Na sua crítica a Kant, muito bem explanada em «Ética, Novo Ensaio de Fundamentação de um Personalismo Ético», Scheler faz ressaltar que Kant não distingue entre a intuição e o querer moral:
«A conexão de essências diz tão só que de todo o mal deve ser culpada, em geral, alguma pessoa autónoma; mas não é forçoso que seja aquela pessoa individual a cuja acção vai ligado o mal. A forma de transmissão, heterónoma para o indivíduo, do valor de um acto pessoal anterior e autónomo, fica excluída de antemão unicamente no giro subjectivista que Kant deu ao seu conceito de autonomia, segundo o qual a intuição e o querer moral não se distinguem, e o sentido das palavras bom e mau fica reduzido a uma lei normativa que a pessoa racional dá a si mesma ("autolegislação").» (Max Scheler, Ética, Caparrós Editores, Pág. 644).
Para Scheler há uma conexão de essências objectiva - por exemplo: é um mal matar alguém à traição, em geral, e é um bem salvar alguém de morrer afogado, em geral - que é prévia ao acto de querer e que se dá na intuição sentimental de valor. O subjectivismo de Kant consiste em não estabelecer essências objectivas de bem e de mal, de acto bom e de acto mau, mas em fazer derivar bem e mal do tipo de querer que há em cada indivíduo: se é um querer «idealista» , «racional», universalizante no propósito, desligado de egoísmos pessoais, gera um acto bom (assim, por exemplo, o militante da ETA que assassinasse um político espanholista realizaria o bem por agir segundo um "querer transpessoal", por uma causa; Kant recusava legitimar o assassínio mas está implícito na sua ética como uma possibilidade aceitável); se é um querer "egoísta", "materialista", "interessado", visando satisfazer o agente da acção, gera um acto mau (assim, dar um jantar de caridade gratuito a pessoas carenciadas para ser elogiado na televisão é um acto mau, ainda que mate a fome a centenas de pessoas).
Há, pois, em Kant, uma confusão entre o querer e o conteúdo ideal de valor no indivíduo. O valor deveria preceder ontologicamente o querer e resistir a este mas assim não é teorizado por Kant que subordina o valor à forma do querer e não a essências "materiais" a priori.
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