixam de parecer assim...Eis o verdadeiro fenomenalismo, eis o verdadeiro perspectivismo, tal como eu o compreendo: a natureza animal faz com que o mundo de que nos podemos tornar conscientes não passe de um mundo de superfícies e signos, um mundo generalizado, vulgarizado» (Nietzsche, A gaia ciência, Guimarães Editores, Lisboa 1977, pag 251; a letra negrita é da minha lavra).

 

Apesar da sua genialidade, Nietzsche não é inteiramente claro no pensamento acima. Não distingue de forma explícita o perspectivismo - posição metaética subjectivista - do fenomenalismo - posição céptica objectivista.

 

Escreveu ainda Nietzsche:

 

«374- O nosso novo «infinito»- Até onde vai o carácter perspectivo da existência? Possui ela mesmo outro carácter? Uma existência sem explicação, sem «razão», não se torna precisamente uma «irrisão»? E, por outro lado, não é qualquer existência essencialmente «explicativa»? É isso que não podem decidir, como seria necessário, as análises mais zelosas do intelecto, as mais pacientes e minuciosas introspecções: porque o espírito do homem, no decurso destas análises, não se pode impedir de se ver conforme a sua própria perspectiva e só pode ver de acordo com ela. Só podemos ver com os nossos olhos; é uma curiosidade sem esperança de êxito procurar saber que outras espécies de intelectos e de perspectivas podem existir; se, por exemplo, há seres que sentem passar o tempo ao invés, ou ora em marcha para diante, ou ora em marcha para trás (o que modificará a direcção da vida e invertirá igualmente a concepção da causa e do efeito). Espero, contudo, que estejamos hoje longe da ridícula pretensão de decretar que o nosso cantinho é o único de onde se tem o direito de se possuir uma perspectiva. Muito pelo contrário, o mundo, para nós, voltou a tornar-se infinito, no sentido em que não lhe podemos recusar a possibilidade de se prestar a uma infinidade de interpretações.» (ibid, pag 287; a letra a negrito é posta por mim).

 

Como se detecta nestas citações, Nietzsche define perspectivismo como a filosofia que reconhece que o homem é incapaz de conceber o mundo, a «realidade», fora da sua perspectiva pessoal. Ora a consideração racional das múltiplas interpretações ou perspectivas, todas diferentes de indivíduo para indivíduo, - isto é o holismo, o anti-perspectivismo ou multi-perspectivismo- torna impossível atingir uma verdade objectiva, consensual, dado que a psique de cada um interpreta, subjectiviza o real e não consegue compreender todas as outras perspectivas.

 

Não existe perspectivismo fraco nem perspectivismo forte, ao contrário do que se sustenta no manual «A arte de pensar». Existe perspectivismo.

O perspectivismo, em regra,  tem a pretensão de atingir a verdade «em si», mas tal não acontece com o  fenomenalismo (conhecemos o lado aparente, a superfície do mundo, não a sua estrutura ou essência oculta).

 

Por isso não é pertinente a seguinte objecção ao perspectivismo:

 

«Outro problema com o perspectivismo é o seguinte: ao considerar que todas as perspectivas são igualmente verdadeiras, o perspectivismo esvazia toda e qualquer discussão racional acerca do que quer que seja. Se todas as perspectivas são verdadeiras e se todos os filósofos dizem a verdade, ainda que do seu próprio ponto de vista, de que serve discutir as suas teorias?»

(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, Didáctica Editora, pag 222; o negrito é posto por mim).

 

Ora esta não é a posição do perspectivismo, mas sim do anti perspectivismo, de um certo ecletismo (teoria segundo a qual a verdade se compõe de teses e ideias contrárias entre si que podem ser conciliadas num todo heterogéneo). O manual A arte de pensar confunde, pois, perspectivismo com anti perspectivismo, com ecletismo e com fenomenalismo.

 

Nietzchze era ele mesmo um perspectivista e, usando a razão a-teórica que preconizava, tomou posição, por instinto, a favor de uma «verdade»: a moral aristocrática contra-revolucionária, que nega a igualdade universal de direitos humanos, a democracia liberal e o socialismo e preconiza a guerra, a fruição plena da vida pela elite anti-cristã dos «bons», a expansão da vontade de poder dionisíaca de uns poucos, o lazer e a recusa do trabalho industrial e obrigatório desses «bons» nobres.

Portanto, pode ser-se perspectivista e afirmar, por pragmatismo, uma «verdade», a que mais convém ao indivíduo.

 

É ambíguo afirmar o seguinte sobre o perspectivismo "forte":

 

«Afirmar que tudo depende da perspectiva obriga-nos a aceitar acriticamente todos esses comportamentos. Assim como nos obriga a respeitar teorias como o nazismo, que considera que matar judeus é correcto. O simples facto de não estarmos dispostos a aceitar isso mostra que há algo errado com o perspectivismo forte.»
«O que se passa é que o perspectivismo forte confunde a verdade com o que acreditamos ser a verdade».

(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, Didáctica Editora, pag 222).

 

O perspectivismo - e não o suposto «perspectivismo forte» - confunde, de facto, verdade com crença na verdade. Ser perspectivista não implica  reconhecer necessariamente a multiplicidade de perspectivas filosóficas e científicas sobre o mundo e não conduz à neutralidade ou a valorar por igual todas as teorias nesta matéria: hierarquiza-se, escolhe-se sempre um ponto de vista, uma posição, ainda que se possa ou não reconhecer haver outros com certa plausibilidade.

 

f.limpo.queiroz@sapo.pt

(Direitos de Francisco Limpo de Faria Queiroz)



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 16:46
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

5 de Janeiro de 2024: a i...

Área 2º-4º do signo de Es...

15 a 18 de Novembo de 202...

13 a 16 de Novembro de 20...

Lua em Peixes em 10 de Ma...

6 a 7 de OUTUBRO DE 2023 ...

Plutão em 28º de Capricór...

11 a 13 de Setembro de 20...

Islão domina Europa e Ale...

Pão branco melhor que o i...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds