Num livro lançado há 18 anos, Manuel Maria Carrilho insistiu na ideia equívoca de que "a história da filosofia não é filosofia" :
«É preciso que se entenda: uma coisa é a filosofia, outra a história da filosofia; e o facto de a filosofia não possuir objectos específicos não transforma a tradição no seu território. Para a filosofia, a história da filosofia pode funcionar como esclarecimento, informação relativamente aos seus problemas actuais; para a história da filosofia, a filosofia pode ser um elemento de reactivação e de reformulação de problemas «tradicionais». Em rigor, o estudo estritamente histórico da história da filosofia não tem, a ser possível, nada a ver com a filosofia.»
«Mas se a filosofia não é a história da filosofia, ela também não é um acréscimo, um suplemento de tipo reflexivo, das várias disciplinas ou saberes.»
(Manuel Maria Carrilho, Verdade, suspeita e argumentação, Editorial Presença, 1990, pag.89; o bold é de nossa autoria).
Carrilho perfilha diversas tese paralógicas: uma, a de que "a filosofia não é um suplemento de tipo reflexivo da arte, da biologia, da física, das teorias literárias, etc" (o que não é verdade, porque, a sê-lo, eliminaria a vertente da filosofia como epistemologia e crítica da arte e da literatura); outra, a de que "a filosofia revela senilidade, ao acantonar-se na sua história" (também não é verdade de um modo geral, na medida em que os grandes filósofos como Sartre, Heidegger, Hegel, Merleau-Ponty mergulharam na história da filosofia para dela extrair questões vivas do presente).
No artigo "A História da Filosofia no Ensino da Filosofia" , de 2 de Janeiro de 2007, neste blog, refutámos aquela tese anti dialéctica de Carrilho, sustentada por Desidério Murcho e outros, de que a história da filosofia não contém e não é filosofia. Escrevemos então aí:
«Não há contradição nenhuma entre ensinar filosofia e ensinar história da filosofia - a não ser, claro, nas mentes confusas de Desidério Murcho e do seu grupo de «iluminados». O ensino da filosofia compõe-se de duas vertentes: história da filosofia (ou história das ideias filosóficas, que é o mesmo) e heurística (arte de pensar e descobrir a verdade por si mesmo). Os professores inteligentes e competentes sabem combinar estas duas vertentes nas suas aulas (a tradição e a criação inovadora). A história da filosofia está dentro da filosofia embora não esgote a extensão desta. Não são mutuamente extrínsecas entre si.»
«Ao invés do que sugere Desidério, estudar as ideias de Platão, Guilherme de Ockam, Nicolau de Cusa, Leibniz ou Schopenhauer não impede ninguém de filosofar, de pensar pela sua própria cabeça, antes pelo contrário, estimula a verve filosófica de cada aluno. Existe o risco da memorização na avaliação? Sim, mas a memória é necessária à inteligência criativa e não é má, em si mesma. Há um risco ainda maior nos que optam por abolir a tradição filosófica: o do vacuismo anti historicista e conteudal, susceptível de produzir alunos «livres» e ignorantes, porque não solicitados aos desafios do pensamento consagrado historicamente.»
O sofisma de Desidério ( e de Carrilho) formula-se assim:
«A história da filosofia não é filosofia».
«Os professores do secundário ensinam, em regra, história da filosofia,
«Logo, os professores do secundário não ensinam filosofia».
E refuta-se deste modo:
«A história da filosofia é, em parte não filosofia (história) e em parte filosofia.»
«Os professores do secundário ensinam história da filosofia».
«Os professores do secundário ensinam filosofia, sobretudo aqueles que insistem na heurística adicionada à transmissão da filosofia tradicional».
A filosofia é sempre filosofia, não deixa de o ser pelo facto de ter sido produzida no século IV antes de Cristo ou no século XIII ou no século XX: uma parte substancial da filosofia plasmou-se, cristalizou, em história da filosofia, em textos, livros, debates registados que,felizmente, sobraram do passado. Levando ao extremo a busca da inovação e o corte com o passado como essência da filosofia, perfilhada por Manuel Maria Carrilho, dir-se-ia que o livro de Hilary Putnan Reason, Truth and History, já pertence à história da filosofia, porque foi publicado em 1981 e, portanto, não se impõe debater as suas teses petrificadas no granito de há 27 anos...
Nietzchze, um filósofo inteligentíssimo - certamente muito acima de Carrrilho e da generalidade dos doutorados em filosofia de hoje- propôs uma transmutação de valores mas não veiculou a peregrina tese de que "a história da filosofia não contém filosofia" nem advogou não estudar Platão, Epicuro, Espinoza ou Kant.
Há professores que ensinam a filosofia de Platão sem a questionar filosoficamente? Há. O defeito não se encontra nos textos de Platão mas no modo acrítico como são perspectivados. Fornecer os textos de Platão e outros a estudantes de filosofia e aos interessados em geral continua a ser uma fonte viva da filosofia.
Considere-se o seguinte texto da Metafísica de Aristóteles:
«Tampouco é possível definir Ideia alguma, já que, como dizem, a Ideia é uma realidade individual e separada. Pois a definição consta necessariamente de nomes; ora bem, o que define não inventa nomes (pois resultariam ininteligíveis) e os (nomes) que estão à disposição são comuns a todas as coisas e, portanto, se aplicam também a outras coisas» (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, Capítulo XV).
Pergunta: se o professor dá este texto aos seus alunos para estes o interpretarem e debaterem livremente, está a dar história de filosofia ou filosofia? A confusão é, seguramente, grande entre os discípulos de Desidério e Carrilho...
Pois bem, a resposta correcta é: está a dar filosofia, principalmente, e a aflorar história da Filosofia, secundariamente...
Parafraseando Heraclito de Éfeso, na sua tese «O universo gera-se em função do pensamento e não em função do tempo», direi que «O universo filosófico, a filosofia, gera-se em função do pensamento e não em função do tempo». Platão é tão actual como Derrida ou Putnam. Ao invés, Carrilho e outros diriam que «O universo filosófico gera-se em função do tempo actual e não em função do pensamento de todas as épocas».
Ao contrário do que Manuel Maria Carrilho, Desidério Murcho e muitos outros parecem supor, a memória é uma faculdade intrinsecamente filosófica. Sem memória, seria impossível conceber pensamentos como "o Ser é, não foi nem será" (Parménides) e seria inviável distinguir a essência do acidente, o modus tollens do modus ponens, etc. Ora a história da filosofia é a memória da filosofia.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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