No Filebo, importante diálogo, Platão estabelece três géneros originais o infinito, equiparado ao prazer sensual, o finito, equiparado ao prazer espiritual da sabedoria e da medida, e a mistura. Assim, ontologicamente, a sensualidade assemelha-se ao caos, ao ilimitado, que não tem proporções definidas, ao passo que a ciência e a inteligência assemelham-se ao ser, ao limitado e dotado de proporção (número).
SÓCRATES- Não é nesta mistura de infinito e de finito que nascem as estações e tudo o que nos parece belo no universo?
PROTARCO- Sem dúvida.
SÓCRATES- E há mil outras coisas que não cito, como a beleza e a força com a saúde, e muitas qualidades admiráveis na alma. Com efeito, meu belo Filebo, a deusa, vendo a violência e a maldade universal que provêm do facto de que os homens não põem limites aos seus prazeres e à sua gula, estabeleceu a lei e a ordem, que contêm um limite. Tu pretendes que ela fez mal. Pelo contrário, eu digo que é a nossa salvação. E tu, Protarco, que dizes?
PROTARCO- Estou inteiramente de acordo contigo, Sócrates.
SÓCRATES- Estas são as três classes de que eu devia falar, se bem me compreendes.
PROTARCO- Sim, creio compreender-te. Parece-me que dizes que o infinito é uma classe e o finito uma segunda classe nas coisas existentes, mas não entendo bem qual é a terceira.
SÓCRATES- É porque, admirável rapaz, ficaste confundido com a quantidade das produções da terceira. Contudo, o infinito também apresenta muitas espécies, mas como todas elas tinham a marca do mais e do menos, pareceram-nos um único género.
PROTARCO- É verdade.
SÓCRATES- Quanto ao finito, também não contestámos que continha muitas espécies nem que havia um da sua natureza.
PROTARCO- Como teríamos podido contestar?
SÓCRATES- De maneira nenhuma. Quanto à terceira classe, penso que incluo nela tudo o que saiu das primeiras duas, tudo o que vem à existência sob o efeito da medida e do finito.
(Platão, Filebo, XIII parte; o bold é nosso)
A geração faz-se, pois, a partir dos contrários finito e infinito, segundo Platão. É uma visão eminentemente dialética.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O acaso é o não regido por leis conhecidas e o factor de inflexão ou variabilidade do efeito dessas leis.
Mas a pergunta eleva-se: é o acaso uma realidade ontológica ou apenas uma aparência? É real ou irreal?
O acaso transforma o determinismo rigoroso em regularidade estatística. É o mais anti absolutista dos factores na máquina mundi. É um ingrediente da ideia de liberdade.
Para o fatalismo, o acaso é irreal, não entra na esfera do ser. Não há acaso, tudo está rigorosamente interligado pela necessidade essencial e acidental.
Uma certa percentagem de acaso entra nas malhas do determinismo concebido como princípio segundo o qual nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos.
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Frederico Nietzsche (1844-1900), o filósofo maldito, sempre nutriu uma especial admiração pela cultura da França, o país do humanismo por excelência: a França é a pátria europeia do cristianismo, depois é a pátria do humanismo filosófico, em terceiro lugar o berço da revolução de 1789-1799 e do humanismo político e social contemporâneo.
«No fundo é a um pequeno número de velhos franceses que regresso sempre: creio só na cultura francesa e tenho por equívoco tudo quanto na Europa se chame «cultura», para não falar de «cultura alemã».. Os poucos casos de alta cultura que na Alemanha encontrei, eram todos de origem francesa, e mais que todos a senhora Cosima Wagner, de longe a voz mais elevada em matéria de gosto que jamais ouvi. Se leio, se amo Pascal, como a vítima mais instrutiva do cristianismo, gradualmente assassinado, primeiro no corpo e logo no espírito, como lógico resultado dessa horrível forma de crueldade humana; se tenho no espírito, e, quem sabe?, também no corpo, alguma coisa da audácia de Montaigne; se o meu gosto de artista toma sob a sua protecção, não sem cólera, perante um género bárbaro como Shakespeare, os nomes de Moliére, Corneille e Racine; tudo isso não impede que, para mim, os franceses mais recentes constituam uma sociedade encantadora. Não vejo de modo nenhum em que século tantos psicólogos tão interessantes e, ao mesmo tempo, tão subtis poderiam encontrar-se como em Paris, nos nossos dias: tomo como exemplos, porque o número deles não é pequeno: Paul Bourget, Pierre Loty, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lemaitre, ou, para mencionar um dos de mais forte garra, autêntico latino, a que sou particularmente afeiçoado, Guy de Maupassant. Prefiro esta geração, seja dito entre nós, às dos seus grandes mestres, que foram estragados pela filosofia alemã (Taine, por exemplo, estragado pela leitura de Hegel, à qual deve o ter-se equivocado na compreensão dos grandes homens e das grandes épocas). Onde chega a Alemanha, corrompe-se a cultura. Só a guerra «salvou» o espírito em França.» (Nietzsche, Ecce Homo, Guimarães e Cª Editores, pags 56-57; o bold é nosso)
Contra-revolucionário, Nietzsche está longe de ser um espírito geométrico do tipo do racionalismo alemão, personificado em Kant ou Hegel. Constituído por uma rede de finas intuições psicológicas, o pensamento de Nietzsche é ainda um pensamento romântico, de um romantismo socialmente às avessas porque a liberdade do filósofo e da elite de aristocratas se vira contra a universalização da liberdade individual.
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Na divisão estabelecida por John Rawls das teorias éticas encontramos: perfeccionismo, intuicionismo, hedonismo, eudemonismo, idealismo (kantiano), utilitarismo
Escreveu Rawls:
«A minha concepção do intuicionismo é algo mais ampla do que a que é corrente: interpreto-o como a doutrina que afirma que há um grupo irredutível de princípios primordiais que temos de comparar entre si, determinando, reflectidamente, o mais justo equilíbrio entre eles. Uma vez atingido um certo nível de generalidade, o intuicionismo defende que não há um critério construtivo de parâmetro superior para determinar a relevância adequada dos diversos princípios da justiça concorrentes.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pags 48-49; o negrito é colocado por nós)
«Há uma outra semelhança com o idealismo: a teoria da justiça como equidade reserva um lugar central para o valor da comunidade e o modo de o fazer depende da interpretação kantiana.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 213; o negrito é colocado por nós)
«As doutrinas teleológicas diferem, claramente, de acordo com a forma como a concepção do bem é especificada. Se ela for vista como a realização daquilo que no homem há de excelente através das várias formas de cultura, teremos o que se pode chamar de perfeccionismo. Esta noção encontra-se em Aristóteles e em Nietzschze, entre outros. Se o bem for definido como prazer, temos o hedonismo; se o for como felicidade, temos o eudemonismo, e assim sucessivamente. Na minha interpretação, o princípio da utilidade na sua forma clássica define o bem como a satisfação do desejo, ou melhor, a satisfação do desejo racional.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 43; o negrito é colocado por nós)
«Se, por exemplo, for defendido que, em si mesmas, as realizações dos gregos nos campos da filosofia, da ciência e da arte justificavam a velha prática da escravatura (partindo do princípio de que esta era necessária para que fossem alcançadas tais realizações) esta concepção será decerto altamente perfeccionista. As exigências da perfeição afastam as altas exigências da liberdade.» John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 255; o negrito é colocado por nós)
A superficialidade de Rawls é aqui patente: perfeccionismo é uma noção demasiado estreita. Acaso o marxismo não é um perfeccionismo colectivista? E o fascismo não é um perfeccionismo? Porquê citar apenas Aristóteles e Nietzschze como paradigmas do perfeccionismo? Certamente há éticas perfeccionistas e éticas não perfeccionistas mas Rawls não tem precisão na definição das primeiras e, obviamente, das segundas.
Além disso, o perfeccionismo não pode opor-se ao intuicionismo como espécies diferentes do género ético. Há um intuicionismo perfeccionista, como por exemplo, a moral de Sócrates e de Platão: o Bem é a perfeição suprema e a alma humana, mediante a filosofia, atinge esse bem por intuição inteligível, noética. A própria teoria da justiça como equidade de Rawls é um perfeccionismo, na medida em que preconiza um ideal de perfeição, a mesmo grau de liberdade extensivo a todos os homens, o que é manifestamente impossível, por utópico, na sociedade real, capitalista democrática, socialista burocrática/ «comunista» ou outra qualquer. Contudo, Rawls não parece designar a sua doutrina da justiça como equidade de perfeccionismo
HÁ PERFECCIONISMO INTUICIONISTA E PERFECCIONISMO ESTRITO?
A vagueza da definição de intuicionismo é uma característica do estudo de Rawls:
«Uma forma de distinguir as posições intuicionistas consiste na análise do nível de generalidade dos seus princípios. O intuicionismo do senso comum toma a forma de grupos de preceitos assaz específicos, cada um dos quais se aplica a um particular problema da justiça. Há um grupo de preceitos aplicável ao problema do salário justo, outro ao da tributação, outro ainda ao da sanção, e assim por diante. Por exemplo, para obter a noção de salário justo temos de avaliar diversos critérios concretos, como, por exemplo, os da capacidade, preparação, esforço, responsabilidade, bem como os simples acasos ligados ao trabalho; e temos ainda que ter em conta as necessidades objectivas de cada um». (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 49-50; o negrito é colocado por nós)
Porque se há-de chamar intuicionismo e não racionalismo a esta definição? E a ética de Aristóteles, que sonda a natureza psico-social dos homens e estabelece «grupos de preceitos assaz específicos», não deveria ser classificada como intuicionismo, segundo esta linha de pensamento de Rawls, em vez de ser designada de perfeccionismo?
Note-se aliás a névoa de confusão entre intuicionismo e perfeccionismo na seguinte passagem:
«Mas a maior felicidade dos menos afortunados não justifica, em geral, a redução das despesas exigidas para a preservação dos valores culturais. Estas manifestações de vida têm maior valor intrínseco do que os prazeres inferiores, por mais generalizados que estes sejam. Em condições normais um certo mínimo de recursos sociais deve ser posto de parte, a fim de ser consagrado aos objectivos do perfeccionismo. A única excepção ocorre quando estas exigências colidem com as relativas às necessidades básicas. Deste modo, dada a melhoria das circunstâncias, o princípio da perfeição adquire um peso relativo crescente face ao aumento da satisfação dos desejos. Nesta forma intuicionista, o perfeccionismo seria sem dúvida aceite por muitos. Ela permite uma certa gama de interpretações e parece expressar uma visão muito mais razoável do que a teoria perfeccionista estrita.»
«Antes de examinar as razões da rejeição do princípio da perfeição, vou analisar as relações entre os princípios da justiça e os dois tipos de teorias teleológicas, perfeccionismo e utilitarismo.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 43; o negrito é colocado por nós)
A distinção entre intuicionismo e perfeccionismo é nebulosa: Rawls admite no texto acima um perfeccionismo intuicionista, dando a este último termo um sentido de «social» ou «centrado nas necessidades básicas do povo». Mas intuicionismo é uma definição formal e nada tem de substancial como por exemplo «socialismo» ou «liberalismo». Designa apenas uma forma gnosiológica: a intuição, que pode ser empírica ou intelectual. Em que é que o intuicionismo, se o concebermos como mera forma ou «tinta» aplicada ao «vaso» substancial do perfeccionismo, desvirtua este? Nestes problemas de terminologia, que são, afinal, problemas conceptuais, naufraga a clareza de John Rawls, que não possui um pensamento autenticamente dialético
Por que razão o kantismo, que Rawls designa por idealismo, não é classificado como doutrina teleológica ( télos=fim, finalidade , em grego) se o imperativo categórico ou verdadeira lei moral se dirige às pessoas, universalmente consideradas como fins em si mesmas? E por que razão o kantismo não é classificado como um perfeccionismo?
A SUPOSTA INDEPENDÊNCIA DE RAWLS FACE ÀS MORAIS NATURALISTAS E NÃO NATURALISTAS
Rawls esforça-se por demonstrar que a sua moral não é naturalista nem supra-naturalista (concebida na metafísica divina ou na pura racionalidade anti naturalista, à maneira de Kant por exemplo).
«Os filósofos tentam normalmente justificar as teorias éticas por uma de duas formas. Por vezes, tentam encontrar princípios evidentes por si mesmos, a partir dos quais derivam um conjunto suficiente de critérios e de preceitos para explicar os nossos juízos ponderados. Podemos pensar numa justificação desta natureza como sendo cartesiana. Ela presume que os primeiros princípios podem ser vistos como sendo verdadeiros, ou mesmo como necessariamente verdadeiros; o raciocínio dedutivo transfere depois esta convicção das premissas para a conclusão. Uma segunda abordagem (designada naturalista por abuso da linguagem) consiste em introduzir definições de conceitos morais em termos de conceitos presumivelmente não morais, para depois demonstrar através de processos aceites, relevando do senso comum e das ciências, que os enunciados associados aos juízos morais defendidos são verdadeiros. Embora nesta concepção os primeiros princípios da ética não sejam evidentes em si mesmos, a justificação das convicções morais não coloca dificuldades especiais. Estes princípios podem ser estabelecidos, sendo dadas as definições, da mesma forma que outros enunciados sobre o mundo.
«Não adoptei qualquer destas concepções da justificação. Embora certos princípios morais pareçam naturais, verdadeiros, e até óbvios, há grandes obstáculos à afirmação de que eles são necessariamente verdadeiros, e até na explicação do significado desta afirmação. Na verdade, defendi que estes princípios são contingentes, no sentido em que são escolhidos na posição original à luz de factos gerais.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pags 434-435)
Aquilo que Rawls teoriza, isto é o liberalismo social, um híbrido de liberalismo (predomínio das empresas privadas na economia de mercado) e social-democracia (redistribuição a favor dos mais pobres, na economia de mercado, mediante impostos sobre os ricos, em especial o imposto de consumo) é naturalismo sociológico: as leis e normas sociais são estabelecidas por cidadãos livres, cada um coberto pelo «véu da ignorância» acerca das diferenças de riqueza, de talento laboral, empresarial, artístico, político, etc, mas são estabelecidas num contexto histórico ideal e geram uma dada formação histórico-social a partir de princípios, ao menos em parte, empiricamente definidos, isto é, extraídos da natureza humana social.
A moral de Rawls é um híbrido de naturalismo e não naturalismo, com predominância do primeiro.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Habermas é um pensador hermenêutico - a hermenêutica é a interpretação contextualizada, historicizada, privilegiando o discurso dos sujeitos subjectivos - ao passo que Foucault era um pensador estruturalista o estruturalismo é uma arquitectura de estruturas de pensamento e modos de ser, eliminando o sujeito subjectivo.
É interessante ver como Habermas critica Foucault ,a quem no texto seguinte classifica de historiógrafo genealogista.
«1. Como vimos, Foucault quer eliminar a problemática hermenêutica e, assim, a auto-referencialidade que se manifesta com uma abordagem interpretativa do domínio do objecto. O historiógrafo genealogista não deve proceder como o hermeneuta, não deve tentar tornar compreensível aquilo que os actores fazem e pensam, a partir de um contexto tradicional entrelaçado na autocompreensão dos actores. Ele deve, antes, elucidar o horizonte dentro do qual tais manifestações podem aparecer dotadas de sentido de sentido partindo de práticas subjacentes. Deve, por exemplo, explicar a proibição dos combates dos gladiadores na Roma tardia, não como devida à influência humanizante do Cristianismo, mas à dissolução de uma formação de poder substituída pela seguinte. No horizonte do novo complexo de poder de Roma posterior a Constantino é, por exemplo, perfeitamente natural que o soberano já não trate o povo como um rebanho de carneiros que têm de ser acautelados, mas como um bando de crianças que precisam de ser educadas - e não se pode deixar que as crianças se entreguem descuidadamente a espectáculos sangrentos. Os discursos que fundamentaram a organização ou a abolição dos combates de gladiadores não passam de um disfarce de uma prática de dominação inconsciente que lhes está subjacente. Enquanto fontes de todo o sentido, tais práticas são em si mesmas destituídas de sentido; o historiador tem de as abordar do exterior, para lhes apreender a estrutura. Neste contexto, não há necessidade de nenhuma pré-compreensão hermenêutica, mas tão somente do conceito de história como mutação formal destituída de sentido e caleidoscópica de universos discursivos que nada têm de comum senão o serem protuberâncias do poder em geral. »
«Relativamente à pretensão obstinada à objectividade que acompanha a auto-compreensão, basta um relance de olhos a qualquer dos livros de Foucault para se ficar a saber que o historiador radical só pode explicar as tecnologias do poder e as práticas de dominação comparando-as umas com as outras - e de modo nenhum pode explicar cada uma delas como uma totalidade a partir de si própria.»
(Jürgen Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade, Publicações Dom Quixote, pag 260-261; o negrito é posto por nós).
O combate entre a hermenêutica, que dá voz às subjectividades situadas no seu tempo, espaço e circunstância psicológica particular, e o estruturalismo positivista de Foucault, que se centra na sobreposição das radiografias das diferentes culturas e formas sociais históricas eliminando o particular e o subjectivo de cada uma, é uma modalidade do combate entre o empirismo, que colhe as sensações, os sabores, os odores, e o empirismo, que despreza as sensações, as interpretações subjectivas, em favor de um esquematismo universal.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Habermas, filósofo alemão da Escola Crítica de Frankfurt, nascido em 1929, entende a racionalidade de forma holística: recusa separá-la em dois continentes, o formal e o substancial. Nesse sentido, critica Max Weber.
«O potencial racional comunicativo é simultaneamente desenvolvido e alterado no decorrer da modernização capitalista. »
«A simultaneidade e a interdependência paradoxais dos dois processos só é possível quando se vencer a falsa alternativa que Max Weber estabeleceu entre racionalidade substancial e formal. Parte-se aqui do princípio de que o desencantamento (Entzauberung) de imagens religiosas e metafísicas do mundo da racionalidade juntamente com os conteúdos das tradições, rouba todas as conotações de conteúdo e assim também todas as forças para, além da organização teleologicamente racional dos meios, poder ainda exercer uma influência estruturante no mundo da vida. Em oposição a isto gostaria de insistir em que a razão comunicacional, apesar do seu carácter puramente processual, aliviado de todas as hipotecas religiosas e metafísicas, está directamente implicada no processo de vida social e que os actos de compreensão tomam conta dos actos de um mecanismo coordenador da acção. O tecido de acções comunicativas alimenta-se de recursos do mundo da vida e é, ao mesmo tempo, o médium através do qual se reproduzem as formas de vida concretas.» (Jürgen Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade, Publicações Dom Quixote, pag 292; o negrito é posto por nós).
Habermas sublinha igualmente o carácter circular do agir comunicacional:
«Na teoria do agir comunicacional o processo circular, que encerra o mundo da vida e a praxis comunicativa quotidiana, ocupa o lugar de mediador que Marx e o marxismo ocidental tinham reservado à praxis social.» (Habermas, ibid, pag 293; o destaque a negrito é nosso).
E sustenta que a razão comunicacional não elimina o erro mas partilha-o, socializa-o, do mesmo modo que partilha e socializa a verdade rectificadora.
«A razão comunicacional faz-se valer na força de coesão da compreensão intersubjectiva e do reconhecimento recíproco. No seio deste universo não é possível separar o irracional do racional do mesmo modo que, em Parménides, é separado o não-saber daquele saber que domina, como simplesmente afirmativo, sobre o que é o nada. Na sequência de Jakob Böhme e de Isaac Luria, Schelling afirma com razão que o erro, o crime e a ilusão não são irracionais mas sim manifestações da razão às avessas.» (Habermas, ibid, pag 299; o negrito é nosso).
A noção de praxis é reinterpretada por Habermas. Muito mais do que um agir instrumental, a praxis é um agir comunicacional que produz saber que permite transformar o mundo.
«Quando se reformula o sentido de praxis no sentido de agir comunicacional com o auxílio deste conceito de língua, as marcas universais da prática não se limitam só ao legein e teukein, isto é, às condições (que precisam de interpretação) para o contacto com uma natureza que se encontra no circuito de funções do agir instrumental. A praxis opera então muito mais à luz da razão comunicacional que impõe aos participantes na interacção uma orientação para as exigências de validação tornando assim possível uma acumulação de saber que transforma o mundo.» (Habermas, ibid, pag 307).
Embora recolhendo o contributo de Marx, Habermas diverge deste no conceito de praxis social. Entende esta não como actividade produtiva material mas como a interacção circular entre o mundo da vida, dividido em cultura, sociedade e pessoa, e o agir comunicacional
«Nem mesmo Marx escapou ao pensamento da totalidade de Hegel. Isto altera-se se a praxis social não for mais pensada socialmente como processo de trabalho.»
«Com os conceitos que se complementam reciprocamente do agir comunicacional e do mundo da vida é introduzida uma diferença entre determinações que- diferentemente da diferença entre trabalho e natureza - não reaparecem como momentos numa unidade superior. É certo que a reprodução do mundo da vida se nutre de contribuições do agir comunicacional, enquanto que este depende por sua vez do mundo da vida. Este processo circular não deve representar-se segundo o modelo da autocriação como uma produção a partir dos seus próprios produtos, nem mesmo associado à auto-realização. » (Habermas, ibid, pag 314).
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No seu livro «Ética sin moral», na busca de sistematizações conceptuais perfeitas, a filósofa espanhola Adela Cortina joga com três conceitos num mesmo plano da ética: formalismo, procedimentalismo e substancialismo.
«Contamos - dirá Habermas - com teorias da justiça construídas procedimentalmente que, situadas na tradição kantiana, dão maior credibilidade ao ponto de vista defendido: o neocontratualismo rawlsiano, «decisionista» em excesso, no parecer de Habermas; a kolhbergiana teoria do desenvolvimento da consciência moral, suficientemente «empática» para o gosto habermasiano por servir-se da assunção do papel, e a ética discursiva, que se sente mais próxima de Kant por nos apetrechar de um proceder argumentativo na formação racional da vontade, mas que acredita superar Kant porquanto a universalidade proposta é procedimental e não meramente formal. Nestas três posições demonstra-se que o direito procedimental e a ética postconvencional remetem um para o outro, evitando os inconvenientes do jusnaturalismo material.»
(Adela Cortina, Ética sin moral, Tecnos, Madrid, pags 176-177, traduzido do castelhano e destacado em negrito por nós)
Neste texto acima, a autora opõe o procedimental ao formal, atribuindo este a Kant.
«Mas prescindir da bondade da intenção, desinteressar-se do que faz moralmente bom um móbil - que o converte em móbil moral - e deslocar o interesse ético exclusivamente para o que faz correcta uma norma situa - no meu parecer - a ética e a moral num lugar bem precário. Parece que a interioridade do formalismo não se supera, conservando-a, mas se abandona em proveito da exterioridade do procedimentalismo.» (Adela Cortina, Ética sin moral, pags 191-192).
Neste segundo texto, Adela Cortina opõe o formalismo, pelo seu interiorismo, isto é por nascer e se mover na pura subjectividade de cada um - como é o caso de Kant, cuja ética autoriza a formação de imperativos categóricos contrários entre si, segundo os indivíduos, como por exemplo: «Dá sempre esmola a um mendigo pois gostarias que tal fosse lei universal da natureza» e «Nunca dês esmola a mendigos pois isso suscita a indignidade humana» - ao procedimentalismo, que acaba por ser exteriorismo, uma vez que parte simultaneamente da esfera da reflexão interior e da esfera da interacção exterior - como é o caso de Habermas, pensador misto de neomarxismo e neokantismo, com a sua ética procedimental do diálogo em que a autonomia de cada indivíduo se conjuga com a de outros.
A contradição surge, no entanto, na seguinte passagem do livro de Adela Cortina:
«É necessário, pois, pronunciar de novo o «zurück zu Kant - e recuperar - ainda que transformando-o - o procedimentalismo ético de Kant» (Adela Cortina, Ética sin Moral, pags 219-220).
Mais acima, a ética de Kant era definida como formalismo e este indicado como oposto ao procedimentalismo. Agora, Kant é designado como procedimentalista. Há, pois, um deslizar na fixidez do conceito de procedimentalismo por parte de Adela Cortina.
O que é o procedimentalismo? Se não é um formalismo puro, será um formalismo, no que respeita a conteúdos de bens morais, adicionado a um substancialismo de regras de diálogo social?
«Sem embargo, as éticas deontológicas, procedimentalistas e de princípios, que vieram à luz através da Grudlegung e da Crítica da Razão Prática, mantêm hoje uma pujança não alcançada desde a época de Kant. Apesar das críticas procedentes do neoaristotelismo e do neohegelianismo; apesar dos ataques surgidos do neonietzschianismo , as éticas deontológicas e de princípios ocupam hoje um lugar privilegiado» .
«Sem embargo, no juízo dos neoaristótélicos, as éticas procedimentais fracassaram. No melhor dos casos, Charles Taylor concede que pode manter-se o potencial destas éticas, com tal que se reconstruam a partir de uma ideia do bom, com a qual se lograria mediar as éticas procedimentais com as substanciais.» (Adela Cortina, Ética sin moral, Tecnos, pags 220-221).
Decerto, infere-se que o neoaristotelismo e o neohegelianismo são éticas substancialistas, ao passo que o kantismo não. Mas um problema permanece: formalismo é procedimentalismo? Em um trecho, Adela afirma que não, e em outro sustenta que sim.
Há, pois, uma contradição na sistematização de Adela, filósofa que, contudo, nos parece superior aos teóricos ingleses, australianos e norte-americanos da ética como James Rachels, Peter Singer, Michael Smith, Richard M.Hare e outros.
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