O livro «Pensar outra vez Filosofia, valor e verdade» de Desidério Murcho, edições Quasi, suscita diversas questões interessantes. Há dois méritos que reconhecemos a Desidério: o seu enciclopedismo (é ou parece culto, abrange uma gama larga de aspectos na filosofia contemporânea, estabelece sínteses, ainda que seja difícil descortinar nele originalidade) e o seu descritivismo semântico ( fornece as suas definições dos termos filosóficos usados, sem embargo de cometer abundantes erros de conceptualização e sistematização).
A propósito da relação entre realismo e anti-realismo, e deste com relativismo, escreve Desidério Murcho:
« O realismo e o anti-realismo são duas formas opostas de entender as coisas numa dada área. Uma filosofia realista declara que os aspectos fundamentais dessa área não são meras construções humanas, resultados da linguagem ou de esquemas conceptuais; são aspectos da natureza intrínseca das coisas. Uma filosofia anti-realista, pelo contrário, defende que os aspectos em causa são meras construções humanas - resultados da linguagem ou de aspectos conceptuais, e não aspectos da natureza intrínseca das coisas.» (...) «Por exemplo, em relação à ética, uma posição anti-realista defende que os princípios morais são meras construções humanas sem qualquer fundamento na natureza das coisas.»
«O anti-realismo está geralmente associado ao relativismo, se bem que as duas posições não sejam sempre coincidentes. O relativismo não é apenas a ideia de que «as coisas são relativas» - algo que o não relativista pode aceitar - mas a ideia de que as coisas são irredutivelmente relativas. Assim por exemplo, o relativismo em ética não é apenas a ideia de que em diferentes situações e condições históricas, por exemplo, os seres humanos são levados a aceitar juízos éticos diferentes.(...) O relativismo ético defende algo mais radical: a ideia de que não há só acordo racional possível em questões éticas de pormenor, como não há princípios gerais que regulem as diferenças em questão - uma cultura poderá ser racista e a outra não mas a oposição é racionalmente insolúvel».
«O relativismo não coincide exactamente com o anti-realismo; pretende ser antes uma consequência do anti-realismo: dado que, como defende o anti-realista, nada na natureza intrínseca das coisas tem qualquer relação com a nossa concepção delas, a nossa concepção delas é radicalmente relativista. Apesar desta diferença subtil, o relativismo e o anti-realismo costumam andar a par. A partir deste momento, não faremos distinção entre as duas posições». (Desidério Murcho, Pensar outra vez Filosofia, valor e verdade, Edições Quasi, V.N. Famalicão 2006, pags. 93-94; o negrito é nosso)
Este autor não demonstra por que razão o anti realismo costuma andar a par do relativismo, por que motivo os funde, de certo modo. Que quer dizer D.M. com o termo "radicalmente relativista" ? Nada mais nada menos que a expressão relativismo céptico ou relativismo adicionado de cepticismo. No exemplo acima, isto significaria a seguinte posição: «O ocidente democrático era e é anti racista, mas a África do Sul até 1990 era racista, logo, dado haver relativismo, diversidade cultural-geopolítica, não é possível determinar o valor de verdade ética mútua destas realidades».
Já em recentes artigos, neste blog, pusemos em destaque a nuvem de confusão gerada pelas interpretações do termo relativismo, que significa apenas a ideia de que as coisas são relativas ... mas não irredutivelmente relativas, como sustenta Desidério Murcho. Há um relativismo dogmático diferenciador, isto é, relativismo adicionado de dogmatismo axiológico, que não é cepticismo ,mas que Desidério não concebe neste seu livro, dado unilateralizar o sentido da palavra relativismo. Exemplo desse relativismo dogmático axiológico: «As religiões são diferentes entre si e possuem, diferentes graus de verdade na busca do divino, sendo que o budismo, vegetariano e filosófico, é muito mais evoluído do que as religiões dos astecas e maias que recorriam a sacrifícios de sangue. Logo as religiões não têm todas o mesmo valor, é possível hierarquizá-las axiologicamente, não há uma oposição racionalmente insolúvel entre elas».
Ademais, relativismo não pode identificar-se praticamente com anti realismo, ao contrário do que preconiza este autor.
Hegel, por exemplo, foi um filósofo realista, no sentido de reconhecer uma realidade objectiva exterior às mentes humanas gerada pela Ideia Absoluta, e ao mesmo tempo relativista, pois o método dialéctico é, em si mesmo, o espelho do relativismo ontológico, físico, ético, etc, da vida biocósmica e humana - as coisas são e deixam de ser, o que é verdade hoje já não o é amanhã (salvo alguns princípios absolutos). O princípio do indeterminismo de Heisenberg, segundo o qual não é possível determinar no mesmo instante a posição e a velocidade de uma partícula atómica, é uma combinação de realismo (o átomo existe fora de nós, nas coisas) com relativismo (o electrão é visto de forma variável, ora no aspecto da posição, ora no aspecto da velocidade).
A missa católica e o restante ritual é realismo na medida em que existe objectivamente fora das mentes humanas e comporta relativismo, na medida em que aceita variações temporais e espaciais- o tempo da missa em latim findou em 1969, sendo substituída pela missa em vernáculo; há missas ao som de música sacra e outras ao som de cânticos pop...
Estes três exemplos provam que relativismo se liga a realismo, o que sucede em bastantes casos, embora haja casos de compatibilidade entre relativismo e anti realismo. Mas estes últimos não são a regra geral, a tendência dominante ou mesmo única. Não se pode pois, racionalmente, ao contrário do que defende Desidério Murcho, identificar (quase) anti realismo com relativismo. Além do mais, anti-realismo é uma posição ontológica e relativismo uma posição gnosiológica, coisa imperceptível para Desidério Murcho e a corrente "analítica". Não se misturem alhos com bugalhos...
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica