Existe um pensamento único em determinadas áreas, nos manuais de filosofia divulgados no ensino secundário, em Portugal e noutros países, em regra sob a supervisão de mestres e doutorados universitários. Uma das ideias principais desse pensamento único é a tese errónea de que «a filosofia não trata de problemas empíricos».
Eis o que afirma o manual «A arte de pensar» 11º ano, da Didáctica:
«Por um lado, dado que a filosofia não trata de problemas de carácter empírico, não há - ao contrário de ciências como a física e a biologia - provas empíricas para demonstrar que as teorias filosóficas são verdadeiras». (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão , in A Arte de Pensar, 11º ano, Didáctica Editora, Lisboa, pag 219).
Por sua vez, o manual «Criticamente» sustenta:
«Problemas como os que explicitámos (nota nossa: as modificações da distribuição da riqueza em Portugal no século XIX, o comportamento das pessoas em situações de frustração, etc) são problemas empíricos. Quando é que nos encontramos perante um problema empírico? Podemos dizer que nos encontramos perante um problema empírico quando, para o resolver, temos de recorrer a observações, informação factual, manipulação de instrumentos, etc. Os problemas das ciências experimentais, como a física ou a psicologia, são problemas empíricos; mas são igualmente empíricos os problemas de que se ocupam ciências sociais como a história ou a sociologia.»
«Os problemas da filosofia não são empíricos, mas conceptuais» (Artur Polónio, Faustino Vaz, Pedro Madeira, in Criticamente, Filosofia, 10º ano, Porto Editora, 2007, pag 13).
O erro é óbvio: então a sociologia e a história, no seu conteúdo empírico, não estão impregnadas de filosofia? Quando se noticia o facto histórico de que «em 25 de Abril de 1974, as liberdades foram instauradas em Portugal por um golpe militar e , nos 15 meses seguintes, a liberdade deu passos gigantescos com a ocupação de terras e empresas industriais por trabalhadores» não estamos a usar a noção filosófica de «liberdade» num certo sentido empírico e racional?
O manual «Percursos, Filosofia 10º ano» da Areal discorre assim:
«Mas a filosofia, tal como a ciência, parte de problemas e sobre eles coloca questões.»
«As questões filosóficas são, no entanto, distintas.»
«As questões filosóficas são mais abrangentes. (...)
«Não são questões de facto: Quem inventou a lâmpada? Quantas espécies de aves existem na Terra? Será o sistema cosmológico de Copérnico melhor que o de Ptolomeu?»
(Carlos Amorim, Catarina Pires, «Percursos, Filosofia 10º ano», Areal Editores, pag. 23).
O erro é óbvio: a esmagadora maioria das questões da filosofia são questões de facto fracturadas pela reflexão especulativa. São apreensão de factos sob a luz racional da dúvida, das hipóteses alternativas.
O manual «Filosofia 10º ano» da Plátano, menos desviado da verdade do que as teses de Desidério Murcho, Artur Polónio, Pedro Madeira e outros, assevera:
«Os problemas da filosofia não têm solução experimental, como os problemas da ciência. » (Luís Rodrigues, Filosofia 10º ano, Plátano Editora, Lisboa, 2003, pag. 16).
Há um erro parcelar neste pensamento: há problemas filosóficos que têm solução experimental e há outros que não têm. Exemplo: o problema filosófico de saber se um homem virá a amar mais a sua esposa se fizer sexo a três, com ela e com outra mulher, resolve-se experimentando.
Poderíamos multiplicar os exemplos de como os manuais de filosofia dissociam, em maior ou menor grau, a filosofia, do mundo empírico. Nenhum manual de filosofia editado em Portugal (possivelmente no Brasil, Espanha, etc, sucederá o mesmo) para o ensino secundário revela a inteligência suficiente para entender e explicitar esta tese dialéctica tão clara: a filosofia é simultaneamente empírica e meta-empírica (especulativa, metafísica), é simultaneamente ciência e não ciência.
A teoria da evolução das espécies de Darwin é, em grande parte, uma filosofia ou uma ciência biológica de forte componente filosófica. A teoria do materialismo histórico de Marx é, em grande parte, uma filosofia ou uma ciência histórico-económica de forte componente filosófica. A filosofia dirige-se a objectos empíricos: olho uma maçã e interrogo-me se o universo não terá a forma de maçã; contemplo o líquido purulento de uma vacina e interrogo-me sobre se essa porção de vírus irá imunizar ou, pelo contrário, infectar irremediavelmente o sangue e a linfa.
Não há filosofia sem mundo empírico, sem um banho do pensamento nas coisas da experiência, nos factos empíricos - no conforto de uma boa casa, na roupa andrajosa ou na fome de um mendigo, no desespero de quem perdeu um parente querido, na vivência de uma greve geral de trabalhadores desfilando nas ruas e confrontando-se com a polícia, na experiência orgástica, etc.
Filósofos consagrados como Thomas Nagel escrevem:
«A Filosofia é diferente da Ciência e da Matemática. Ao contrário da Ciência, não assenta em experimentações nem na observação mas apenas no pensamento. E, ao contrário da Matemática, não tem métodos formais de prova» (Thomas Nagel, Que Quer Dizer Tudo Isto?)
Se Nagel escreve um absurdo destes, como pode ser um filósofo de renome? Pode, numa sociedade onde a universidade, ao menos na área da filosofia, é um domínio dos eruditos medíocres e medianos - só 5% dos professores catedráticos de filosofia são geniais, a meu ver, o resto é uma corte de epígonos habilidosos na qual Nagel, Johnatan Dancy, Searle e tantos outros se inscrevem.
Há muitos manuais de filosofia editados, com fraco critério de qualidade, por editores e autores que acima de tudo procuram fazer dinheiro e ganhar fama fácil. E para isso não se importam de pisar, sem escrúpulo, a escadaria de mármore dos degraus do pensamento, quebrando alguns destes degraus com as picaretas do raciocínio falacioso!
Assim, por imperativo do lucro capitalista das editoras e da vaidade e ganância de pequenos «filósofos», autores de manuais, que correm aceleradamente para as luzes da ribalta, centenas de milhar de alunos e milhares de professores de filosofia vêem as suas mentes moldadas por um pensamento erróneo, falacioso, único, que está na moda. Este pensamento único, estribado na posse do «saber» da lógica proposicional - a «Sagrada Escritura» do século XXI , segundo a «filosofia da moda» - é veiculado pelos pseudopensadores «analíticos» mediante a retórica tonitroante, muitas vezes falaciosa, do «este é um argumento válido, aquele não é» para eliminar o autêntico pensamento filosófico, dissidente, dialéctico, holístico.
Nota: embora pareça presunção ser juíz em causa própria, direi que quase todas as grandes editoras portuguesas rejeitaram publicar o meu «Dicionário de Filosofia» com dezenas de entradas/ tópicos originais, inabituais nos dicionários de filosofia, rejeição que, a meu ver, se deve a que o dicionário se afasta da «norma» e ousa criticar filósofos consagrados...A política editorial (o editor é, em muitos casos, uma «prostituta moldável» ao dinheiro do leitor) é casuística e joga segundo uma lei de simpatias pessoais e sondagens de mercado: o que está a dar lucro não é aprofundar temas de filosofia a contracorrente, mas sim fazer «obras acessíveis ao grande público» que forneçam definições simplistas e apresentem um aspecto gráfico sedutor. E de preferência convém, para o êxito do marketing editorial, o autor pertencer a uma associação de filosofia, dar entrevistas a jornais ou à televisão e exibir a todos o título de «doutor» ou «professor doutor»...Há uma verdadeira «mafia» integrada por autores e editores na área da filosofia, em Portugal e noutros países, a impôr-se junto do público das livrarias e dos media. É tudo muito português, povo em cujo comportamento a manha e o ludíbrio ocupam um lugar essencial.
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