O diálogo de Platão «Parménides ou Das Ideias» é um modelo na arte da sofística ou falsificação da investigação filosófica autêntica. Todos os parafilósofos e pseudofilósofos que cavalgam hoje cátedras universitárias, redacções de revistas e sociedades de filosofia, gabinetes editoriais, são, como é óbvio, sofistas do século XXI e alguns, em especial os que se acoitam sob a tenda da "filosofia da linguagem" e das "lógicas", rever-se-ão nesta personagem Parménides deste diálogo que utiliza o mesmo termo com sentidos distintos. No excerto seguinte, Platão fabricou conscientemente uma argumentação muito hábil em torno dos conceitos do "mesmo" e do "outro", visando provar que este último nunca pode residir no «mesmo».
«PARMÉNIDES
Portanto, o uno é diferente das outras coisas.
ARISTÓTELES
Exacto.
PARMÉNIDES
Diz-me agora, se «o mesmo»e «o outro» não serão contrários.
ARISTÓTELES
São, sem dúvida.
PARMÉNIDES
E será possível que «o mesmo» resida no «outro» e o «outro» no «mesmo»?
ARISTÓTELES
Não, não é possível.
PARMÉNIDES
Pois se o «outro» não pode nunca residir no «mesmo», não há nenhum ser em que o «outro» exista durante algum tempo. Com efeito, se estivesse nele durante algum tempo, o »utro, durante esse tempo, estaria no «mesmo». Não te parece?
ARISTÓTELES
Sim.
PARMÉNIDES
Desde que o «outro» não se encontra nunca no «mesmo», também nunca se encontrará em nenhum ser.
ARISTÓTELES
É certo.
PARMÉNIDES
O «outro», portanto, não existirá nem no que não é uno, nem no que o é.
ARISTÓTELES
Certamente que não.
PARMÉNIDES
Portanto, não será, pelo «outro» que o uno difere do que não é uno, e o que não é uno difere do uno.
ARISTÓTELES
Não.
PARMÉNIDES
Também não será, por si mesmos, que o uno e o que não é uno são reciprocamente diferentes, se nenhum deles participa do diferente.»
(Platão, Parménides ou Das Ideias, pag 74-75; nas frases o negrito é de nossa autoria ).
O principal truque sofístico desta peça retórica reside no duplo sentido da palavra mesmo: por um lado, representa substância, algo idêntico a si, propriedade inerente a todas as coisas, inclusive às outras coisas; por outro lado, é categoria de relação, o pólo do «isto»/«mesmo» que se opõe ao pólo do «outro»/«aquilo». Nesta segunda acepção, o outro é contrário exclusivo de o mesmo, e de facto não podem coexistir, mas na primeira acepção não, ou seja, podem coexistir.
O «mesmo» e o «outro» não são contrários excludentes (que se repelem como água e fogo) quando se tratam de substância e acidente desta. Assim uma árvore é um mesmo em relação a si e um outro em relação a um cão e um cão é outro em relação à árvore mas um mesmo em relação a si. Logo o ´«outro» pode coexistir com o «mesmo» no mesmo ente- coexistência dialéctica, respeitando o princípio da não contradição.
Ao dizer «O outro», portanto, não existirá nem no que não é uno, nem no que o é» a personagem Parménides comete um erro profundo. O «outro» é uma noção relacional e qualifica algo que é uno ou que não é uno.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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