Sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2011
Heidegger: a consciência natural como diferença ôntico-ontológica

 

Heidegger escreveu:

 

«Ontológico significa levar a cabo a reunião do ente com a sua entidade. Ontológica é aquela essência que, segundo a sua natureza, se encontra em esta história desde o momento em que a suporta segundo o desocultamento do ente de cada momento. De acordo com isto, podemos dizer que a consciência é consciência ôntica na sua representação imediata do ente. Para ela, o ente é o objecto. Mas a representação do objecto representa, de maneira impensada,o objecto enquanto objecto. Já reuniu o objecto na sua objectividade e por isso é consciência ontológica. Mas como não pensa a objectividade como tal e sem embargo, já a representa, a consciência natural é ontológica, e sem embargo, ainda não o é. Dizemos que a consciência ôntica é pré-ontológica. Enquanto tal, a consciência natural ôntico-préontológica é, em estado latente, a diferença entre o onticamente verdadeiro e a verdade ontológica.» (Martin Heidegger, Caminos de Bosque, pag. 134, Alianza Editorial; o negrito é colocado por mim).

 

Este texto de Heidegger merece algumas reservas na sua claridade. Por que razão «a consciência natural é ontológica, e sem embargo, ainda não o é»? Heidegger sabe-o, sem dúvida, mas poderia precisar que a consciência natural é ontológica na sua constituição, mas ôntica no seu conteúdo, na sua função representativa. O ontológico é o verdadeiro profundo por desocultar, o objectivo, o fenómeno (no sentido heideggeriano) oculto sobre as aparências, o alicerce da casa.

 

O ôntico é o verdadeiro aparente. Exemplo: «Onticamente, a febre é um mal porque causa mal-estar térmico, suores, etc, e onticamente é verdadeiro que os medicamentos antipiréticos baixam e fazem desaparecer a febre; ontologicamente, a um nível mais profundo, a febre é bem, porque é um mecanismo de expulsão de toxinas, sais de ácido úrico, colesterol, através de suores, sebo, urinas carregadas, etc, e, portanto, um esforço libertador da doença, e os medicamentos antipiréticos são maus porque bloqueiam a febre, acção vital de defesa do organismo.»

 

Na acepção de Heidegger, entidade significa o ser: a entidade do ente é o ser. Mas haveria que distinguir o ser na sua dupla vertente de qualidade de existir e de estrutura ou essência geral unificada de todos os entes. São coisas distintas, ainda que indissociáveis.

 

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Segunda-feira, 21 de Fevereiro de 2011
Utilitarismo não é consequencialismo: consequência e término da acção não são o mesmo

O termo «consequencialismo» não é inteiramente apropriado para definir o utilitarismo. Há que distinguir entre o término da acção, que muitas vezes é a sua causa final - em sentido aristotélico - ou objectivo final, e consequência da acção, que é posterior à acção.  

 

Ora, para o utilitarismo o essencial é o término da acção, em que se colhem os frutos do movimento empreendido, e não a consequência mais ou menos distante.

 

Decerto, pode dizer-se que o término da acção é uma consequência do seu início. Mas há a consequência externa, a posteriori, que está totalmente fora da acção e o termo "consequencialismo" pode referir-se a esta. Por isso, é um termo ambíguo.

Há muitos actos utilitaristas que não são consequencialistas, mas de imediatismo hedonista, de actualismo (a realidade reduz-se ao acto, à acção presente). Por exemplo, a política seguida pelo Estado português na última década do século XX e na primeira década do século XXI de recorrer massivamente ao crédito junto da União Europeia a fim de investir e desenvolver económica e tecnologicamente o país foi utilitarista - de um utilitarismo capitalista, bem entendido - mas não, em rigor, consequencialista. As consequências chegam agora: os pesados encargos da dívida externa, que levarão o país à falência, a curto prazo.

 

Se um grupo de pessoas esfomeadas assalta um pomar privado e rouba grandes quantidades de fruta para saciar a fome, é um acto utilitarista, visto que visa o princípio da maior felicidade para esse grupo. Mas, subjectivamente, não é um acto consequencialista: as consequências não foram devidamente meditadas ou, se o foram, ficaram secundarizadas. A consequência dessa acção de apropriação de fruta- diferente do término, que é a ingestão hedónica da fruta - é o julgamento em tribunal dos autores dessa violação de propriedade privada agrícola e a sua provável condenação.

 

O utilitarismo não é, portanto, na essência, um consequencialismo: às vezes é-o, outras vezes não. É um actualismo hedonista, um fruicionismo. Ao invés, as morais cristã, budista, islâmica, na medida em que freiam os prazeres sensíveis imediatos, são consequencialistas: pensam nas consequências do «pecado» ou «vício» do adultério, da luxúria, da gula ou da ira, actos e estados de espírito que não permitirão ao crente alcançar o Paraíso ou o Nirvana. A deontologia das religiões - cumprir a Bíblia, o Alcorão ou os Vedas - deriva exactamente da percepção das consequências de certos actos e estados de alma. O dever funda-se pois no prazer prometido da beatitude celeste e na dor anunciada do inferno metafísico ou da roda das reencarnações.

 

Também a moral de Kant se funda no prazer da equidade ou cidadania universal supostamente vivido pelos outros como objecto e consequência da nossa acção imparcial e não no «dever» ou «respeito ao dever» como dizia o filósofo alemão de Konisberg. A intenção em Kant está subordinada à consequência que é a irradiação de um sentimento de justiça universal e igualdade entre as pessoas. O "dever" na moral de Kant é a máscara da subordinação do prazer do indivíduo ao prazer e às regras, reais ou imaginárias, do colectivo.

 

 

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Sábado, 19 de Fevereiro de 2011
O ser, o "tò ón" (ente) e a essência, em Heidegger, e uma tradução duvidosa em espanhol

Em um dos seus mais belos textos filosóficos, datado de 1942, Heidegger escreveu:

 

«A expressão óntico, inspirada no grego tò ón, o ente, significa aquilo que se cinge ao ente. Mas o grego "ón", ente, encerra dentro de si uma essência própria de entidade (ousía) que no transcurso da sua história nunca permanece igual.(...) Como ón significa tanto "ente" como "o quê é" ( 1) on enquanto "ente" pode ser reunido (legéin) em direcção a "o quê é" ( 2) . Até se pode dizer que, de acordo com a sua ambiguidade, ón já está reunido como ente por mor da sua entidade. É ontológico. Mas com a essência do ón e a partir de ela, esse reunir que é, o lógos, transforma-se em cada caso e com ela, a ontologia. Desde que ón, o que se apresenta, se abriu como físis, a presença do que se apresenta reside, para os pensadores gregos, no fainestaí, na manifestação do não oculto que se mostra a si mesma. De acordo com isto, a multiplicidade do que se apresenta, tà onta, é pensada como aquilo que na sua manifestação é simplesmente aceite como o que se apresenta. A aceitação (dékestai) fica sem continuidade. Efectivamente, não continua a pensar mais além, na presença daquilo que se apresenta. Fica na dóxa. Pelo contrário, o noein é aquele perceber que percebe o presente na sua presença e a partir de aí abarca-a com ele.»( Martin Heidegger, Caminos de Bosque, El concepto de experiencia de Hegel, pag 133, Alianza Editorial, Madrid; o negrito é posto por mim).

 

1) Nota minha: A tradução espanhola desta passagem diz: "Como ón significa tanto "ente" como "lo que es". Atrevi-me a alterá-la, substituindo "o que é" por o "quê é" porque  me parece absurda a versão espanhola:  o ente é "o que é", "algo que é" , e não "o quê é" , tò tí, isto é o quid, a forma específica ou individual.

 

2) Nota minha: de novo corrijo aqui a tradução espanhola de "lo que es" substituindo-a por "lo qué-es" ( o quê é).

 

Ser possui na língua grega, o significado de presença, conforme sublinha Heidegger. Mas a essência não é, em rigor, presença, mas forma, estrutura. A essência delimita, especifica ou individualiza o ente, como a forma da estátua de mármore delimita ou individualiza o mármore em bruto. No texto acima, a presença designa o "ser" e o presente indica o "ente".

A acusação de Heidegger à tradição filosófica é a de esta esquecer o ser, que subjaz ao ente e o transcende, em favor do ente. Por exemplo: a metafísica cristã, confundiu o "ser", qualidade totalizante, com o ente "Deus", um espírito omnipotente, benéfico e autor do mundo.

A minha crítica a Heidegger, pensador brilhante da ontologia e, em certa medida, da filosofia analítica, reside na sua ambígua interpretação do termo "ser", nomeadamente expressa na seguinte passagem de Sein und Zeit:

 

«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. E com razão - si definitio fit per genus proximum et differentiam specificam. O "ser" não pode, com efeito, conceber-se como um ente; enti non additur aliqua natura; o "ser" não pode ser objecto de determinação predicando dele um ente.» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, pag 13, Fondo de cultura económica de España, Madrid; o negrito é colocado por mim).

 

Penso que o conceito de ser é definivel. A sua definição é dupla:

A) É o existir universal (presença).

B) É a essência geral de todos os entes, incluindo do ser-aí (cada homem, na sua singularidade).

 

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Quarta-feira, 16 de Fevereiro de 2011
Equívoco de Abbagnano: Finalismo opõe-se a naturalismo?

Sobre a filosofia de George Santayana (1863-1952), um dos filósofos do chamado "realismo crítico" norte-americano, escreveu Nicola Abbagnano (1901-1990):

 

«Sobre a relação do espírito com a natureza, as ideias de Santayana não são claras. Por um lado, afirma que toda a evolução natural tende a tornar possível a vida espiritual. " A matéria - diz (The realism of Spirit, pag. 79) -" não se teria desenvolvido até aos animais se a organização necessária não estivesse potencialmente nela desde o princípio, e a sua organização nunca teria despertado a consciência se a essência e a verdade não tivessem superado a existência desde a eternidade apresentando-se, finalmente, com todas as suas perspectivas suficientemente claras para que o espírito as pudesse perceber."(...) 

 

«Mas por outro lado, insiste no carácter arbitrário, casual e contingente, da evolução física, devido ao qual é apenas a física, e não a metafísica, que nos pode revelar os fundamentos das coisas (Ib, pag 274).Deste modo, há uma contínua oscilação no seu pensamento entre uma concepção finalista, para a qual a matéria teria já, na sua cega fatalidade, predeterminando a realização do espírito , e uma concepção naturalista, para a qual o espírito seria um produto causal finito e temporal da evolução cósmica.» (Nicola Abbagnano, História da Filosofia, volume XIII, pag. 123, Editorial Presença).

 

Importa sublinhar aqui o pensamento equívoco, não dialéctico de Abagnano, ao opor finalismo a naturalismo. Finalismo, doutrina que detecta finalidades na vida e nos processos da natureza, é contrário, não de naturalismo mas, de casualismo, doutrina segundo a qual as coisas e a evolução acontecem ao acaso. Finalismo e casualismo pertencem como espécies ao género teleologia ao passo que naturalismo e sobrenaturalismo pertencem ao género ontologia de regiões.

Naturalismo é ainda sub espécie de duas espécies distintas: finalismo e casualismo. De facto há um naturalismo finalista, como é o caso de Bergson, e um naturalismo casualista.

 

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Sábado, 12 de Fevereiro de 2011
David Hume: a probabilidade e a «irrealidade» do acaso

David Hume, com o estilete fino   do seu raciocínio, considerou haver duas espécies de probabilidade: a que deriva do acaso e a que deriva de uma engrenagem aparentemente determinista, isto é, em que as mesmas causas parecem produzir sempre os mesmos efeitos, nas mesmas circunstâncias.

 

« Por conhecimento entendo a certeza que nasce da comparação de ideias. Por provas, os argumentos tirados da relação de causalidade e que são inteiramente livres de dúvida e de incerteza. Por probabilidade, a evidência que ainda é acompanhada de incerteza. É esta última espécie que passo a examinar.»

«A probabilidade ou raciocínio de conjectura pode dividir-se em duas espécies, a saber,a que se baseia no acaso e a que nasce de causas. Consideremos uma e outra por ordem. A ideia de causa e efeito é tirada da experiência que, apresentando-nos certos objectos constantemente conjugados, produz um hábito tal de os considerar nesta relação, que não podemos sem sensível violência considerá-los em qualquer outra relação. Por outro lado, visto que o acaso não é em si nada de real, e, falando com propriedade, é apenas a negação de uma causa, a sua influência na mente é contrária à da causação; e é essencial que deixe a imaginação perfeitamente indiferente para considerar a existência ou não-existência do objecto tomado como contingente.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pags 163-164, Fundação Calouste Gulbenkian).

 

Comecemos por notar que Hume chama conhecimento, não a uma simples impressão dos sentidos mas, à comparação entre duas ideias. Isto sugere que, por exemplo, se vejo uma flor e reconheço nela uma rosa, comparo o conceito de flor que nasce da minha percepção empírica com o conceito ou ideia de rosa armazenado na minha memória - esse reconhecimento ou coincidência de ideias é o conhecimento, a certificação.

 

Creio que David Hume se enganou dizer que «o acaso não é em si nada de real», «é apenas a negação de uma causa». Só um fatalista pode fazer tal afirmação, e Hume parece não ser fatalista. Para um não fatalista, o acaso é tão real como o determinismo ou conexão necessária de causas e efeitos e esse acaso, não podendo entrar na essência do determinismo, infiltra-se no espaço junto da malha deste, combina-se com o determinismo. Assim, por exemplo, deixa-se cair uma bola plástica do alto de uma torre sobre um ponto determinado do chão mas o acaso de uma rajada de vento desvia a trajectória da bola e ela não cai no ponto em que era esperado bater. Este acaso que deriva de causas - uma delas a lei da gravidade que impõe a queda na vertical, outra o vento com direcção horizontal - não é, talvez, tão imprevisível como a queda repentina de uma árvore ou a eclosão de um sismo mas é real. Possui tanta realidade como as leis de causa-efeito de cuja colisão ou intersecção é o resultado.

 

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Segunda-feira, 7 de Fevereiro de 2011
O utilitarismo de Mill, uma ética deontológica consequencialista, e a ética de Kant, um consequencialismo formal deontológico

Habitualmente, designa-se o utilitarismo de Mill como uma doutrina ética consequencialista opondo-o à chamada ética deontológica que, para a generalidade dos autores, tem como expoente máximo a ética de Kant. Se meditarmos com profundidade, descobrimos que há um erro nesta divisão não dialéctica: consequência e dever não são contrários entre si, consequencialismo e deontologia não se opõem, complementam-se até numa mesma teoria.

 

Se Kant formulou o imperativo categórico como imperativo do dever (deón, em grego), Mill formulou o imperativo da maximização altruísta do prazer assente no princípio da imparcialidade.

 

«No entanto, não parece que tenha de considerar-se a imparcialidade em si mesma como um dever, mas antes como um instrumento para outro dever; porquanto se admite que o favor e a preferência nem sempre são censuráveis, e, na realidade, os casos em que se condenam constituem mais uma excepção do que uma regra. »(John Stuart Mill, Utilitarismo, pag 74, Atlântida, Coimbra, 1961; o negrito é posto por mim).

 

A imparcialidade subordina-se à felicidade do maior número, na ética de Mill, ao contrário da ética de Kant em que a imparcialidade é um valor absoluto, por cima de todos, mesmo que gere infelicidade. Mill tem uma visão dialéctica - eivada de variação, movimento, consoante o tempo e a rede de correlações materiais, sociais, etc - ao passo que Kant tem uma visão antidialéctica, estática, rígida.

 

Mill escreveu sobre o princípio-dever dos utilitaristas:

 

«Porquanto este critério (utilitarista) não é o da maior felicidade do próprio agente mas o da maior soma de felicidade geral.»(John Stuart Mill, Utilitarismo, pag 27, Atlântida; o negrito é posto por mim).

 «Proceder como desejaríamos que procedessem connosco, e amar o próximo como a nós mesmos - eis o ideal de perfeição da moral utilitarista. Como meios para conseguir a mais exacta aproximação deste ideal, o utilitarismo exigiria, em primeiro lugar, que as leis e disposições sociais colocassem a felicidade, ou (como praticamente podemos chamar-lhe) o interesse, de cada indivíduo, tanto quanto possível em harmonia com o interesse da comunidade; e, em segundo lugar, que a educação e a opinião, que tão vasto poder têm sobre o carácter humano, usassem desse poder para incutir na mente de cada indivíduo uma associação indissolúvel entre a sua própria felicidade e o bem de todos» (ibid, pag. 34-35; o negrito é posto por mim).

 

Os deveres do utilitarismo de Stuart Mill são, portanto:

1) Assegurar o prazer e uma existência digna à maioria - se não for possível à totalidade - das pessoas envolvidas numa dada situação (princípio da maior felicidade), através de regras e preceitos e de uma solução "ad hoc" eficaz. fruto de uma análise adequada da situação concreta.

2) Difundir os bons princípios ou preceitos do amor e da solidariedade universal que agilizam o princípio da Maior Felicidade, entre os quais o de a felicidade de cada um não dever ser egoísta mas implicar-se em expandir a felicidade aos outros e dos outros .

 

No fundo, o dever do utilitarista é realizar a felicidade para o maior número de pessoas. Isso é deontologia, fundada no princípio do prazer.

 

A ética de Mill é, sem dúvida, uma ética deontológica hedonista, se por hedonismo entendemos a filosofia que identifica o bem com o prazer,e o mal com a dor, de um ou muitos indivíduos. A ética de Kant, tal como a dos estóicos, é uma ética deontológica não hedonista, isto é, ascética, justiceira e, por vezes, dolorista.

 

A ética de Kant é, ao contrário do que se diz, uma ética consequencialista: ela visa não apenas o método da acção mas a consequência desta, que é irradiar um conteúdo, indeterminado a priori, sobre toda a humanidade. Trata-se de um consequencialismo formal - «ou comem todos ou não há moralidade» em linguagem popular - que, em cada caso individual, se transforma em consequencialismo material ou substancial.

É, de facto, um pouco idiota supor que Kant não visava finalidades, consequências, nas máximas (princípios subjectivos de cada indivíduo) elevadas a lei moral. Não é pelo aspecto consequencialista que as éticas de Kant e Mill se distinguem, essencialmente.

Hedonismo e não hedonismo é, pois, a pedra de toque que distingue a moral de Mill da de Kant.

 

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Quarta-feira, 2 de Fevereiro de 2011
Incoerências de "Filosofia em directo" de Desidério Murcho

O mediático tradutor e autor de manuais escolares de filosofia, o luso-brasileiro Desidério Murcho, no seu recente livro "Filosofia em directo", posto à venda em conjunto com a edição do jornal «Público» de 27 de Janeiro de 2011, explana em 96 páginas o que entende ser a natureza e os problemas da filosofia. O livrinho divide-se em nove capítulos: 1. Democracia; 2. Liberdade; 3. Autonomia; 4. Valor; 5. Sentido; 6.Realidade; 7. Contingência; 8. Raciocínio; 9. Verdade.

 

O livro é pouco esclarecedor sobre o que é a filosofia. Ausência de um quadro geral de referência à ontognoseologia e suas correntes fundamentais: realismo, idealismo, fenomenologia. Desidério evita a rocha de contornos bem marcados destas definições.. Não é o seu forte. Ausência de referência aos grandes contributos trazidos pelo rio da tradição filosófica: a matematização do mundo na filosofia pitagórica e galilaica; a formalização arquetípica do mundo nas filosofias de Platão, Aristóteles e da escolástica; a racionalização do mundo, em versão idealista de Kant, e em versão realista de Hegel e Marx; a sensorialização e insubstancialização do mundo por Hume, Mach, Avenarius, Russell, etc. Nada disto nos é referido. Sempre a velha preocupação de Desidério Murcho que faz lembrar os historiadores revisionistas que eliminam factos históricos: apagar a tradição filosófica, a filosofia que jorrou até nós pelas escadarias dos séculos, desde a Antiguidade.

 

PROCLAMAR O CEPTICISMO E APLICAR O MAIS ESTREITO DOGMATISMO

 

 Analisemos, com exemplos,  o tipo de argumentação desenvolvida por DM neste livro:

 

«Evolução

 

«Quem tiver a ideia de que a evolução biológica seria o fundamento do valor, comete igualmente dois erros. Primeiro, considera erradamente que o facto de termos certas preferências, explicáveis em termos de selecção natural, é razão suficiente para as aceitar. Isto é uma incompreensão dupla. Por um lado, as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas - a evolução não decide por nós, qual Deus benevolente. Por outro, a origem biológica de uma preferência não lhe dá uma prerrogativa especial - a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.»

«Em segundo lugar, quem põe a teoria da evolução no lugar ocupado pelo Deus judaico-cristão, comete o erro biológico de crer que a evolução tem uma direcção ou propósito; nós teríamos então o dever de obedecer a este propósito da evolução, como se fosse um Deus. Mas a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção. E, mesmo que o tivesse, daí não se concluiria que teríamos o dever de lhe obedecer. » (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 48, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

Em primeiro lugar, Desidério não distingue, com clareza, valor, de preferência. O valor é um farol e a preferência um caminhar para esse farol.

 

Em segundo lugar, o facto de que «as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas» não invalida que possa haver um pólo dominante na génese dos valores- e que esse polo seja a constituição biológica- e pólos dominados - a sociedade, a consciência moral e religiosa, etc. Também a teoria psicanalítica de Freud considera uma fonte genética dos valores, o id ou infra-ego, com o princípio do prazer, sem embargo dos conflitos que o super-ego, portador dos valores sociais, vindos de fora do indivíduo, causa ao reprimir o id.  Em suma, a desarmonia entre as preferências de valores não impede que a génese destes possa estar no instinto biológico. O argumento de que «a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.» é confuso, falacioso porque não se cinge ao conflito de preferências no seio do mesmo indivíduo mas recorre a uma vontade externa, a de outro.

 

Em terceiro lugar, Desidério Murcho, calçando as botas ferradas de um dogmatismo pouco filosófico, define a sua posição eliminando as outras, sem argumentar com fundamento. Ele opõe-se ao vitalismo ou ao biologismo teleológico, com uma petição de princípio: «a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção porque é um substituto para a ideia de Deus.»

Falta demonstrar esta afirmação metafísica. A virtude filosófica de Desidério, se a possuir, e não fôr um sectário de uma corrente parcelar,  deveria ter a humildade de apresentar as duas teses que se opõem nesta matéria delicada e brumosa.

 

Poderia ter a liberalidade de citar, por exemplo, Bergson, que defende finalidade na evolução biológica:

 

«Em resumo, se nos exprimíssemos em termos de finalidade, diríamos que a consciência, depois de ter sido obrigada, para se libertar a si própria, a cindir a organização em duas partes complementares, vegetais e animais, procurou uma saída na dupla direcção do instinto e da inteligência. Não a encontrou com o instinto, e não a obteve, do lado da inteligência, senão através de um salto brusco do animal ao homem. De forma que, em última análise, o homem constituiria a razão de ser de toda a organização da vida no nosso planeta.» (Henri Bergson, A evolução criadora, pag 169, Edições 70).

 

Mas o mesmo tradutor que afirma que não há qualquer finalidade na evolução biológica contradiz-se ao escrever:

 

«Como sabemos então que sabemos seja o que for? Se estamos a perguntar como podemos garantir que sabemos quando cremos que sabemos, a resposta simples é nunca. Mas se raciocinarmos de maneira cuidadosa, podemos - cooperando cognitivamente com os nossos semelhantes - tomar medidas que diminuam o erro e aumentem o acerto.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 88, Fundação Francisco Manuel dos Santos).

 

Há uma evidente inconsistência entre esta posição céptica e a posição dogmática acima expressa na tese de que «não há qualquer finalidade ou direcção na evolução biológica e esta não é a fonte dos valores». Se afirma que nunca podemos ter a certeza de nada, como pode garantir que estão errados os que sustentam que a vida orgânica é dotada de sentido e finalidades? É nesta caldeira de incoerência que ferve o pensamento de Murcho.

UMA PSEUDO-REFUTAÇÃO DO IDEALISMO 

 

Visando refutar o idealismo ontológico material e o cepticismo de que deriva, escreve DM:

 

«Declarar que todas as nossas convicções são ilusórias, precisamente porque não podemos excluir a hipótese do sonho, é fazer duas confusões.»

«Primeiro, não pode ser verdadeiro que todas as nossas convicções são ilusórias, porque nesse caso também a convicção de que todas as convicções são ilusórias seria ilusória; e se esta convicção for ilusória, então as outras convicções não serão ilusórias.Por outro lado, se insistimos que só esta convicção não é ilusória, teríamos de explicar o seu carácter de excepção. Se estamos convictos de que todas as nossas convicções são ilusórias, não é coerente estar convicto de que essa convicção em particular não é ilusória.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 70, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

O idealismo material e o cepticismo não afirmam que todas as certezas são ilusórias: a ilusão é o carácter de quase todas, excepto o dogma base de que a realidade material é ilusória (idealismo) ou duvidosa (cepticismo). Desidério Murcho classifica de incoerência esta dualidade que, no fundo, é a dualidade observador-observado, máquina fotográfica/ fotos da paisagem. Não há nenhuma incoerência na doutrina idealista, ao nível racional: não há que explicar o carácter dogmático de excepção da tese «tenho a certeza de que toda a matéria e os entes dela formados são ilusão». É um axioma. Corresponde à divisão sujeito-objecto, que continua a existir no idealismo: o objecto material é aparência, o eu psico-espiritual é a realidade. O eu cognoscente é real para os idealistas, os entes materiais são ilusões, percepções corpóreas tridimensionais. Logo, não é possível aplicar os mesmos critérios de certeza e ilusão a estes dois níveis ontológicos.

 

A essência íntima das coisas é inexplicável: a explicação é sempre uma articulação de entidades em si mesmas incognoscíveis, no todo ou em parte. A pretensão de DM explicar tudo é anti filosófica: é um desvio logicista. Há mais mundo para além da lógica e da retórica. O inexprimível, o inefável, o alógico, existem. Há um intuir originário que está para além do "explicar", intuir esse que compreende mas não discursa, não explica. Lao Tse dizia: «Aquele que fala não sabe/ Aquele que sabe não fala.» Desidério raciocina mecanicamente na base do «8 ou 80», sem meio termo. Exige que, se há convicções ilusórias, todas as convicções sejam ilusórias - é a falácia da composição. O pensamento de Desidério é excessivamente linear, de superfície. Falta-lhe profundidade.

 

 

A CONFUSÃO SOBRE O QUE É VERDADE E SOBRE O QUE É CONHECIMENTO

 

Os equívocos de Desidério estendem-se às noções de verdade e conhecimento:

 

«Em suma, a verdade não é o mesmo que verificação ou confirmação. E também não é uma adequação entre o pensamento e a realidade, se por adequação entendermos uma cópia. A verdade é o que ocorre quando as nossas convicções representam correctamente a realidade. Nunca temos maneira de garantir a correcção da representação, mas nada se conclui daí excepto a nossa falibilidade. E o que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas é a realidade.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é de minha autoria).

 

A verificação é o acto de encontro com a verdade. Portanto não é exacto dizer que verdade não é o mesmo que verificação: enquanto acto de descoberta (aletheia) a verdade coincide com a verificação, que é o abrir da verdade; enquanto objecto em si, interno ou externo, a verdade é diferente da verificação, do mesmo modo que actualização (passagem da potência ao acto) difere de acto. 

  Ademais, não é apenas a realidade que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas: é também o aparelho interno cognoscente, isto é, os nossos orgãos dos sentidos e a nossa inteligência. Um cego não pode ver a relva verde que a realidade da paisagem diante de si lhe oferece.

 Sobre o conhecimento, escreve: 

 

«Quando confusamente se fala de conhecimento falso, o que está em causa é falar de algo que parece conhecimento, mas não é; e do mesmo modo que o dinheiro falso não é dinheiro, também o conhecimento falso não é conhecimento. Consequentemente, se a Terra não está imóvel, nunca se pôde saber que a Terra estava imóvel - apesar de muita gente ter tido a convicção de que sabia tal coisa.».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 81, Fundação Francisco Manuel dos Santos).

 

Ao contrário do que afirma DM, dinheiro falso é dinheiro... sem validade legal. Certamente, no século XII, a generalidade das pessoas não conhecia, intelectual ou científicamente, que a Terra estava imóvel - conhecia, sensorialmente, a imobilidade da Terra - mas conhecia a teoria de que a Terra é imóvel. Mas hoje ninguém conhece factualmente que a Terra se move - para conhecer é preciso vê-la a mover-se. Hoje conhece-se, intelectualmente - um conhecimento indirecto, susceptível de dúvida - que a Terra gira em torno do seu eixo ao mesmo tempo que gira em volta do Sol. E nada impede que esta teoria seja falsificada, desmentida no futuro. Desidério Murcho fala como se a verdade nesta matéria estivesse conquistada de uma vez por todas. Não está.

Há, de facto, um conhecimento de verdades e de falsidades. O conhecimento não é apenas uma relação entre o sujeito e o objecto exterior, factivo ou factual. Não é apenas um conhecimento de verdades. É também uma relação entre a mente percepcionante e a representação (imagem sensorial, ideia, juízo) que nela se forma.

 

O conhecimento tem duas vertentes: a objectiva, isto é, a do referente ou objecto a conhecer; a subjectiva, isto é, a do símbolo, representação do objecto. O conhecimento do átomo ou dos quarks e leptões - exceptuando os átomos maiores, visíveis a microscópio - é a relação da mente com uma imagem conceptual nela elaborada. Parece que Desidério não questiona a existência de leptões. Ele respeita, venera a ciência instituída. Mas e se os leptões não existirem? Ser-se-á forçado a dizer que não havia conhecimento dos leptões, foi tudo uma fantasia. De facto, não se conheciam os leptões mas um conceito símbolo de tais supostas entidades.

 

É ERRADO O RACIOCÍNIO QUE SE AFASTA DO ÓBVIO?

DM escreve ainda:

 

«Erramos ao raciocinar sobretudo quando nos afastamos do óbvio e do simples. Quem não sabe raciocinar proficientemente, não vê o que há de errado com o raciocínio "Há uma causa de todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa" , mas facilmente vê o erro do raciocínio "Há uma mãe de todas as pessoas porque todas as pessoas têm uma mãe". (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 85, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

De facto, há vezes em que erramos no raciocínio ao afastarmo-nos do óbvio e do simples - por exemplo, é óbvio o raciocínio que diz´«Vacinar é infectar o sangue com vírus e toxinas, logo vacinar é mau para a saúde» . Mas há muitas outras vezes em que geramos um raciocínio profundo, ao afastar-nos daquilo que é óbvio ao senso comum. A teoria da relatividade de Einstein, contra o óbvio da teoria do espaço tridimensional feito de linhas rectas e planos, sustenta que o espaço é ondulatório, irregular, e encurva na proximidade de grandes massas.

ANDAMOS SÉCULOS A SUBSTITUIR O RACIOCÍNIO POR DEUS, PELA AUTORIDADE OU PELA OBSERVAÇÃO?

  

DM escreve ainda, como se tivesse descoberto o santo Graal da filosofia:

 

«O raciocínio está no centro da estrutura epistémica de seres falíveis. No entanto, a tentação ao longo dos séculos tem sido fingir que podemos abandonar o raciocínio paciente envolvido nos controlos e ajudas permanentes, substituindo-o por Deus, pela Autoridade ou pela Observação ou Experimentação. Mas não há fuga do raciocínio porque mesmo que Deus ou alguma autoridade nos fale, temos de raciocinar para concluir com base na observação ou na experimentação. E no raciocínio, como em tudo o resto, podemos cometer erros, porque somos falíveis.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 84, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

Não faz sentido dizer que só o raciocínio está no centro da nossa estrutura epistémica. O centro do processo de conhecimento é triplo: raciocínio, intuição inteligível e intuição sensível. Que é o raciocínio sem a intuição inteligível? Um esqueleto descarnado. As intuições inteligíveis de números 3,7,8 e 18 é que permitem estruturar o seguinte raciocínio: « Se 3 adicionado de 7 perfaz 10, e dez adicionado de 8 dá 18, então 3 mais 7 mais 8 tem como resultado 18».

 

O raciocínio aristotélico «Há dois princípios, a forma e a matéria-prima, logo a combinação dos dois produz o composto, o ente individual» necessita previamente das intuições, inteligíveis ou sensíveis, de forma, matéria, composto, ente, indivíduo. O raciocínio sem as intuições ou conceitos que o musculam é vazio, é uma estrutura formal sem conteúdos. Há raciocínios metafísicos, antimetafísicos, etc, formalmente correctos que não conduzem necessáriamente à certeza. Porque esta só as intuições, sensíveis ou não, a fornecem. Ora o que DM faz é desprezar o papel fulcral da intuição inteligível (ideia, conceito) e  ignorar o carácter alógico desta.

 Quanto mais fala em raciocínio,menos DM raciocina!  Quanto mais brande a espada da lógica e do falibilismo, menos pensa!

 

 

A DISTINÇÃO SUBJECTIVO-OBJECTIVO NÃO EXISTE?  EXISTE, EM UM SENTIDO, NÃO EXISTE, EM OUTRO

 

DM sustenta ainda que subjectividade e objectividade não se distinguem, afirmando, com razão, que o que é subjectivo não é necessariamente errado ou incorrecto:

 

 «Tal como o consenso não implica a verdade, também a ausência de consenso não implica que o que está em causa é meramente subjectivo»(...)

 «A distinção entre objectividade e a subjectividade esconde geralmente uma confusão: pensar que da dificuldade de chegar a consenso se conclui que nenhuma convicção é genuinamente verdadeira, no mesmo sentido em que as verdades objectivas o são. ».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 93-94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

 Há uma certa nuvem de confusão nesta argumentação.Desidério Murcho não define com precisão o que entende por subjectivo, parece não se aperceber do desdobramento de sentidos deste termo. A distinção subjectivo e  objectivo não existe, de facto, quanto ao conteúdo substancial das nossas representações, isto é, objectivo e subjectivo não se distinguem epistemicamente - exemplo: eu posso estar perfeitamente certo, com toda a razão objectiva, ao defender, isolado, contra a «comunidade científica» que "a passagem de um planeta em 26º do signo de Sagitário causa, em regra, desaires para o PSD" - mas a distinção subjectivo-objectivo existe enquanto distinção numérica, por sim dizer, sociológica: o subjectivo é o pensamento singular, de um só indivíduo, o objectivo é o pensamento comum de muitos indivíduos.  

 

É POSSÍVEL PROVAR QUE DEUS NÃO É O FUNDAMENTO DO DEVER? ARBITRÁRIO OPÕE-SE A RAZOÁVEL?

 

DM desenvolve ainda o seguinte raciocínio sofístico contra a ideia de Deus como fundamento do dever: 

 

«Quem pensa que sem Deus, tudo seria permitido, considera que as nossas preferências não são suficientes para fundamentar o dever. Mas considera que as preferências de Deus o são. Interpretada literalmente, a ideia é implausível. Se a minha preferência, depois de passar pelo crivo do pensamento prudencial cuidadoso, não fundamenta o dever, a preferência de Deus ainda menos o poderia fazer. Se a minha preferência por beber água não me dá uma razão para beber água, a preferência de Deus não pode dar-me uma razão para a beber. Isto porque ou a preferência de Deus pela água é arbitrária, e nesse caso não me dá razão alguma para beber água precisamente por ser arbitrária, ou é razoável, e nesse caso é por ser razoável que me dá uma razão para beber água e não por ser uma preferência de Deus.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag. 44-45, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é colocado por mim).

 

Neste estilo "light", saltando de ramo em ramo na árvore da retórica do "bem falar", se desenvolve a vazia argumentação de Desidério Murcho. Por que razão Deus ou deuses não poderiam fundamentar o dever? Não é implausível haver deuses, embora seja indemonstrável, empiricamente falando. A natureza biocósmica não nos revela que haja Deus ou deuses mas não nos proibe de pensar que existam. Por que razão a preferência de Deus por eu beber água não pode ser razoável? Por que razão a razoabilidade não pode brotar do próprio Deus? Em Hegel, a ideia absoluta ou Deus é absolutamente racional, razoável, apesar de inicialmente arbitrária, encarna em natureza e nas leis biocósmicas desta. Pode Desidério refutar Hegel, de modo inquestionável e vencedor? Não pode. Na metafísica pura, ateus, teístas, panteístas e panenteístas terçam armas, isto é, argumentos, sem que se possa descortinar, objectivamente, quem tem razão.

 

Arbitrário opõe-se sempre a razoável? Não. É outra confusão de Desidério Murcho. Eu posso conduzir arbitráriamente um automóvel sem destino fixo, dormindo aqui ou acolá, mas isso é razoável pois não ultrapasso a velocidade de 90 quilómetros por hora e levo os documentos, o dinheiro e a roupa suficiente para realizar essa viagem de uma ou várias semanas. A máxima de cada indivíduo é arbitrária, segundo Kant: depende do livre arbítrio de cada um. Mas o facto de ser arbitrária - por exemplo, a máxima: «Divulga a toda a gente as virtudes medicinais das tisanas de tília, hipericão, erva de são roberto, malva e outras» é arbitrária, escolhi-a mas outros escolherão outras máximas - não impede que seja razoável. Razoável, isto é, racional, prudente e experimentado, opõe-se a irrazoável, não a arbitrário.

 

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 14:32
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