Aristóteles, grande mestre do pensamento filosófico, distinguiu entre sorte e casualidade, ambas «causas acidentais das coisas», colocando a sorte como espécie dentro do género casualidade:
«As causas do que sucede como resultado da sorte são, pois, necessariamente indeterminadas. Daí que se pense que a sorte é algo indeterminado ou imprescrutável para o homem, mas também se pode pensar que nada sucede devido à sorte. E tudo isto que se diz está justificado, já que há boas razões para isso. Porque em certo sentido há factos que provêm da sorte, pois há-os que sucedem acidentalmente, e a sorte é uma causa acidental. Mas em sentido estrito a sorte não é causa de nada.» (...)
«A casualidade (Automatón) diferencia-se da sorte (Týchê) por ser uma noção mais ampla. Porque tudo quanto se deve à sorte deve-se também à casualidade, mas nem tudo o que se deve à casualidade se deve à sorte. A sorte e o que resulta dela só pertencem aos que podem ter boa sorte e em geral ter uma actividade na vida. Por isso, a sorte limita-se necessariamente à actividade humana. Um sinal disso está na crença de que a boa sorte é o mesmo que a felicidade, ou quase o mesmo, pois a felicidade é uma certa actividade, a saber, uma actividade bem lograda. Logo o que é incapaz de tal actividade é também incapaz de fazer algo fortuito. Por isso nada que seja feito pelas coisas inanimadas, os animais e as crianças é resultado da sorte, já que não têm capacidade de escolher; para eles não há boa ou má sorte, a menos que se fale por semelhança, como quando dizia Parménides que eram afortunadas as pedras com que se faziam os altares, enquanto que as suas companheiras eram pisadas.»
(Aristóteles, Física, Livro II, 197a b; o negrito é colocado por nós).
Assim a casualidade é o acaso, o indeterminismo entendido como inexistência de leis de causa-efeito que permitam predizer ou como espaço livre, interstício imprevisível entre as rodas dentadas (leis naturais) do determinismo cosmobiológico. Exemplo: o tsunami de 26 de Dezembro de 2004 na Indonésia, Sri Lanka e outros países asiáticos foi, aparentemente, uma casualidade, um acaso, não previsto.
E a sorte é o acaso adicionado a uma actividade planificada, intencional, dos seres humanos, isto é, uso consciente do determinismo (uma causa final ou finalidade) mais acaso, . Exemplo: não foi por mera casualidade que um apostador ganhou o primeiro prémio do euromilhões, ele teve de intuir os números do sorteio e preencher um boletim, procurou a sorte.
Vemos, pois, que Aristóteles não desligou o conceito de sorte dos de subjectividade e intencionalidade humanas. A sorte é a casualidade procurada ou evitada.
Deste modo, a sorte seria menos casual do que a casualidade pura porque a sorte é uma casualidade esperada ou desejada. A sorte é uma mistura de acaso/ casualidade com não acaso ou seja com intencionalidade, consciência do determinismo existente.
Julgo que Aristóteles aqui imerge na nuvem de alguma confusão subtil, sem embargo da excelência em geral do seu pensamento.
A queda, motivada por uma falha mecânica, de um avião de passageiros voando a grande altitude, é uma questão de casualidade ou de sorte, na óptica aristotélica?
O QUE ARISTÓTELES NÃO VIU: A SORTE COMO CAUSA ESSENCIAL
Aristóteles qualificou a sorte como «causa acidental».
«Mas posto que a casualidade e a sorte são causas de coisas que, podendo ser causadas pela inteligência e pela natureza, foram causadas acidentalmente por algo, e posto que nada acidental é anterior ao que é por si, é evidente que nenhuma causa acidental é anterior a uma causa por si. A casualidade e a sorte são, então, posteriores à inteligência e à natureza.» (Aristóteles, Física, Livro II, 198a)
De facto, Aristóteles parece não ter detectado que há dois tipos de «sorte»:
1) A casualidade, isto é, o que acontece a uma coisa ou ser raramente, esporadicamente, de certo modo imprevisivelmente.
2) A necessidade genética, biológica, psicológica, astrológica - para os que crêem na influência permanente dos planetas- , inerente ao ser humano, isto é o que lhe acontece sempre, permanentemente.
Podemos dizer, por exemplo, que Marilyn Monroe - como qualquer mulher muito bela - nasceu sob uma boa estrela no plano da beleza física e do encanto social que produz. É uma sorte inata que sempre a acompanhou enquanto adolescente e mulher jovem. Ora, neste aspecto, a sorte - ou fortuna no dizer dos romanos - não é uma causa acidental, mas uma causa essencial, permanente.
Aqui se encontra a falha do pensamento aristotélico.
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