Domingo, 29 de Maio de 2011
É legítimo induzir que Júpiter em 0º de Touro causará úma vitória do PS nas legislativas de 5 de Junho de 2011?

É legítimo induzir resultados político-eleitorais a partir de posições planetárias no céu, na faixa circular de 12 signos chamada Zodíaco?

Digo que é. O vulgar professor ou estudante de filosofia responde, mecanicamente: «A astrologia não é ciência. É uma supertição. Basta ler o que Carl Sagan e Karl Popper dizem sobre a astrologia.» 

 

Contra a estupidez cristalizada nas mentes que deveriam ser filosóficas, mas estão embotadas pelo preconceito, pouco ou nada há a fazer... Querem ser livres ou julgam ser livres e rejeitam, à partida, estudar a hipótese de sermos simples marionetas dos movimentos planetários, hipótese absolutamente racional, que já os filósofos estóicos da Antiguidade encaravam.

 

Em 4 de Junho de 2011, Júpiter transitará de 29º do signo de Carneiro - espaço do céu de 0º a 30º da eclíptica - para 0º do signo de Touro - espaço do céu de 30º a 60º da eclíptica. Assim, em 5 de Junho de 2011, Júpiter estará em 0º do signo de Touro , o que me levaria, por indução, a prognosticar a vitória do PS de Sócrates nas eleições legislativas.

 

 

Esta indução assenta em dois únicos exemplos:

 

1) Em 25 de Abril de 1976, com Júpiter em 6º-7º do signo de Touro, o PS de Mário Soares vence, sem maioria absoluta, as eleições legislativas em Portugal, e o CDS ascende a terceiro partido.

 

2) Em 10 de Outubro de 1999, com Júpiter em 1º do signo de Touro, o PS de António Guterres vence, elegendo 115 de um total de 230 deputados, as eleições legislativas em Portugal.

 

É legítimo fazer esta indução? Creio que sim, apesar de que a amostra é muito escassa e falível. Júpiter só um em cada doze anos atravessa o signo de Touro. Posso falhar ? Sim, atendendo a que há diversos ciclos planetários cujas influências se contrapõem ou se conjugam. No entanto, tenho um paradigma científico - o da Astrologia Histórico-Social, baseada em factos históricos - diferente do paradigma dos astrólogos, comerciais ou não, que constituem 99% dos que se debruçam sobre a influência planetária na vida humana.

 


 

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Sábado, 28 de Maio de 2011
Crítica a Sellars e a James Pratt: só o realismo crítico admite a ilusão e o erro?

Por "realismo crítico" entendeu-se, nos EUA, uma corrente que sustenta que as nossas percepções empíricas e o nosso intelecto não apreendem cada um dos objectos físicos do mundo real exterior no seu todo, mas deixam de fora alguns aspectos, desconhecidos ou incognoscíveis. As definições de "realismos crítico, natural e ingénuo" dada por "realistas críticos" como Roy Wood Sellars são pouco claras, padecem de confusões:

 

«O realismo ingénuo tem a pretensão impossível de intuir o objecto; impossível, porque suporia um salto sobre as barreiras do espaço e do tempo, contrário à natureza. O realismo crítico, pelo contrário, contenta-se com admitir o facto da mediação causal, ainda que proclamando que o objecto afirmado e proposto se conhece mediante o conteúdo que se oferece à pessoa que conhece.» (...)

«A posição a que chegamos é realista, e tão próxima ao realismo natural quanto o permitem as condições do conhecimento. Coisas materiais são o objecto do conhecimento, se bem que só podem conhecer-se em função dos dados que determinam dentro de nós. O postulado do conhecimento é o valor cognoscitivo e e revelador da ideia tomada como conteúdo ou conjunto de características, não como um ser com existência mental. Por outras palavras, o conteúdo que apreendemos deve ter a propriedade de reproduzir algo do objecto, e de transmitir com os seus próprios meios a forma do mesmo.»( Roy Wood Sellars, citado in Paul Kurtz, Filosofía norteamericana en el siglo veinte, páginas 344, Fondo de Cultura Económica, México, 1972; o negrito é colocado por mim).

 

Nesta definição de Sellars, há confusão, porque o realismo ingénuo não funde a consciência e o objecto real exterior, não confunde representação com objecto referente, exterior. Ao falar em ideia como "ser com existência mental" Sellars visa o realismo ingénuo, mas nem se percebe claramente o que esta expressão quer dizer. E ao falar em realismo natural parece designar a realidade exterior em si mesma e não um dos modos de apreensão desta como vários teóricos da gnoseologia o fazem. Não faz sentido a classificação de Sellars porque usa o termo realismo de forma ambivalente: o realismo natural seria a realidade em si mesma, o realismo crítico a apreensão crítica, algo céptica, dessa realidade, e o realismo ingénuo a apreensão dogmático-infantil dessa realidade.

 

Outro filósofo norte-americano da escola do "realismo crítico", James Bissett Pratt (22 de Junho de 1875, Elvira, Nova Iorque; 15 de Janeiro de 1944) escreveu:

 

«Os elementos agnósticos (se assim se quiser chamar-lhes) que o realismo crítico efectivamente inclui seriam em minha opinião mais um mérito do que um inconveniente. O realismo crítico vangloria-se, como São Paulo, das suas debilidades posto que, graças a elas, é capaz de dar melhor conta da verdade. Pois o que tanto o idealismo como o pragmatismo e o neorrealismo sejam insustentáveis é precisamente o facto de que nenhum deles pode acolher a ilusão ou o erro. Estruturaram-se com vista a "evitar o agnosticismo"  e o resultado foi que, por ser um mundo ideal de deuses e anjos que nunca se equivocam, não podem aplicar-se minimamente a seres tão falíveis como nós.»

«Ao contrário, o realismo crítico acolhe de forma adequada o erro e a ilusão...»(James Bissett Pratt , citado in Paul Kurtz, Filosofía norteamericana en el siglo veinte, páginas 341-342, Fondo de Cultura Económica, México, 1972; a letra a negrito é da minha autoria).

 

Não se percebe por que razão Pratt garante que o pragmatismo não tem lugar para a ilusão e o erro. Afinal o pragmatismo admite que há uma realidade metafísica incognoscível, só que não se ocupa dela mas da acção prática. É falso que o idealismo não acolha a dúvida. Existe um idealismo crítico, de que o de Kant é o paradigma, que admite que as cores, sabores, cheiros, etc, não existem nos fenómenos materiais mas apenas no nosso modo de os percepcionar. E existe um idealismo natural.

 

  

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Sexta-feira, 27 de Maio de 2011
Confusões de Charles Strong sobre realismo ingénuo, representacionismo e outros

Charles.Augustus Strong, (Haverhill, 28 de Novembro de 1862- Fiesole, 23 de Janeiro de 1940) um dos filósofos do "realismo crítico"  norte-americano, escreveu sobre o dado da percepção sensorial e as correntes gnosiológicas que o interpretam:

 

«O ponto chave no problema da percepção sensorial refere-se à natureza do dado. Com o termo "dado" designo aquilo de que somos imediatamente conscientes. No transcurso da filosofia moderna sucederam-se seis pontos de vista diferentes sobre este tema. I) O dado é a coisa real; 2) é uma representação ideal do objecto real; 3) é uma coisa ideal de natureza psicológica; 4) é um objecto ideal de natureza lógica; 5) é algo de natureza psicológica mas real; 6) é uma coisa de natureza lógica, mas real; tais são as posturas do realismo ingénuo, do representacionismo, do subjectivismo psicológico, do subjectivismo lógico, do objectivismo psicológico e do objectivismo lógico. A posição que tratarei neste artigo, diferente de todas estas, é que 7) o dado é a essência lógica da coisa real.» (C.A. Strong citado in Paul Kurtz, Filosofía norteamericana en el siglo veinte, páginas 346-347, Fondo de Cultura Económica, México).

 

 

 

Não há clareza autêntica nesta classificação. Em primeiro lugar, o realismo ingénuo não confunde o dado perceptivo com o referente - isso só sucede durante os sonhos ou em estado de alucinação. O realismo ingénuo concebe o mundo como alteridade e a percepção como espelho do mundo, sem questionar esta.

Há outras confusões: o que distingue a posição 2, baptizada de representacionismo, da posição 1, realismo ingénuo, se este é um representacionismo natural? Também não é clara a definição de de subjectivismo psicológico, em que o dado seria uma "coisa ideal" psicológica e de "subjectivismo lógico" em que o dado seria um objecto ideal lógico. Strong não dá exemplo, flutua na nuvem cinzenta da imprecisão.

 

O subjectivismo psicológico e lógico podem ser representacionistas ou não - Strong não se apercebe disto, não vê como se articulam verticalmente géneros e espécies, não possui um raciocínio dialéctico, como a maioria dos catedráticos de filosofia em todo o planeta não possui também - e a prova é que esta classificação de Strong atravessou impune as décadas sem ser posta em causa pelos seus colegas e pelos universitários em geral. Representacionismo e não representacionismo são espécies do género captação da estrutura do referente ao passo que subjectivismo e objectivismo são espécies do género sociológico. Espécies de géneros distintos não podem ser postas no mesmo plano como Strong procede.

 

E o que distingue a posição 6 da posição 1 e da posição 7, esta última preferida por Charles Strong? Não é claro.

 

 

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Domingo, 22 de Maio de 2011
Questionar Goodman e Carmo d´ Orey: é convencional a oposição entre realismo e idealismo?

No excelente prefácio a «Modos de fazer mundos»  do filósofo construtivista norte-americano Nelson Goodman, Carmo d´Orey, catedrático da Universidade de Lisboa, escreve:

 
«O mundo é feito por nós, afirma Goodman. Ou, mais precisamente, o nosso conhecimento consiste na construção de "versões-de-mundos". Goodman gosta de escrever assim para sublinhar que as nossas construções não são diferentes interpretações ou explicações de um mesmo único mundo pré-existente e independente delas, mas sim que construções e mundo são uma e a mesma coisa. Podemos por isso, dizer indiferentemente que fazemos mundos ou que fazemos versões, quando usadas separadamente, estas noções são quase sempre insubstituíveis.» (Carmo d´Orey in prefácio de Nelson Goodman, Modos de fazer mundos, pag 5, Edições Asa, 1995; o negrito é posto por mim).
 
«Uma vez que o mundo é construído é construído através de sistemas de símbolos, torna-se difícil inserir o ponto de vista de Goodman em qualquer esquema que pressuponha a distinção sujeito/objecto, portanto, no realismo ou no idealismo. O que consideramos mundo e o que consideramos discurso sobre o mundo depende das nossas convenções. Em rigor, não é possível traçar qualquer linha divisória entre os dois. Na prática, traçamo-la onde queremos e mudamo-la sempre que queremos. Num dos extremos temos o realismo, no outro o idealismo.» (Carmo d´ Orey, ibid, pag. 8; a letra negrito é de minha autoria).
 
Não é verdade que a diferença entre realismo e idealismo seja puramente convencional. Isso é o mesmo que dizer que é convencional a diferença entre o preto e o branco, entre a noite e o dia. Convencionais são os nomes, não as realidades ontológicas. Os nomes são interpretações, as realidades ontológicas, ideais ou materiais, são factos, que podem ser assumidos ou ignorados.
 
O que contesto é a frase: «em rigor, não é possível traçar qualquer linha divisória entre os dois.» É uma frase ambígua: incorrecta, do ponto de vista filosófico, metafísico; correcta, do ponto de vista do comportamento quotidiano prático, porque os idealistas evitam os choques eléctricos, as colisões de veículos e as quedas de janelas ou varandas do mesmo modo que os realistas.
 
 
NÃO HÁ DIFERENÇA ENTRE CONVENÇÕES E FACTOS?
 
Escreve ainda Carmo d´Orey explanando a tese de Goodman:
 
«Não há então qualquer diferença entre convenções e factos? Em absoluto, não. Dentro de cada versão sim e é muito importante. Adoptar um sistema consiste em adoptar uma convenção que fixa a referência dos seus seus termos. Essa convenção pode ser produto de habituação ou de estipulação. Mas, uma vez adoptado o sistema, o que uma coisa é torna-se uma questão de facto no âmbito desse sistema.»
«Para demarcar a sua posição quer do realismo quer do idealismo, Goodman denomina-a "irrealismo". Mas a denominação de "realismo interno", com o sentido que tem em Putnam, é também adequada.» (Carmo d´Orey in  prefácio de "Modos de fazer mundos", pag 8, Edições Asa; a letra a negrito é posta por mim).
 
Discordo da tese de Goodman de que não há, em absoluto, qualquer diferença entre factos e convenções, ou seja, de que tudo é convencional. Não é assim. As percepções empíricas - por exemplo, de árvores, de Grande Canyon nos EUA, de promontório de Sagres - não são convenções, são factos comuns a todos os observadores e encontram-se, ontologicamente, antes da convenção, isto é do acordo entre pessoas e comunidades para nomear ou interpretar algo. Convencional é chamar "promontório de Sagres" àquela massa rochosa altaneira com um forte no alto que confina com o mar no extremo sul ocidental de Portugal, mas a massa rochosa não é uma convenção - apenas o nome o é. Há pois um núcleo vastíssimo de factos não convencionais comuns a todos os mundos possíveis ou versões de mundos que, por isso mesmo, não ficam hermeticamente fechados e incomunicáveis entre si. O incêndio do Chiado, de 25 de Agosto de 1988, foi um facto que pode ser interpretado segundo as várias convenções ou leituras epistémico-ideológicas.
 
Por outro lado, se Goodman denomina a sua posição de "irrealismo" para a demarcar do realismo e do idealismo, comete um erro na taxonomia uma vez que o idealismo já é uma forma de irrealismo, sendo outra a fenomenologia.
 
 
O ANTI INTELECTUALISMO OPÕE A ARTE À CIÊNCIA?
 
Expondo a teoria de Goodman sobre a arte, escreve Carmo d´Orey:
 
«Admitida a nova epistemologia, a concepção anti-intelectualista, que opõe a arte à ciência, torna-se insustentável. Dicotomias vagas e obscuras, mas profundamente enraizadas, são superadas: não mais de um lado a beleza, a intuição e a emoção, e do outro, a verdade, a racionalidade e o saber. Porque nenhuma destas propriedades é privilégio da arte nem da ciência e todas são insuficientes para distinguir
uma da outra.» (Carmo d´Orey, ibid, pag 17).
 
A concepção anti-intelectualista opõe a arte a ciência? E por que não será a concepção intelectualista aquela que opõe a ciência à arte, dizendo que a arte é basicamente, sensação e percepção empírica e que a ciência é intelecto, raciocínio? Não se entende, com exactidão, o que Carmo d´Orey - que eventualmente estará correcto no seu raciocínio - pretende dizer com a "concepção anti intelectualista".
 
O CONHECER NÃO ASPIRA À CRENÇA?
 
Goodman é defensor de um pluralismo eclético - entendendo por ecletismo a doutrina que reune teorias diferentes e mesmo opostas entre si no seio do imenso oceano da verdade, feito de muitos mundos possíveis. Assim a teoria evolucionista de Darwin que faz derivar o homem de um antropóide situado geneticamente entre o gorila e o homem é, em princípio, tão aceitável como a teoria fixista criacionista de que Deus criou o homem e outros animais no sexto dia da Criação e estas espécies assim se mantiveram até hoje:
 
«O que tenho estado a dizer tem relação com a natureza do conhecimento. Nestes termos, conhecer não pode ser exclusivamente ou mesmo primeiramente uma questão de determinar o que é verdadeiro. A descoberta equivale frequentemente, como quando eu coloco uma peça num puzzle, não a chegar a uma proposição para declarar ou defender, mas a encontrar uma adequação. Muito do conhecimento aspira a algo que não à crença verdadeira nem a qualquer crença. (...)
«Mais ainda, se os mundos são tanto feitos quanto descobertos, assim também o conhecimento é tanto refazer como relatar. Todos os processos de feitura do mundo que discuti entram no conhecer. Perceber o movimento, vimo-lo, consiste frequentemente em produzi-lo. Descobrir leis envolve delineá-las. Reconhecer padrões é em em grande medida uma questão de os inventar e impor. A compreensão e a criação andam juntas.» (Nelson Goodman, Modos de fazer mundos, pag 60, Edições Asa; o negrito é colocado por mim)
 
Discordo de Goodman: todo o conhecer é um pôr da verdade, seja a verdade aparente ou interna, subjectiva ou objectiva - porque há uma verdade das aparências, como admitiam os cépticos pirrónicos - seja a verdade real e externa, hiperobjectiva. Todo o conhecimento aspira à crença - senão, aspira a quê? Goodman dá ao termo verdade um sentido unilateral: realidade externa, objectiva. Afirma que o conhecimento é compreensão, não captação da verdade. Mas a compreensão é sempre a captação de uma verdade imaginária, uma verdade que reside no reino da imaginação e tem bases no mundo da percepção empírica

 

 

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Quarta-feira, 18 de Maio de 2011
Questionar Kierkegaard: é o nada o objecto da angústia?

Soren Kierkgaard (1813-1855), o grande filósofo dinamarquês fundador do existencialismo contemporâneo, escreveu sobre o conceito de angústia, central na sua doutrina:

 

«Em um sistema lógico é demasiado fácil dizer que a possibilidade passa a ser a realidade. Ao contrário, na própria realidade já não é tão fácil e necessitamos de lançar mão de uma categoria intermédia. Essa categoria é a angústia, a qual está tão longe de explicar o salto qualitativo como de justificá-lo eticamente. A angústia não é uma categoria da necessidade, mas tão pouco o é da liberdade. A angústia é uma liberdade travada, em que a liberdade não é livre em si mesma, mas que está travada, ainda que não travada pela necessidade, mas por si mesma. Não haveria nenhuma angústia se o pecado tivesse vindo ao mundo por necessidade- o que é uma contradição. Nem tão pouco a haveria se o pecado tivesse entrado no mundo mediante um acto de liberum arbitrium abstracto - o qual nunca existiu no mundo, nem ao princípio nem depois, posto que não é mais que um absurdo da mente». (Soren Kierkegaard, El concepto de angustia, Alianza Editorial, pag 99; o negrito nalgumas frases é colocado por mim).

 

É muito interessante a definição da angústia como «liberdade travada». Isso significa que a angústia é uma síntese, um intermediário, entre a liberdade e a necessidade que obriga, trava, como lei da natureza ou destino marcado. Contudo a travagem da liberdade que constitui a angústia não é uma fatalidade, não deriva da necessidade. Restam duas hipóteses: ou a angústia deriva de um livre-arbítrio concreto, singular, em cada indivíduo, em cada momento, ou nasce acidentalmente, sem ser por decisão livre, fruto da pressão do meio físico e social sobre o ego individual.

Note-se que, segundo Kierkegaard, o pecado não entrou no mundo por necessidade - a constituição biológica, sexual, do ser humano não o inclina obrigatoriamente ao pecado - mas também não entrou por . um acto abstracto de livre-arbítrio. Restam a hipótese que entrou no mundo por acidente, por acaso, ou por um acto de livre-arbítrio singular em Adão e em cada um dos posteriores indivíduos.

 

Escreve ainda Kierkegaard:

«A angústia pode comparar-se muito bem com a vertigem. A quem se põe a mirar de olhos fixos uma profundidade abismal acontecem vertigens. A causa está tanto nos seus olhos como no abismo. Se ele não tivesse olhado para baixo! Assim a angústia é a vertigem da liberdade: uma vertigem que surge quando, ao querer o espírito pôr a síntese, a liberdade lança a vista até baixo pelos roteiros da possibilidade, agarrando-se então à finitude para segurar-se. Nesta vertigem a liberdade cai desmaiada. A Psicologia já não pode ir mais longe, nem tampouco o quer. Nesse momento tudo mudou e quando a liberdade se incorpora de novo, vê que é culpada. Entre estes dois momentos há que situar o salto, que nenhuma ciência explicou nem pode explicar. A culpabilidade do que se faz culpado no meio da angústia  é ambígua até não mais poder. A angústia é uma impotência feminina na qual se desvanece a liberdade. A queda, falando em termos psicológicos, acontece sempre no meio de uma grande impotência. E ademais, a angústia é uma das coisas que maior egotismo encerra. Neste sentido nenhuma manifestação concreta de liberdade é tão egotista como a possibilidade de qualquer concreção. Esta é, uma vez mais, a opressão que traz consigo o comportamento ambíguo do indivíduo, a sua situação de simpatia e antipatia simultâneas. Na angústia reside a infinitude egotista da possibilidade, a qual não tenta uma pessoa como uma escolha que haja de fazer, mas que o angustia seduzindo com a sua doce ansiedade.»

 

«No indivíduo posterior a Adão, a angústia é mais reflexa. Isto pode exprimir-se de outro modo, dizendo que o nada - que é o objecto da angústia - parece que se torna más e mais um algo. Não dizemos que de facto se torne algo, ou que realmente signifique algo; nem tão pouco dizemos que o lugar do nada o tenha vindo a ocupar o pecado ou qualquer outra coisa. »

 (Soren Kierkgaard, El concepto de la angustia, pag 118-119, Alianza Editorial, Madrid, 2008; a letra a negrito é colocada por mim).

 

A angústia seria como um dado originário, uma "impotência feminina", uma pulsão que seduz o indivíduo a não ousar ser livre. A angústia como vertigem da liberdade compreende-se bem com o exemplo do homem à beira do precipício: a liberdade absoluta seria o homem poder lançar-se no precipício e aterrar suavemente, ileso; mas como esse facto é praticamente impossível surge a angústia, que trava o homem no seu desejo de liberdade infinita, que seria desastrosa no plano físico, pois levaria, por acto imprudente contra as leis biológicas, à morte ou a um estado de lesões irremediáveis.

 

Parece-me que a angústia é, ontologicamente, um fenómeno psíquico derivado do confronto entre as limitações do ego individual - a força física exígua face aos outros como um todo, a dificuldade em fazer-se ouvir e respeitar, etc- e o desejo de liberdade, expansivo, de tudo experimentar e dominar.

Por que se angustia o homem ao abordar sexualmente certas mulheres? Porque sabe poder ser rejeitado por elas. Por que se angustia o homem com a sua situação laboral? Porque sabe que se perder o emprego ficará sem dinheiro para se alimentar, pagar a renda de casa, sustentar os filhos, etc. O objecto da angústia não é o nada mas a possibilidade de redução ao nada da plenitude do ser e do viver. - o que não é exactamente a mesma coisa. O verdadeiro objecto da angústia é o ser, a preservação da vida e da integridade de cada indivíduo. A angústia é um mecanismo de defesa individual: instala um escudo de preocupação no indivíduo, antes de mais preocupação com a iminência da morte por agressão, doença, velhice, falta de bens materiais, etc.

 

 

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Domingo, 15 de Maio de 2011
Roy Wood Sellars: o conhecimento e o dualismo forma-matéria

Roy Wood Sellars (1880-1973), filósofo norte-americano do "realismo crítico" e do humanismo religioso, escreveu, sobre o dualismo forma-matéria:

 

« Em primeiro lugar, não vejo necessidade de postular um dualismo metafísico de forma e matéria. A matéria é uma abstracção tanto como a forma. A realidade é matéria informada: tem estrutura e organização, tem uma determinada natureza. A isto se deve que as nossas categorias: espaço, tempo, causalidade, etc, tenham validade. Na medida em que o aristotelismo e o escolasticismo separaram a matéria da forma incorreram em um dualismo vicioso e desnecessário. É a realidade que é activa e sede de processos; não uma matéria nem uma forma. »

 

«Ora bem, se o objecto do conhecimento é uma matéria informada, poderia logo colocar-se o problema: que elemento do objecto se transmite à mente? Falta dizer que não é o ser, mas sim a "forma". Transmitir o ser é impossível, porque a coisa deve permanecer fora da mente que a conhece, e pela mesma razão, conhecer a coisa é não ser a coisa. Mas conhecer uma coisa não é, tampouco, ter uma reprodução à maneira de cópia dela. Que é, pois, o conhecimento? É a posse consciente da "forma" de uma coisa por parte da mente, a saber, da sua localização, tamanho, estrutura, possibilidades causais, etc. É a captação vicária dos traços reproduzíveis de uma coisa. Conhecer é conhecer a própria coisa.» (Roy Wood Sellars, citado in Paul Kurtz, «Filosofia norteamericana en el siglo veinte», Textos escogidos, Fondo de Cultura Económica, México, pag. 346, 1972; a letra a negrito é posta por mim).

 

Sem dúvida, parece, à primeira vista, um texto de filosofia de grande qualidade.

Começarei por uma ligeira correcção da frase de Sellars: «A matéria é uma abstracção tanto como a forma.» Não é a matéria que é uma abstracção: ela existe, indissociavelmente ligada à forma e só por abstracção captamos completamente o conceito de matéria. 

 

Mas se acusa o aristotelismo e a escolástica de ter introduzido um dualismo artificial forma-matéria, Sellars parece postular um dualismo forma-matéria, algo rígido, no plano ontognosiológico: o ser seria a matéria, informada, e o conhecer - a percepção empírica, o conceito - seria só a forma.

Não me parece exacto este dualismo: na apreensão do ser, existe alguma matéria deste que passa para o interior da mente humana. O que é a cor verde, por exemplo? Forma ou matéria? A côr verde de um campo está presente na nossa percepção, tal como o sabor doce do mel que saboreamos. Fotões, sejam eles exteriores ou interiores à mente, compõem a cor. É certo que os fotões não são matéria mas no sentido aristotélico de matéria como substrato, a cor parece-me ser um substrato da forma percebida, não da forma real exterior. A côr é uma espécie de "matéria" sem matéria-massa. Por isso,dizer que conhecer é só apreender a forma e não a matéria é uma interpretação «óptica» do conhecimento

E dizer que o mel é doce, ao prová-lo, é apreender apenas a forma do mel? Ou é mesmo absorver uma ínfima parte do ser do mel?

  

 

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Domingo, 8 de Maio de 2011
A equívoca divisão realismo-empirismo-racionalismo em Gaston Bachelard

Gaston Bachelard (1884-1962), sem embargo da sua grande erudição, procedeu a uma arrumação não dialéctica, algo confusa, das correntes gnoseológicas. Não é um pensador de síntese, dialéctico, por excelência. E quantos pensadores deste tipo dialéctico de excelência passaram pelas cátedras universitárias? Um número ínfimo. Quase todos os filósofos, e mais ainda os catedráticos de filosofia, cometem erros de classificação das doutrinas.

 

Sobre a noção de massa, Bachelard estruturou a seguinte divisão: realismo ingénuo, empirismo claro e positivista, racionalismo clássico da mecânica racional, racionalismo completo (relatividade), racionalismo discursivo

A respeito da noção de energia, criou a seguinte divisão pentádica: realismo ingénuo, empirismo claro e positivista, racionalismo clássico de macânica racional, racionalismo completo (relatividade), racionalismo discursivo.

 

Bachelard escreveu sobre esta divisão:

 

«Com efeito, não vemos como se poderiam dispor de forma diferente as filosofias que tomamos por base. As numerosas tentativas de modificação que levámos a cabo falharam todas a partir do momento em que as referimos a um conhecimento particular. Tentámos assim o nosso método de dispersão na base realismo-racionalismo-empirismo claro. » (Gaston Bachelard, Filosofia do novo espírito científico, Editorial Presença / Livraria Martins Fontes, páginas 64-65; a letra negrito é colocada por mim)

 

O defeito desta divisão em Bachelard está em misturar espécies do género ontologia (realismo) com espécies do género gnosiologia (empirismo, racionalismo). Há uma sobreposição de géneros extrínsecos entre si. Bachelard confunde realismo com realismo natural ou ingénuo e chama racionalismo ao realismo crítico/ racionalista, à fenomenologia e ao idealismo crítico que são correntes ontológicas.

 

O REALISMO NÂO SE PODE DIALECTIZAR?

Bachelard escreveu:

 

«Com efeito, segundo pensamos a dialectização de uma noção prova o carácter racional dessa noção. Um realismo não se pode dialectizar. Se a noção de sunstância se pode dialectizar, teremos a prova de que ela pode funcionar verdadeiramente como uma categoria.» (Gaston Bachelard, Filosofia do novo espírito científico, Editorial Presença / Livraria Martins Fontes, páginas 73; a letra negrita é colocada por mim).

 

Bachelard confunde realismo com descritivismo naturalista. Confunde o ontológico com o gnoseológico, a matéria com a forma. Por que razão "um realismo não se pode dialectizar", isto é, dividir em forças opostas entre si, experiência e razão? Há dialéctica na realidade em si mesma, no realismo, ou seja mundo real de matéria exterior às mentes humanas: a luta e o movimento dos contrários, a água contra o fogo, o electrão contra protão, a força gravítica versus força antigravítica são dialectização no interior da realidade. O realismo não exclui a realidade invisível à qual só a racionalidade tem acesso, como parece supor Bachelard. A esse realismo que exige a razão para construir o ultra-ojecto (exemplo: o protão e os quarks up e down em que se divide, supostamente) chama Bachelard, equivocamente, racionalismo, em vez de o denominar realismo racionalista ou crítico ou epistémico..

 

O KANTISMO CLÁSSICO OPÕE-SE AO RACIONALISMO DA TABELA PERIÓDICA DOS ELEMENTOS NA QUÍMICA?

 

Bachelard escreveu ainda sobre o racionalismo da química contemporânea e do seu insubstancialismo:

 

«Raciocina-se sobre uma substância química desde que se tenha estabelecido a sua fórmula desenvolvida. Vemos pois que a uma substância química está de ora em diante associado um verdadeiro númeno. Este númeno é complexo e reune várias funções. Seria rejeitado por um kantismo clássico; mas o não-kantismo, cujo (papel é o de dialectizar as funções do kantismo, pode aceitá-lo.» (Gaston Bachelard, Filosofia do novo espírito científico, Editorial Presença / Livraria Martins Fontes, página 83).

 

Não se percebe por que razão o conceito de substância expresso em número atómico ou número de massa seria rejeitado pelo kantismo clássico. Kant era racionalista: na sua doutrina, o entendimento impõe leis à sensibilidade, isto é, à natureza física. Se a tabela periódica dos elementos tivesse sido descoberta em vida de Kant, este poderia perfeitamente integrá-la na actividade do entendimento. A tabela é um conjunto de conceitos de recorte pitagórico. Bachelard parece ter sofrido deste mal geral das universidades que é a incompreensão global da ontognoseologia de Kant...

  

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