Depois de escrevermos neste blog artigos atacando o formalismo do Modus Tolens e do Modus Ponens e a grande mentira da lógica proposicional, veio um dos arautos desta em Portugal, Desidério Murcho, publicar no De Rerum Natura um artigo «contra» o formalismo no ensino, em 4 de Julho passado.
A primeira característica do artigo de Murcho é a sua incapacidade de definir formalismo. Começa por identificá-lo como autoritarismo associado a incapacidade de explicar a razão de ser das coisas. Escreve D.M:
«Não é fácil fazer um diagnóstico iluminante do formalismo, mas pelo menos as seguintes parecem propriedades dominantes:
1) Incapacidade para explicar realmente a razão de ser das coisas. Em vez disso, afirma-se categórica e autoritariamente que é assim e pronto. Por exemplo, em vez de se explicar cuidadosamente por que razão a multiplicação de um número positivo com um negativo dá um número negativo, limitamo-nos a fazer os estudantes decorar que mais com menos dá menos. É por causa deste aspecto que muitos partidários do eduquês se insurgem contra a memorização, mas isto é um disparate (que resulta precisamente de formalismo, ironicamente). Aquilo que qualquer especialista competente da educação sabe e afirma é que a memorização não pode substituir a compreensão, e não que a memorização tem de ser eliminada do sistema de ensino. Mas como os maus técnicos de educação sofrem eles mesmos de formalismo, não sabem muito bem por que razão devemos ser contra a memorização, e acabam por trocar as tintas.» (D.Murcho, O Formalismo no Ensino)
É bom que se note a pirueta acrobática de Murcho: passou anos a combater a memorização, que identificava com a história da filosofia, em nome do raciocínio livre, mas agora rectifica e concede importância à memorização. Desidério é, não o esqueçamos, o grande propagador em Portugal da ideia errónea de que «a história da filosofia nada tem que ver com a filosofia», ideia que se enraízou na grande maioria dos professores de filosofia, superficiais no raciocínio e no espírito crítico.
Depois Desidério Murcho identifica formalismo com "incapacidade de escolher os conteúdos mais importantes". Continua ele a descrever assim o formalismo:
«2) Incapacidade para escolher os conteúdos relevantes. Em qualquer área de estudos há pormenores que nunca mais acabam. (D.M. , Formalismo no Ensino)
Comentário nosso: Nada disto designa especificamente o que é o formalismo. A incapacidade de escolher conteúdos relevantes é própria de muitas posições substancialistas, anti formalistas.
Continua D.M tentando esboçar o que entende por formalismo:
«3) Incapacidade para fazer perguntas com elevado grau de discriminação cognitiva. (Por grau de discriminação cognitiva refiro aqui a capacidade para distinguirmos os estudantes que compreendem realmente as coisas dos que não as compreendem mas as memorizaram.) Ao fazer exames o formalismo reaparece. Como? Fazendo-se perguntas que não testam realmente a compreensão que o estudante tem das matérias ou das metodologias, mas antes a mera memorização acéfala. O que significa que os alunos podem acabar os seus estudos com óptimas classificações sem no entanto fazerem a mais pequena ideia da realidade do que estudaram: aprenderam apenas a memorizar e repetir mantras sem sentido. » (D.M.)
Comentário: Apesar de ter razão na crítica feita aos exames, Desidério Murcho confunde memorização mecânica, ininteligente, com formalismo. Ora a memorização mecânica pode ser substancialista, isto é, estar repleta de conteúdos teóricos decorados, sem ligação viva entre si...
Prossegue D.M na sua nebulosa caracterização do formalismo:
«4) Transposição para o ensino do formalismo herdado. Muitos de nós fomos educados no formalismo, nomeadamente académico: dissertações de mestrado e doutoramento que nada realmente dizem, que são meros resumos do que outros escreveram, sem que o autor compreenda realmente o que está a resumir; aulas intermináveis na faculdade em que o professor só está preocupado em fingir-se superior mas quase nada do que diz ele compreende cabalmente; repetição acéfala dos chavões académicos da moda ("paradigma", "construção", "identidade", etc.) sem que se pare para pensar no que estamos realmente a dizer. Como quase todos fomos vítimas deste ensino, é natural que ao ensinar perpetuemos a fraude. » (D:M. , Formalismo no ensino).
Comentário nosso: as dissertações académicas são, em regra, substancialistas e não formalistas. Desidério não percebe, de facto, o conceito de formalismo, confunde-o, aparentemente, com formalismo hierárquico (títulos universitários, graus na carreira académica).
FORMALISTA ESCONDIDO DE RABO DE FORA
Afirmar como Desidério Murcho e o seu grupo que «os argumentos não são verdadeiros nem falsos, são apenas válidos e inválidos» é formalismo. É despir a paisagem da verdade das suas cores, sons, cheiros e sabores, é retirar-lhe a substancialidade, e reduzi-la a meras formas abstractas. É substituir o pensamento vivo por fórmulas abstractas decoradas. Murcho não identifica o que é realmente o formalismo porque se o identificasse estaria a atacar-se a si mesmo. Gato escondido com rabo de fora...
Os formalistas afirmam, com base no argumento da autoridade, que «está errado o seguinte raciocínio»:
«Se estou na América do Sul, visito o Brasil».
«Não estou na América do Sul».
«Logo, não visito o Brasil».
Ao contrário, sustento que este raciocínio é absolutamente válido e que a regra geral do modus tollens inválido, invocada por Murcho e outros para classificar este raciocínio, está errada.
Aquilo que Desidério Murcho não diz é que o formalismo no ensino é a sobrevalorização da lógica formal, aristotélica, interproposicional ou outra. E que ele, Murcho e o seu grupo, são impulsionadores desse formalismo, em detrimento da lógica informal, do substancialismo vivo das ideias e teorias. Fizeram-no aliás em obediência à corrente tecnocrática europeísta que visa desideologizar o ensino, retirando-o, por um lado da planície da metafísica tradicional (Aristóteles, Platão, Lao Tse, Tomás de Aquino. etc) ou contemporânea (Heidegger, Sartre, etc) e por outro lado da filosofia da revolução social (Marx, Bakhounine, Guy Debord, Marcuse, etc).
Se hoje muito dos nossos alunos são analfabetos no que se refere a conhecer as ideias de Platão ou de Marcuse, a discutir política e a discernir o carácter ideológico das ciências e a perceber os mecanismos alienantes da sociedade de consumo devem-no, em parte, a Desidério Murcho e aos que como ele tudo fizeram para hipertrofiar a lógica formal e a argumentação nos programas de filosofia do 10º e 11º ano, substituindo o movimento vivo e historicizado das ideias pelas «tabelas de verdade» e regras vazias da lógica proposicional.
Nota: Nos artigos que assina, Desidério Murcho faz questão de apontar como sua profissão... filósofo. Falta-lhe, sem dúvida, modéstia e sentido da realidade: filósofo não é uma profissão mas uma condição à qual não acede quem quer mas quem pode, isto é, aquele a quem os deuses ou o destino conferiram uma inteligência em elevado grau. Ora Murcho, sem embargo de ser trabalhador e ter obra como tradutor e autor de manuais, é de mediana inteligência - ou médio-elevada, no máximo - e não possui estatura intelectual ou obra original que o credencie como um filósofo no sentido estrito da palavra. É um professor de filosofia e cronista que reproduz como «seu» muito do que lê e traduz. E é igualmente um membro de um lobby editorial que ganha muito dinheiro com a obrigatoriedade de imposição do mesmo manual escolar durante 6 anos nas escolas secundárias de Portugal. O que lhe falta em capacidade filosófica sobra-lhe em habilidade de marketing de produtos filosóficos de fraca qualidade para a grande massa e em capacidade de silenciar, nos media, na medida em que puder, os que na área da filosofia lhe destapam as incoerências e limitações.
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Usar um cartão de crédito ou obter um empréstimo para compra de habitação é um acto antecipador de ser. O empréstimo torna presente, confere a categoria de ser (presente) a um projecto ou ideia que se encontrava no não ser. Ao mesmo tempo que corporiza ser na forma de dinheiro emprestado, reenvia esse ser ao futuro - que, aparentemente, é ser em potência - ao pagamento de juros e amortizações que irá tendo lugar em cada um dos próximos meses ou anos.
Assim se detecta como o tempo desloca ser, através do dinheiro e do seu pagamento diferido. O tempo permite distribuir o ser, operacionalizá-lo. Mas é o tempo ser? É o tempo ser em potência ou apenas o invólucro que permite a manifestação do ser?
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