Aristóteles distinguiu o não-ser por acidente e o não-ser por essência ou natureza:
«Afirmamos que a matéria é distinta da privação, e que uma delas, a matéria, é um não-ser por acidente, enquanto a privação é em si mesma um não ser, e também que a matéria é de alguma maneira quase uma substância, enquanto que a privação não o é em absoluto.» (Aristóteles, Física, Livro I, 192a).
A matéria-prima universal, segundo Aristóteles, é ser em potência, ou seja, ainda não é. Esta é uma das noções mais profundas da teoria aristotélica: a de uma matéria prima universal ou substrato que, uma vez que é informe, não possui textura, peso, figura, não é ar, nem terra, nem água, nem fogo, nem éter, nem coisa nenhuma determinada. É algo indeterminado, privado de forma, mas não se confunde com a privação. Areia, ferro, madeira ou água são formas adicionadas ao substrato original: a areia é a matéria prima universal (hylé) adicionada da forma «areia», o ferro é a mesma matéria prima universal (hylé) adicionada da forma «ferro», a madeira é a matéria-prima universal (hylé) adicionada da forma «madeira», a água é a matéria-prima universal (hylé) moldada pela forma «água».
Assim, uma cadeira de madeira é duplamente informada, isto é, dotada de forma: a madeira em si já é uma forma primitiva - Aristóteles chamou-lhe causa material - e o assento, espalda e pernas da cadeira são formas derivadas - constituem a causa formal ou modelo da cadeira - criadas na matéria pelo operário e pela máquina - o agente produtor, que Aristóteles designa como causa eficiente.
A matéria-prima é quase substância (ousía), diz Aristóteles. Falta-lhe a forma, embora possua o substrato.
Ao contrário, a privação é o nada absoluto. Assim postula-se a tese da seguinte tríade: forma, matéria-prima informe, privação (absoluta). A matéria prima ou não ser por acidente é um intermédio entre a forma e a privação absoluta. Não detectamos aqui o pensamento de Hegel da identidade dos contrários absolutos, segundo o qual o ser absolutamente indeterminado (ex: algo que é... não matéria, não espírito, não energia, não mundo, não antimundo, etc) e o não-ser (absolutamente indeterminado) são um e o mesmo.
CRÍTICA DE ARISTÓTELES À TRÍADE PLATÓNICA
Platão sustentou uma tríade como fonte de todas as coisas: o Uno, fonte das ideias do mundo inteligível, isto é, do ser das formas puras; o Grande e o Pequeno (isto é, a Díade) como fonte da matéria que, em sentido absoluto, é não ser. Aristóteles explana, do seguinte modo, a sua crítica à teoria da matéria de Platão exposta no Timeu:
«Eles ( nota nossa: os platónicos), ao contrário, afirmam que o Grande e o Pequeno são por igual não ser, tomados conjuntamente ou cada um por separado. A sua tríade é, então, inteiramente distinta da nossa. Certamente chegaram a ver a necessidade de que haja uma natureza subjacente, mas concebem-na como una; pois ainda que algum faça dela uma díade e a chame o Grande e o Pequeno, entendem-na como uma só e mesma coisa, já que não se aperceberam da outra natureza.
«Uma delas permanece, sendo junto com a forma uma concausa das coisas que chegam a ser, como se fosse uma mãe. A outra parte da contrariedade pode parecer, frequentemente, como inteiramente inexistente para os que só pensam no seu carácter negativo. Porque, admitindo com eles que há algo divino, bom e desejável, afirmamos que há, por um lado, algo que é o seu contrário e, por outro lado, algo que naturalmente tende para ele e o deseja de acordo com a sua própria natureza. Mas para eles seguir-se-ia que o contrário desejaria a sua própria destruição. Sem embargo, a forma não pode desejar-se a si mesma, pois nada lhe falta, nem tampouco pode desejá-la o contrário, pois os contrários são mutuamente destrutivos; o que a deseja é a matéria, como a fêmea deseja o macho e o feio ao belo, salvo se não fôr feio por si a não ser por acidente, nem fêmea por si senão por acidente.»
«Em certo sentido a matéria destrói-se e gera-se, em outro não. Porque, considerada como aquilo «no que», em si mesma se destrói (pois o que se destrói, a privação, está nela); mas considerada como potência, em si mesma não se destrói, mas necessariamente é indestrutível e inengendrável. Porque se chegasse a ser, teria que haver primeiro algo subjacente do qual, como seu constituinte, chegasse a ser; mas justamente essa é a natureza da matéria, pois chamo «matéria» ao substrato primeiro em cada coisa, aquele constitutivo interno e não acidental do qual algo chega a ser; portanto teria que ser antes de chegar a ser. E se se destruísse, chegaria finalmente a isso, de tal maneira que se teria destruído antes que fosse destruída.»
(Aristóteles, Física, Livro I, 192a; o bold é de nossa autoria)
É óbvio que importa ler cuidadosamente os textos de Platão para dissipar dúvidas sobre se a crítica aristotélica distorceu ou reproduziu exactamente o pensamento deste: segundo Aristóteles, Platão defendeu «no Timeu que a matéria e o espaço (chora) são o mesmo, pois o participável (metalêptikón) e o espaço são uma e a mesma coisa - ainda que fale de diferente maneira sobre o «participável» nos chamados Ensinamentos não escritos, identificou sem embargo o lugar e o espaço. Todos dizem que o lugar é algo, mas só ele tentou dizer que é.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 209b).
A.E.Taylor sustenta que Aristóteles deformou o pensamento platónico expresso no Timeu:
«Não há um substrato da mudança no esquema do Timeu...Aristóteles estava tão imbuído da visão de que o permanente implicado na mudança só pode ser pensado como «matéria» ou «substrato» que porventura não estava consciente de estar a falsear a teoria do Timeu ao introduzir neste a sua própria terminologia» (A.E.Taylor, A Comm. on P.´s Timaeus, pag 347., cf. páginas 401-403).
Ainda que com imperfeições, como todo o pensamento humano, a par de uma grandeza intelectual notável, Aristóteles lavrou proficuamente o pensamento na área da ontologia (doutrina do ser, que se estende da física à metafísica). Com Aristóteles, aprende-se, repensa-se, redescobrem-se ou descobrem-se novas pistas do pensamento filosófico -ao contrário do que sustentam alguns adeptos de alguma filosofia analítica enviesada, apologistas da abolição da filosofia na sua história, mentes medíocres que troçam da hermenêutica dos textos de Platão, Aristóteles, Hegel, Heidegger e outros justamente porque são incapazes de compreender na sua integridade os textos de Platão, Aristóteles, Hegel, Heidegger e outros.
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