O exame nacional de Filosofia, prova escrita 714, realizado em Portugal em 3 de Julho de 2006, contém diversos erros na estrutura das perguntas que deverão, por imperativo, levar à sua impugnação.
Vejamos alguns exemplos desses erros, no que toca ao GRUPO I , (Versão 2 da prova), composto por 10 questões de resposta obrigatória, em cada uma das quais se oferecem 4 tipos de resposta (A, B, C, D), devendo o aluno indicar uma única como certa.
A VALIDADE NÃO SE REFERE SÓ AOS ARGUMENTOS MAS TAMBÉM ÀS PREMISSAS, À PROPOSIÇÃO...
Atente-se na questão 1 do GRUPO I do dito exame (Versão 2):
«1. A validade é uma propriedade...
(A) das permissas
(B) dos argumentos
(C) das conclusões
(D) das proposições .»
Crítica: Em primeiro lugar, a pergunta peca por não identificar o sentido da palavra validade: há validade em sentido formal; há validade em sentido material.
Pode responder-se (A) e está certo. Exemplo, o raciocínio: «A água ferve somente à temperatura de 60º centígrados, à pressão atmosférica normal, na Terra; a minha cafeteira ao lume tem água a 70º C, logo essa água já ferve» está inválido na primeira premissa porque, em condições normais, a água ferve a 100º c. Portanto há premissas válidas e premissas inválidas.
Mas também se pode responder (B) e ser considerado certo: é óbvio que a validade pertence aos argumentos, como pertence às permissas e às conclusões que os compõem..
E também se pode responder, correctamente, (C) pois a validade é também propriedade das conclusões. Exemplo: o raciocínio «Os homens são mortais, Diógenes é homem, logo Diógenes é mortal» tem uma conclusão válida mas o raciocínio «Os elefantes são paquidermes, Caetano Veloso não é elefante, logo Caetano Veloso não é brasileiro» não tem validade na conclusão.
Se responder (D) o aluno igualmente dá uma resposta correcta porque há proposições válidas e inválidas. Exemplo: A proposição «A parte é maior do que o todo em que se integra» é inválida mas a proposição «Dois adicionado de sete perfaz nove» é válida.
Em suma: quer responda A,B,C ou D o estudante acerta sempre. Mas assim não pensam os «filósofos» que elaboraram esta espantosa prova de exame que apenas consideram correcta a hipótese (B). À excepção de Russell, de Ayer e de alguns outros, podemos dizer que a maioria dos pensadores analíticos, formalistas, vêem a árvore e não vêem a floresta...
A CONFUSÃO ENTRE ALGUNS DIREITOS E TODOS OS DIREITOS NA QUESTÃO 3...
Vejamos outra questão de estrutura errónea, a questão 3, grupo I, na referida prova de exame (versão 2):
«3. Como é que as mulheres conquistaram os direitos que têm? Sem dúvida que foi através da luta activa, pois foi através da luta activa que conquistaram o direito de voto, foi através da luta activa que conquistaram o direito à igualdade de oportunidades no emprego, e também foi através da luta activa que conquistaram o direito de frequentar o ensino superior.»
Qual é a conclusão deste argumento?
(A) Foi através da luta activa que as mulheres conquistaram o direito de voto.
(B) Foi através da luta activa que as mulheres conquistaram o direito à igualdade.
(C) Foi através da luta activa que as mulheres conquistaram os direitos que têm.
(D) Foi através da luta activa que as mulheres conquistaram o direito de frequentar o ensino superior.»
Crítica: Ao contrário do que pretendiam os autores deste teste, há três respostas que estão certas, embora parcelares- (A), (B) e (D) - visto que a conclusão deste argumento se desdobra em três dimensões (voto, igualdade, ensino superior). E, contra o que parece, há uma resposta errada: a (C), justamente aquela que os critérios de correcção oficiais apontam como.. correcta..
Na verdade, há direitos das mulheres que não foram, presumivelmente, conquistados pela luta activa: o direito a ser mãe, por exemplo, que é um direito biológico, inerente ao organismo; o direito à sedução feminina, que é um direito psico-biológico. E outros.
Para que a resposta (C) fosse correcta era preciso que a frase fosse a seguinte: (C) Foi através da luta activa que as mulheres conquistaram alguns dos direitos que têm».
A INCAPACIDADE DE DEFINIR INDUÇÃO FORTE
Medite-se, agora, noutra questão concebida confusamente, a questão 4 do grupo I (Versão 2):.
«4. Um argumento é indutivamente forte quando...
(A) parte do particular para o geral.
(B) a verdade das premissas torna muito provável a verdade da conclusão.
(C) é impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa.
(D) parte do geral para o particular.»
Crítica: As quatro hipóteses estão erradas. Se o aluno responder (A) , isto é, que a indução, forte, consistente, é a que parte do particular para o geral erra por insuficiência na definição, por indiferenciação, porque a indução fraca também parte do particular para o geral. Exemplo de como a indução fraca generaliza, também parte do geral para o particular: «Fui a Serpa e perguntei a cinco transeuntes em quem votavam nas eleições autárquicas, 4 disseram que no PSD e 1 no PS, portanto, induzo que a maioria dos votantes em Serpa votam PSD». Ora, a maioria dos eleitores em Serpa nas autárquicas vota CDU...
Se o estudante responde (B), está igualmente errado, porque numerosas induções fortes não afirmam a probabilidade mas a certeza da verdade. Exemplo: « Sou médico, já dei 2.017 injecções de insulina a diabéticos e em todos os casos a taxa de açúcar no sangue baixou, induzo, com toda a certeza, que o mesmo sucederá com o próximo diabético...». Os autores do teste estabeleceram, confusamente, que a resposta correcta» seria esta (B)...É um erro crasso.
As respostas (C) e (D) são, obviamente, extrínsecas à noção de indução forte.
Qual seria então a possível resposta correcta sobre a indução forte, que os autores da prova não souberam construir? A resposta (A´) se fosse enunciada assim: parte de numerosos exemplos particulares, que não registaram excepção conhecida ou que têm raríssimas excepções, para uma tese ou lei geral...
EMPÍRICO CONTRAPOSTO A EXPERIMENTAL E A A POSTERIORI? A «FÉ» EM QUE A CÔR É A PRIORI ERIGIDA EM DOGMA...
Veja-se agora outra questão, a nº 8 do grupo I, (Versão 2) claramente errada na sua formulação porque supõe haver uma única resposta certa:
«8. Sabemos que as coisas verdes são coloridas. Este conhecimento é...
(A) empírico
(B) experimental.
(C) a priori
(D) a posteriori.»
Crítica: se o aluno responder (A) acertou: é pela via empírica (dos sentidos: visão, audição, tacto, etc) que o ser humano se apercebe que as coisas verdes são coloridas (tautologia..). Este é o ponto de vista da física dominante: a côr forma-se em nós dependendo da incidência dos raios de luz exteriores, objectivos, não é um a priori.
Mas se o aluno responder (B) acertou também: é pela via experimental, isto é, baseada na experiência que se descobre que as folhas das árvores são, geralmente, verdes e que são coloridas. Aliás digam-me: qual é a diferença entre o empírico e o experimental? Em certo sentido, são exactamente o mesmo.
E se o estudante responder (D) está igualmente correcto: constatar que as coisas verdes são coloridas é um conhecimento a posteriori, ou seja, gerado na experiência, depois de o ser humano nascer e apreender sensorialmente o mundo.
Em suma: respondendo (A), (B) ou (D) o aluno tem resposta correcta. Se responder (C) está também correcto, sob outra óptica filosófica - a de um certo tipo de inatismo ou apriorismo.
Mas os autores da prova pretendem que só uma resposta é correcta.. E o mais surpreendente é que sustentam que a resposta certa é a (C) : a côr é conhecida a priori, isto é, já está inata em nós antes de vermos pela primeira vez os objectos de côr verde. Pecam portanto, por unilateralismo: erigem um determinado ponto de vista gnosiológico, legítimo, em fonte única da verdade àcerca da côr, eliminando a interpretação empirista aposteriorista, absolutamente legítima, patente nas hipóteses (A), (B) e (D). A isto chama-se intolerância antifilosófica... A questão da côr não está dirimida entre os filósofos e biólogos. É ainda uma questão de «fé»...isto é, de especulação metafísica.
Mas os autores da prova querem obrigar os professores correctores a segui-los na queda ao precipício do seu míope dogmatismo.
NENHUMA PROPOSIÇÃO A POSTERIORI SE CONHECE APENAS COM RECURSO À EXPERIÊNCIA...
Examinemos agora a questão 9 do grupo I, (versão 2) também mal estruturada.
«(9) Diz-se que uma proposição é conhecida a posteriori se é conhecida ...
(A) apenas por recurso ao pensamento.
(B) por todas as pessoas.
(C) apenas pelos empiristas.
(D) apenas por recurso à experiência.»
Crítica: Nenhuma destas quatro respostas é correcta. A proposição conhecida a posteriori é a que deriva da experiência sensorial, como por exemplo: «Hoje está, aqui, um dia quente de verão, de céu azul sem nuvens».
Os autores da prova supunham que a resposta (D) é a correcta mas tal não sucede. Na verdade, uma proposição a posteriori como «Está calor aqui na praia» não se conhece apenas por recurso à experiência ( «Sinto o calor na pele, a areia da praia nos pés, vejo o mar...) mas também por recurso ao pensamento porque, como proposição, implica ideias, juízo, raciocínio que se traduzem na frase.
Uma proposição factual, a posteriori, não é apenas um ver e um sentir esta coisa, esta acção: é uma estruturação pensante - recorre também ao pensamento - desses dados empíricos.
Logo, a resposta correcta seria a (D) se esta tivesse sido formulada do seguinte modo: por recurso à experiência e ao pensamento.
HÁ VÁRIAS OBJECÇÕES, E NÃO APENAS UMA, À INDUÇÃO CIENTÍFICA....
A questão 10 do grupo I (versão 2) está concebida de forma errónea ao pretender uma única resposta certa das quatro possíveis. Vejamos.
«10. A concepção indutivista de ciência enfrenta a objecção seguinte:
(A) muitas teorias científicas têm como objecto factos inobserváveis.
(B) as teorias científicas permitem fazer previsões.
(C) a observação não intervém no desenvolvimento da ciência.
(D) todo o conhecimento científico é a priori.»
Crítica: No quadro da pergunta, há três respostas certas a esta pergunta: (A), (C) e (D). Por concepção indutivista da ciência entende-se aquela que estabelece leis ou regularidades a partir da generalização (indução amplificante) de alguns exemplos empíricos da mesma natureza. Ora os autores da prova pretendiam que só a (A) é correcta, falhando o ângulo de visão teórica correcta, porque, por exemplo, sustentar que a observação não intervém no desenvolvimento da ciência - e Popper fá-lo no que concerne à criação das ideias científicas- é uma objecção à concepção indutivista da ciência.
QUE IDEOLOGIA «FILOSÓFICA» ENFORMA OS TESTES DE EXAME?
Há mais erros nesta prova que, oportunamente, revelaremos.
Detecta-se, no tipo de perguntas, no modo de construção da prova, a preponderância dada pelos autores a um determinado manual: concretamente, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, da Didáctica Editora, de Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão. A escolha das falácias Ad Misericordiam, Apelo à Ignorância e outros pormenores revelam este manual como sua fonte. A verdade é que as orientações de exame dadas aos professores de Filosofia, há meses, não referiram explicitamente estas falácias como de estudo obrigatório para exame e assim só os alunos que estudam por um dado manual de uma dada editora saem beneficiados em relação aos outros... Enfim, camaradas, Todos somos iguais, mas uns são mais iguais do que outros, como no livro de George Orwell.
Em tudo isto, temos um exemplo de como o lobby da (sub)filosofia analítica em Portugal , cristalizado na chamada Sociedade Portuguesa de Filosofia, essa espécie de tecnocratas do pensamento, que fragmentam e reduzem o caule do pensar a definições laminadas, distorcidas, desconexas entre si, sem visão holística, domina o sector de concepção de exames no Ministério da Educação.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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