Terça-feira, 29 de Maio de 2007
É o emotivismo um relativismo? (Crítica de Manuais Escolares-XXII)

O conceito de emotivismo dentro da axiologia está envolto na névoa da confusão, em particular nos manuais escolares de filosofia.

Um manual de filosofia do 10º ano de escolaridade português, da Santillana-Constância, afirma o seguinte:

 

«O emotivismo

 

«Esta teoria sobre os juízos de valor é, na verdade, um aperfeiçoamento ou radicalização do relativismo. Segundo ela, os juízos de valor nem sequer são verdadeiros juízos. Eles não fazem qualquer afirmação sobre o modo a realidade é, foi ou será. São apenas expressão de sentimentos ou reacções emotivas a certos objectos ou acontecimentos.»

«Por exemplo, o juízo «a pena de morte é injusta» parece uma afirmação sobre a propriedade (negativa) do acto de condenar alguém à pena de morte. Mas, para o emotivista, é algo comparável a um grito de dor ou desgosto, ou ao choro, que exprimem directamente emoções pessoais face ao acto ou ao conceito do acto, mas não afirmam propriamente nada. E expressões de emoção não podem ser verdadeiras nem falsas, mas apenas sinceras ou fingidas

«...Por vezes, defende-se, nesta linha, que  nós projectamos valores para o mundo, não sendo eles, na verdade, nada de natural fora de nós. Seja como for, toda a discussão sobre valores é vã, porque não há nem pode haver maneira de decidir o que é a verdade em matéria de valores.»

 

(in Logos,  de António Lopes e Paulo Ruas, consultor científico: António Pedro Mesquita, Santillana-Constância, Lisboa 2007, pag 93; o negrito é da nossa autoria).

 

Que confusões há aqui?

 

Em primeiro lugar, é erróneo dizer que «as expressões de emoção não podem ser verdadeiras nem falsas». É colocar a verdade exclusivamente ao nível do juízo, da operação intelectual de ligação entre conceitos. As emoções, tal como as sensações visuais, táteis e auditivas, comportam um certo grau de verdade. A emoção faz parte da verdade da vida de cada um e das sociedades em geral, quotidianamente, a cada instante. A verdade estrutura-se não apenas ao nível do juízo, mas também do conceito, e ao nível da percepção empírica e da emoção. Se as expressões de emoção se exprimem vocabularmente por meio de juízos (exemplo: «Detesto esta paisagem de prédios urbanos, comovo-me ao ler os versos que escreves)é óbvio que recebem um valor de verdade ou de falsidade. Ora o emotivismo limita-se a explicar a génese de juízos: a emoção. Mas explicar essa génese irracional não anula a forma racional, susceptível de receber valor de verdade, desses juízos.

 

Em segundo lugar, apresenta-se o emotivismo como uma «radicalização do relativismo», o que é também erróneo. Há um emotivismo (seria melhor dizer: um descritivismo de génese emotiva..) absolutista, não relativista, expresso, por exemplo, neste juízo: «O amor entre cônjugues é um sentimento maravilhoso, desde a mais remota Antiguidade até hoje e sempre assim será».

Presumivelmente, os autores do manual entendem relativismo como cepticismo, impossibilidade de conhecimento, tal como a generalidade dos actuais "filósofos analíticos". Mas relativismo não é isso: é variabilidade de valores ou de um mesmo conceito, segundo as épocas, as classes sociais, os lugares, podendo gerar cepticismo em alguns. O relativismo não é cepticismo. É um chão do qual pode brotar cepticismo.

 

Em terceiro lugar, não é verdade que o emotivismo em geral sustente a tese de que «não pode haver maneira de decidir o que é a verdade em matéria de valores.» Isto só é verdade para o emotivismo subjectivista timbrado de cepticismo, mas não para o emotivismo objectivista (exemplo: «Os primeiros dias após 25 de Abril de 1974, data do derrube do fascismo em Portugal, foram de júbilo para a grande maioria da população, os melhores dias da nossa vida colectiva») nem para o emotivismo subjectivista dogmático (Exemplo deste último: «Na minha opinião, sofre um traumatismo maior a criança de 13 anos abusada por um pedófilo do que a criança de 4 anos abusada pelo mesmo pedófilo, portanto, é mais horrível o primeiro caso do que o segundo»).

 

Emotivismo diz respeito à matéria-prima de que são forjados os valores - as emoções (amor-paixão, ódio, caridade, etc) - mas não significa a validade temporal ou geográfico-cultural limitada dos valores, isto é, o relativismo. São géneros distintos que se intersectam. Há emotivismo relativista e há emotivismo absoluto ou absolutista.

 

O Manual «A arte de Pensar» da Didáctica reza assim:

 

«O emotivismo partilha com o subjectivismo a ideia de que não existem verdades morais independentes dos sujeitos individuais e de que os juízos morais derivam dos sentimentos que cada pessoa possui àcerca de determinado assunto. Todavia, os emotivistas vão mais longe, pois afirmam que, quando usamos a linguagem moral, estamos apenas a expressar emoções e a tentar convencer os outros a agir de uma certa maneira»

 

(Aires Almeida, António Paulo Costa, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, in A Arte de Pensar, Filosofia 10º ano, 1º volume, Didáctica Editora, Lisboa 2003, página 96; o negrito é nosso).

 

Também neste manual se interpreta erroneamente emotivismo como sujectivismo, ignorando que há um emotivismo objectivista, universalizado (exemplo: «É horrível se houver um planeta que choque com a superfície da Terra»; «Foi terrível o tsunami no Pacífico, na Ásia, em 26 de Dezembro de 2004, que matou no mínimo umas 220.000 pessoas»).

 

Aliás os autores da «Arte de Pensar», tributários de alguma filosofia norte-americana analítica, citam um autor da universidade de John Carroll em Cleveland, Harry Gensler, para definir erroneamente emotivismo:

 

«Supõe que dizes «Brrr!» quando tremes de frio. O teu «Brr!» não é literalmente verdadeiro nem falso; seria despropositado responder-lhe dizendo «Isso é verdade». Mas supõe que dizes: «Eu sinto frio». Neste caso, estás a dizer uma coisa verdadeira, uma vez que realmente sentes frio. Um juízo moral é (para o emotivista) como «Brrr!» (que expressa os teus sentimentos) e não como «Eu sinto frio» (que é uma afirmação verdadeira àcerca dos teus sentimentos).»

«Esta distinção permite-nos evitar alguns problemas que o cepticismo enfrenta. Supõe que Hitler, que gosta que se matem judeus, diz «A morte dos judeus é boa». De acordo com o subjectivismo a afirmação de Hitler é verdadeira (uma vez que significa apenas que ele gosta que se matem os judeus). Isto é bizarro. (Os emotivistas pensam) que a afirmação de Hitler é uma exclamação («Urra para a morte dos judeus!») e que por isso não é verdadeira nem falsa. Não se pode dizer que o juízo moral seja falso, mas pelo menos não temos de dizer que é verdadeiro.»  (Harry Gensler, Ethics, 1998, pag. 62, citado in «A arte de pensar, Filosofia 10º ano», volume 1, página 97).

 

A mediocridade de raciocínio de Harry Gensler, e dos seus epígonos,  é notável: classifica o emotivismo ou emocionalismo como um behaviorismo (doutrina da redução da inteligência e dos seus conceitos a respostas automáticas, psicofisiológicas, ante estímulos exteriores) axiologicamente neutro, céptico, esquecendo que há muito mais emocionalismo além dessa modalidade restrita. É de tal forma idiota a argumentação de Gensler que chega ao ponto de considerar que o behaviorismo emotivista (no caso: Urra para a morte dos judeus!) supera o subjectivismo de Hitler ( no exemplo: É bom matar judeus, vamos exterminá-los) só pelo facto de este último receber uma formulação lógica convencional e o primeiro ficar na linguagem emotiva abreviada. É o logicismo estreito de quem entende que «algo só é verdade ou mentira quando formulado como juízo, de forma lógica»...

 

Aliás, quando Gensler diz no texto acima «de acordo com o subjectivismo, a afirmação de Hitler é verdadeira» denota algum magma de confusão: a afirmação de Hitler é verdadeira.. para a subjectividade de Hitler. Há muito sujectivismo contrário ao subjectivismo nazi e anti semita de Hitler pelo que a afirmação de Gensler «de acordo com o sujectivismo, a afirmação de Hitler é verdadeira»  é errónea. Não há, uma noção unívoca de verdade, ainda que as várias noções de verdade possuam algo em comum. A incapacidade de descentrar o subjetivismo em infinitos polos (perspetivismo) é uma característica deste raciocínio de Gensler.

 

O emotivismo ou emocionalismo, formulado na época contemporânea por Stevenson e, antes dele, por  Max Scheler ( Os valores são «qualidades que se nos tornam presentes directamente no nosso "sentir intencional" (intentionales Fuhlen) do mesmo modo que as cores na visão»- Ethik, in Jarhbücher der Philosophie, 2º ano, Berlim, 1914, pag 91) é diferente desta medíocre definição que Gensler e os manuais «Arte de pensar» e «Logos» fornecem aos estudantes de filosofia.

 

O emotivismo não é senão uma das doutrinas àcerca da origem dos valores - o equivalente ao empirismo como doutrina sobre a origem do conhecimento. Contrapõe-se ao intelectualismo, facto que estes manuais que referimos e outros nem sequer se dão conta, falhos que estão de uma sistematização correcta de conceitos.

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt

 

f.limpo.queiroz@sapo.pt

 


© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 20:33
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

5 de Janeiro de 2024: a i...

Área 2º-4º do signo de Es...

15 a 18 de Novembo de 202...

13 a 16 de Novembro de 20...

Lua em Peixes em 10 de Ma...

6 a 7 de OUTUBRO DE 2023 ...

Plutão em 28º de Capricór...

11 a 13 de Setembro de 20...

Islão domina Europa e Ale...

Pão branco melhor que o i...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds