Segunda-feira, 14 de Setembro de 2009
São Tomás de Aquino e a ambígua equiparação de Aliquid, Bonum e Verum

São Tomás de Aquino, o Doctor communis, designou por ente, pelo menos às vezes, aquilo que Aristóteles designava por o ente determinado, o quê-é, o ser isto ou aquilo. É uma ligeira deslocação de sentido que transforma um predicado universal - o que é (em grego: to ón) -  numa essência ou num sujeito-substância dotado de essência– o quê é (tò tí), ou seja um indivíduo determinado, ou cada essência existente nas coisas individuais ou um acidente (característica secundária) existente nestas. O ente (ón) em Aristóteles é predicado universal, informe, mas em São Tomás é substância-sujeito (ousía) , espécie (eidos) ou género (génos), tem forma, individual ou específica, ou consiste em um conjunto genérico de formas. Transitamos pois, sem nos apercebemos, da ontologia formal em Aristóteles para a eidologia em São Tomás.

 

 São Tomás sustentou que nada de se pode acrescentar, à maneira de natureza estranha, ao ente transgenérico e que a substância - isto é, a coisa individual, por exemplo: esta couve, aquela casa, a cidade de Atenas, o Sporting Clube de Portugal - «não acrescenta ao ente nenhuma diferença que signifique uma natureza acrescida ao ente, mas que por esse nome se exprime um modo especial de ser, a saber, o ente por si; e o mesmo sucede com os outros géneros.»  Não parece que Aristóteles sustentasse esta posição: para o filósofo grego, o quê-é - a forma, o composto - da substância, acrescenta, de facto, uma natureza ou uma diferença acidental, uma ou várias determinações (exemplo: forma esférica, metal, cobre, cor vermelha, lugar tampo da mesa, etc) a o que é, isto é, ao ente.

 

 

 Escreveu o grande pensador da Escolástica:

 

«Otra manera (de añadirse al ente) es de suerte que el modo expresado sea un modo que acompaña universalmente a todo ente. Este modo puede, a su vez, ofrecerse de dos maneras: uno, en cuanto que acompaña a todo ente en sí; otra, en cuanto que acompaña a todo ente en orden a otra cosa. Si es de la primera manera, será, o porque expresa en el ente algo afirmativamente, o porque lo expresa negativamente. Ahora bien, no hay nada dicho afirmativamente en sentido absoluto, que pueda encontrarse en todo ente, sino su esencia, por la cual se dice que es; y así, se impone el nombre res, que difiere del de ente, según Avicena en el principio de la Met., en que ente se toma del acto de ser (essendi); y el nombre de res, en cambio, expresa la quididad o esencia del ente. Por su parte, la negación que sigue a todo ente absolutamente, es la indivisión: a esta la expresa el nombre de uno; uno, en efecto, no es más que el ente indiviso. Pero, si el modo del ente presenta el segundo carácter, a saber, por orden de una cosa a otra, esto a su vez puede suceder de dos maneras. La una, en o por la división (distinción) de una cosa de otra; esto lo expresa el nombre de aliquid; aliquid, en efecto, viene a ser como aliud quid; así que, así como al ente se le dice uno en cuanto que es indiviso en sí, así se le dice aliquid (algo) en cuanto que es distinto de otros seres. La otra manera es por la conveniencia de un ente respecto de otro; lo cual no puede tener más lugar que si se trata de algo que tiene capacidad para tener convivencia con todo ente. Tal ser es el alma, que, en cierta manera, es todas las cosas, como se dice en 3 De anima (text. 37). Ahora bien, en el alma se da la potencia cognitiva y la apetitiva. La conveniencia del ente con el apetito lo expresa el nombre de bien, como se dice en el principio de la Etica: bien es lo que todos apetecen; y la conveniencia del ente con el entendimiento lo expresa el nombre de verdad

 

(Santo Tomás de Aquino, De Veritate, citado in Clemente Fernández SI «Los filósofos medievales/ Selección de textos”, volumen II, Biblioteca de Autores Cristianos, paginas 269-270; o negrito é nosso)

 

 

Encontramos, pois, neste texto, a seguinte divisão dos transcendentais ou determinações universais que se aplicam a todos ou quase todo os entes:

 

 1. No ente tomado absolutamente: a res entendida como essência (plano afirmativo); o uno ou indiviso (plano negativo).

 

 2. No ente tomado relativamente a outro: aliquid (alguma coisa, algo); o bem e a verdade, gerados, respectivamente, como a articulação entre o desejo da alma e a articulação entre o entendimento (da alma) e o ente.  

 

Não é absolutamente clara esta divisão. A verdade não é definida por São Tomás como realidade em si, res, mas como adequação do entendimento às coisas, às diferentes res. Aliquid - ser algo, alguma coisa - é um transcendental formal, mas o bem e a verdade são transcendentais informais, conteudais. Não parece que possam ser colocados ao mesmo nível. Estamos a misturar a estrutura formal - na linguagem de Heidegger: o existenciário -  com o conteúdo substancial - na linguagem de Heidegger: o factum, a facticidade.

 

 

ZUBIRI E A «DUVIDOSA TRANSCENDENTALIDADE DO ALIQUID»

 

 

Javier Zubiri sustentou, no seu estilo apurado e profundo, que há seis transcendentais e que é problemático o carácter transcendental do aliquid:

 

 «La Escolástica ha llamado a este orden «modos generales del ser», es decir, aquellos que competen a todo ente por su mera razón de ente. Y estos modos son los seis transcendentales clásicos ens, res, unum, aliquid, verum, bonum. No se trata de una simples enumeración, sino que entre estos momentos existe una interna fundamentación.La Escolástica, pues, admite innegablemente un estricto orden transcendental. El problema está en cómo entiende este orden.»  (...)

 

«La negatividad del unum no es, pues, transcendentalmente suficiente.

 

«Y lo mismo sucede con el aliquid. El aliud, la alteridad del quid, es, desde luego, algo negativo. Pero ¿sobre qué recae esta alteridad? La propia Escolástica carece de concepción precisa en este punto. Suele decirse a veces que el aliud opone el quid a la nada, es decir, que aliquid sería non-nihil. Pero ésta es una mera conceptuación logicista: la nada, precisamente porque es la nada, no es ni tan siquiera un término al que se puede oponer, o del que se puede distinguir, la realidad .Esto sería hacer de la nada "algo". Por eso, otros han pensado que el aliud es otro quid; y en tal caso la aliquidad sería la mera consecuencia del unum: la división de todo lo demás. Pero entonces no sería en rigor una propiedad transcendental del ente en sentido escolástico, porque el aliquid así entendido reposa sobre la multitud de los entes, una multitud que en manera alguna pertenece a la razón formal del ente »

 

(Xavier Zubiri, Sobre la Esencia, Alianza Editorial/ Fundación Xavier Zubiri, pag 418-421;  o bold é nosso).

 

 

Aliquid, entendido como ser algo, alguma coisa, qualquer coisa, é o ser determinado, do ponto de vista formal. Todas as coisas - cão, vaca, homem, nuvem, pássaro, montanha, etc - são aliquid (alguma coisa)  e portanto parece fundamentado o carácter transcendental do aliquid, ao invés da opinião de Zubiri.

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt

 

f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 04:58
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

5 de Janeiro de 2024: a i...

Área 2º-4º do signo de Es...

15 a 18 de Novembo de 202...

13 a 16 de Novembro de 20...

Lua em Peixes em 10 de Ma...

6 a 7 de OUTUBRO DE 2023 ...

Plutão em 28º de Capricór...

11 a 13 de Setembro de 20...

Islão domina Europa e Ale...

Pão branco melhor que o i...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds