Quem disser que Kant não se contradiz na "Crítica da Razão Pura" não conseguiu penetrar na floresta do seu sistema ontognosiológico e aperceber-se de que o pensamento kantiano sofre fracturas por não ter um centro de gravidade único.
O NÚMENO É A COISA EM SI
Um primeiro ponto a assentar na interpretação de Kant: númeno é o mesmo que coisa em si.
«O nosso entendimento recebe, deste modo, uma ampliação negativa, porquanto não é limitado pela sensibilidade, antes limita a sensibilidade, em virtude de denominar os númenos as coisas em si (não consideradas como fenómenos).» ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 271).
«O conceito de um númeno, isto é, de uma coisa que não deve ser pensada como objecto dos sentidos, mas como coisa em si (exclusivamente por um entendimento puro), não é contraditório, pois não se pode afirmar que a sensibilidade seja a única forma possível de intuição. Além disso, este conceito é necessário para não alargar a intuição sensível até às coisas em si e para limitar, portanto, a validade objectiva do conhecimento sensível (pois as coisas restantes, que a intuição sensível não atinge, se chamam por isso mesmo númenos, para indicar que os conhecimentos sensíveis não podem estender o seu domínio sobre tudo o que o pensamento pensa). Mas em definitivo não é possível compreender a possibilidade de tais númenos e o que se estende para além da esfera dos fenómenos é (para nós) vazio; quer dizer, temos um entendimento que, problematicamente, se estende para além dos fenómenos, mas não temos nenhuma intuição, nem sequer o conceito de uma intuição possível, pelo meio do qual nos sejam dados objectos fora do campo da sensibilidade e assim o entendimento possa ser usado assertoricamente para além da sensibilidade.»
(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 270; o bold é de nossa autoria).
Assim o entendimento, denominado, nesta vertente idealizadora do númeno, razão noutras partes da CRP, pensa o númeno
Note-se que o númeno é uma coisa, não um conceito. Logo essa coisa há-de ter, na espacialidade ideal abstracta, um lugar: dentro de nós, fora de nós ou fora e dentro em simultâneo. As noções de dentro-fora e limite entre dentro e fora são categorias do pensamento e não apenas da sensibilidade. Algo que não está em lugar nenhum é algo que está fora, idealmente pensando.
Kant admite o sujeito enquanto númeno e aqui númeno adquire um sentido de objecto interno ao espírito humano no que se refere à causalidade da acção moral:
«Pelo seu carácter inteligível porém (embora na verdade dele só possamos ter o conceito geral) teria esse mesmo sujeito de estar liberto de qualquer influência da sensibilidade e de toda a determinação por fenómenos; e como nele, enquanto númeno, nenhuma mudança acontece que exija uma mudança dinâmica de tempo, não se encontrando nele, portanto, qualquer ligação com fenómenos enquanto causas, este ser activo seria, nas suas acções, independente e livre de qualquer necessidade natural como a que se encontra unicamente no mundo sensível.»
(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 468).
Assim o númeno, nesta perspectiva realista do entendimento, nunca é um conceito, mas sim uma coisa ideal, pensante ou não, interior ou exterior ao homem.
A COISA EM SI AFECTA A SENSIBILIDADE PARA PRODUZIR NELA O FENÓMENO, É CAUSA DESTE
A coisa em si é o objecto da intuição - não o objecto que a intuição nos dá mas aquele que se encontra "por detrás" deste - conforme se depreende do seguinte:
« Modo que se denomina sensível, porque não é originário, quer dizer, não é um modo de intuição tal que por ele nos seja dada a própria existência do objecto da intuição (modo que se nos afigura só poder pertencer ao Ser supremo), antes é dependente da existência do objecto e, por conseguinte, só possível na medida em que a capacidade de representação do sujeito é afectada por esse objecto.»
(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 362).
«Sejam quais forem o modo e os meios pelos quais um conhecimento se possa referir a objectos, é pela intuição que se relaciona imediatamente com estes e ela é o fim para o qual tende, como meio, o pensamento. Esta intuição, porém, apenas se verifica na medida em que o objecto nos for dado; o que, por sua vez, só é possível (pelo menos para nós, homens) se o objecto afectar o espírito de certa maneira.
(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 61; o bold é nosso).
Se o objecto afecta o espírito, é porque se encontra, em princípio, fora deste. Ora sendo o espírito humano composto por sensibilidade, entendimento e razão, o objecto de que aqui se trata não é a coisa para nós ou fenómeno (casa, lâmpada, mão, nuvem) que é interno à sensibilidade que se projecta fora do meu corpo mas sim a coisa em si.
Assim a coisa em si afecta o nosso espírito para fazer nascer dentro deste, com a ajuda do espaço e do tempo, formas a priori da sensibilidade, o fenómeno (casa, árvore, nuvem, mar, etc).
Vejamos agora se a coisa em si está dentro ou fora do nosso espírito.
QUANDO KANT DEFINE A COISA EM SI (NÙMENO) COMO OBJECTO FORA DE NÓS
Sendo dado que númeno e coisa em si são o mesmo, atente-se na seguinte definição de Kant :
«Porque, entretanto, a expressão fora de nós traz consigo um equívoco inevitável, significando ora algo que existe como coisa em si, distinta de nós, ora algo que pertence simplesmente ao fenómeno exterior, para colocar fora de incerteza este conceito tomado neste último sentido, que é aquele em que propriamente é tomada a questão psicológica respeitante à realidade da nossa intuição externa, distinguimos os objectos empiricamente exteriores daqueles que poderiam chamar-se assim no sentido transcendental, designando-os por coisas que se encontram no espaço».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 352).
Nesta definição acima, postula-se que a expressão fora de nós pode significar coisa em si (númeno) ora pode indicar fenómeno exterior (algo que está no nosso sentido externo mas que não extravasa a sensibilidade). Logo, nesta passagem, o númeno é definido como objecto fora de nós.
«Deve, portanto, haver certamente algo fora de nós a que corresponde esse fenómeno que chamamos matéria. Porém, na qualidade de fenómenos, não está fora de nós, mas simplesmente em nós, como um pensamento, se bem que esse pensamento o represente, pelo chamado sentido externo, como situado fora de nós.» ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 362; o bold é nosso).
O espaço não está fora de mim ( entendido o mim como união corpo físico-espírito): está sim, na sua quase totalidade, fora do meu corpo físico mas sempre dentro do balão infinitamente grande que é a minha sensibilidade envolvente do corpo físico, balão que engloba as nuvens, as estrelas, as galáxias, o céu e a terra:
«Simplesmente, o próprio espaço, com todos os seus fenómenos como representações, só existe em mim; mas, nesse espaço, contudo, é dado o real ou a matéria de todos os objectos da intuição externa, verdadeira e independentemente de toda a ficção; e é também impossível que, nesse espaço, seja dada qualquer coisa de exterior a nós (no sentido transcendental), porque o próprio espaço nada é fora da sensibilidade.» Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 354; o negrito é colocado por nós).
No Prefácio à Segunda Edição da "Crítica da Razão Pura" Kant refere uma coisa em si, distinta de mim, que terá de ser simultaneamente exterior a nós, ao menos em parte:
«A representação de algo permanente na existência não é idêntica à representação permanente, porque esta pode ser muito variável e mutável, como todas as nossas representações, mesmo as representações da matéria, e contudo refere-se a algo de permanente, que tem de ser uma coisa distinta de todas as representações e exterior a mim, cuja existência está incluída necessariamente na determinação da minha própria existência, constituindo com ela uma única experiência, que nem sequer poderia realizar-se internamente se não fosse (em parte) simultaneamente exterior. ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 33-34, nota; o bold é de nossa autoria).
QUANDO KANT AFIRMA QUE O NÚMENO PODE ESTAR DENTRO OU PODE ESTAR FORA, SER UM CORRELATO DA SENSIBILIDADE OU NÃO
«O entendimento pensa um objecto em si, mas apenas como um objecto transcendental que é causa do fenómeno (e por conseguinte não é, ele próprio fenómeno) mas que não pode ser pensado nem como grandeza, nem como realidade, nem como substância, etc (porque estes conceitos exigem sempre formas sensíveis em que determinam um objecto). É por isso que ignoramos totalmente se está dentro ou fora de nós e se seria anulado conjuntamente com a sensibilidade ou se, abolida esta, permaneceria. É-nos lícito, se quisermos, dar a esse objecto o nome de númeno, porque a sua representação não é sensível.» ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 291; o bold é de nossa autoria).
Nesta passagem, uma vez mais se afirma o objecto númeno como causa de um fenómeno. Contudo, já não se postula categoricamente «deve existir fora de nós um objecto» mas deixa-se na indeterminação o «lugar» ideal do númeno: dentro ou fora.
E QUANDO KANT AFIRMA A IMPOSSIBILIDADE DE EXISTÊNCIA DO NÚMENO
Do ponto de vista da sensibilidade, o númeno não existe, pura e simplesmente. Adoptando este ponto de vista, Kant produz os seguintes excertos:
«O conceito de um númeno é, pois, um conceito-limite para cercear a pretensão da sensibilidade e, portanto, para uso simplesmente negativo. Mas nem por isso é uma ficção arbitrária, pelo contrário, encadeia-se com a limitação da sensibilidade, sem todavia poder estabelecer algo de positivo fora do âmbito desta.»
«A divisão dos objectos em fenómenos e númenos, e do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não pode pois ser aceite (em sentido positivo), embora os conceitos admitam, sem dúvida, a divisão em conceitos sensíveis e conceitos intelectuais, porque não é possível determinar um objecto para os últimos, nem considerá-los objectivamente válidos.»
(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 270-271).
Nesta passagem, Kant afirma a irrealidade do númeno.
«Não se pode também considerar que esse objecto seria o númeno, pois este significa afinal, o conceito problemático de um objecto para uma intuição e um entendimento totalmente diferente dos nossos e é, por conseguinte, ele próprio um problema. O conceito de um númeno não é, pois, o conceito de um objecto, mas uma tarefa inevitavelmente vinculada à limitação da nossa sensibilidade: a de saber se não haverá objectos completamente independentes desta intuição da sensibilidade, questão esta que só pode ter resposta indeterminada » (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 291).
Há aqui uma contradição com as passagens citadas acima que descrevem o númeno como objecto.
O problema de Kant é o da sua oscilação permanente, ambígua, entre a realidade e a irrealidade dos númenos, entre a intuição inteligível do entendimento, que situa o númeno fora de nós (e às vezes dentro) e a intuição sensível que situa o númeno em parte nenhuma, isto é, suprime-o. Assim, há dois centros de gravidade na definição problemática de númeno: o entendimento-razão e a sensibilidade. A definição não sai clara nos seus contornos, mas algo confusa como as imagens de duas fotografias de objectos diferentes sobrepostas.
IDEALISMO DOGMÁTICO E IDEALISMO CÉPTICO, UMA CONFUSÃO DE KANT
As confusões de Kant, a par do brilhantismo de várias das suas definições e conceitos, abundam na "Crítica da Razão Pura" .
«O idealista dogmático seria aquele que nega a existência da matéria, o idealista céptico aquele que a põe em dúvida. O primeiro pode apenas ser idealista, porque julga encontrar contradições na possibilidade de uma matéria em geral, e com este não temos por agora nada a fazer. (... ) O idealista céptico, porém, que ataca o princípio da nossa afirmação e considera insuficiente a nossa convicção da existência da matéria, que nós julgamos fundar sobre a percepção imediata, é um benfeitor da razão humana, na medida em que nos obriga a abrir bem os olhos nos mais pequenos passos da experiência comum e a não aceitar imediatamente, como posse bem adquirida, aquilo que talvez tenhamos apenas obtido por surpresa. (... ) Portanto, o idealismo céptico obriga-nos a recorrer ao único refúgio que nos resta, a saber, à idealidade de todos os fenómenos, idealidade que tínhamos demonstrado na Estética Transcendental, independentemente destas consequências que então não podíamos prever».
(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 355-357, nota).
Há nestas definições um erro de Kant: um céptico é um céptico, um idealista é um idealista. Não existe idealismo céptico. Todo o idealismo é dogmático, ainda que na sua génese haja um cepticismo instantâneo ("Duvido da realidade da matéria em si mesma") que se dilui na passagem ao dogma da idealidade/irrealidade da matéria. A definição correcta de idealismo é: teoria que reduz toda a realidade a ideias e percepções sensíveis, existentes quer dentro quer fora das consciências humanas. E o que Kant pretende designar por idealismo céptico não é mais que o fenomenismo de Hume ou seja, idealismo, porque nega a materialidade do mundo exterior .
Idealismo dogmático e idealismo céptico são expressões que designam a mesma coisa. Falta a Kant a clareza absoluta na distinção.
O OBJECTO TRANSCENDENTAL QUE, ORA É NÚMENO, ORA DEIXA DE SER
De um modo geral, Kant identifica númeno e objecto transcendental.
«O objecto transcendental, que está na base dos fenómenos externos, tanto como aquele que serve de fundamento à intuição interna, não é, em si, nem matéria, nem um ser pensante, mas um fundamento que nos é desconhecido, dos fenómenos que nos fornecem o conceito empírico, tanto da primeira como da segunda espécie.»
(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 357, nota).
Mas, numa das suas inflexões para os gelos da confusão de conceitos, distingue-os:
«O objecto a que reporto o fenómeno em geral é o objecto transcendental, isto é, o pensamento completamente indeterminado de algo em geral. Este objecto não se pode chamar o númeno pois dele não sei nada do que é em si e dele não possuo nenhum conceito, que não seja o de um objecto de uma intuição sensível em geral, que, portanto, é idêntico para todos os fenómenos. Não posso pensá-lo mediante categorias, pois estas só valem para a intuição empírica a fim de reconduzirem a um conceito do objecto em geral.»
É mais um erro de Kant.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Bertrand Russell não compreendeu o essencial da teoria do espaço, do tempo e da matéria em Kant, designada por Estética Transcendental. É espantoso que fraudes parciais, como a interpretação de Kant por Russell, sobrevivam nas universidades Cambridge e Oxford incluídas durante décadas ou séculos, e em livros universalmente difundidos. As cátedras universitárias não são imunes ao paralogismo, ao erro persistente, ao sofisma.
Escreveu Russell:
«Há aqui, como através de toda a teoria da subjectividade do espaço e do tempo em Kant, uma dificuldade que parece que ele não sentiu. O que me induz a estruturar os objectos da percepção como o faço, de preferência a outro modo? Por que razão, por exemplo, vejo sempre os olhos das pessoas acima das suas bocas e não abaixo delas? De acordo com Kant, os olhos e a boca existem como coisas em si, e causam as minhas percepções separadas, mas nada neles corresponde ao arranjo espacial que existe na minha percepção (Russell, History of Western Philosophy, Routledge, pag. 648; o negrito é de nossa autoria).
Russell interpreta Kant como se este fosse um realista crítico radical gnosiólogo que postula que há um mundo material exterior e invisível para mim e que o mundo que percepciono é uma ilusão representativa da realidade desconhecida e não um idealista como Kant, de facto, foi.
Kant nunca escreveu que os objectos da percepção, os fenómenos, como boca, olhos, cavalos ou árvores, existem em si mesmos: sustentou exactamente o contrário, os olhos e a boca existem em nós na nossa mente exterior como fenómenos.
Assim, de acordo com Russell:
1) Kant defenderia que não podemos conhecer a verdadeira boca e as verdadeiras árvores, porque são númenos, incognoscíveis. Conhecemos unicamente as sensações, que não correspondem aos objectos numénicos mas distorcem a captação destes..
A nossa crítica a Bertrand Russell é a seguinte: uma árvore, uma boca, um corpo humano, a Terra ou o céu não podem ser númenos porque possuem espaço e tempo e matéria incorporados em si e os númenos são coisas reais, imateriais, ideias, fora do espaço e do tempo. Os objectos da experiência (mesas, animais, casas, etc) não podem ser númenos, nem mesmo as suas essências (de mesas, animais, casas, etc) o podem ser. Russell estava tão preso ao empirismo orientado para uma ontologia realista que era incapaz de «esvaziar» a realidade exterior de objectos materiais com formas determinadas. Mas os númenos não têm nenhuma forma e não são compostos de matéria. Russell não compreendeu, como quase todos os catedráticos do mundo inteiro ainda hoje, que a doutrina de Kant supõe dois níveis da mente humana, a interior onde estão a sensação, o tempo, a percepção e a mente exterior onde se situa o mundo visível, o espaço, o conjunto dos fenómenos materiais, árvores, céu, rios, animais, etc..
De acordo com Kant:
1) Podemos conhecer a boca (a boca aparentemente real porque não existe outra boca atrás dessa) e as árvores, árvores aparentemente reais, reais na medida em que são criados pela nossa mente que está dentro e fora do nosso corpo. Certamente, a autêntica realidade última os númenos está atrás dos fenómenos, quer dizer, atrás das casas, pessoas físicas, mar, ruas, sol, nuvens, céu, estrelas, etc. Mas não há uma árvore numénica, nem uma boca numénica (como Russell supunha).
Vejamos como Kant distingue dois níveis de exterioridade nos objecto: a verdadeira exterioridade do númeno e a pseudo exterioridade do fenómeno, apenas exterior em relação ao corpo humano, distinção que Bertrand Russell, Simon Blackburn e milhares de outros catedráticos foram incapazes de conceber, dada a sua incompreensão do pensamento genuíno de Kant:
«Porque, entretanto, a expressão fora de nós traz consigo um equívoco inevitável, significando ora algo que existe como coisa em si, distinta de nós, ora algo que pretence simplesmente ao fenómeno exterior, para colocar fora de incerteza este conceito tomado neste último sentido, que é aquele em que propriamente é tomada a questão psicológica respeitante à realidade da nossa intuição externa, distinguimos os objectos empiricamente exteriores daqueles que poderiam chamar-se assim no sentido transcendental, designando-os por coisas que se encontram no espaço».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag 352).
Assim, todos os fenómenos (bocas, árvores, paisagens, etc) estão dentro da nossa enorme alma, contendo dentro em si o universo físico, e não fora dela como Russell supôs.
NÃO HÁ DOIS ESPAÇOS, MAS UM SÓ, NA DOUTRINA DE KANT
Russell supôs erradamente que a teoria de Kant sustenta a existência de dois espaços:
«Deixem-nos experimentar tentar considerar a questão levantada por Kant como pontos de vista sobre o espaço de maneira mais geral ( ) Similarmente, deve haver uma correlação entre o espaço como ingrediente nas percepções e o espaço como ingrediente no sistema das causas imperceptíveis das percepções» (Russell, History of Western Philosophy, pag 649-650).
É um erro! Kant nunca postulou dois espaços mas apenas um único no interior da nossa representação, mas Russell adultera o pensamento de Kant. Este escreveu:
«Simplesmente, o próprio espaço, com todos os seus fenómenos como representações, só existe em mim; mas, nesse espaço, contudo, é dado o real ou a matéria de todos os objectos da intuição externa, verdadeira e independentemente de toda a ficção; e é também impossível que, nesse espaço, seja dada qualquer coisa de exterior a nós (no sentido transcendental), porque o próprio espaço nada é fora da sensibilidade.» Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag 354; o negrito é colocado por nós).
O espaço é, pois, interior à sensibilidade, a qual extravasa o nosso corpo físico. Mesmo o papel desempenhado pelas formas na Teoria da Sensibilidade, de Kant, não foi compreendido correctamente por Russell:
«O que nos aparece na percepção, que chamamos um fenómeno, consiste em duas partes: a que é devida ao objecto, e à qual chamamos sensação, e a que é devida ao nosso aparelho subjectivo, que, diz ele, causa a multiplicidade que deve ser ordenada dentro de certas relações. A esta última parte chama a forma do fenómeno. Esta parte não é em si mesma sensação, e por consequência, é não dependente do acidente do meio envolvente; é sempre a mesma, desde que a transportamos connosco, e é a priori no sentido em que não depende da experiência.» (Russell, ibid, pag 646; o negrito é nosso).
Como pode Russell separar a sensação da multiplicidade e supor que esta deriva exclusivamente da forma a priori? O caos das sensações, produzido indirectamente pelos númenos e gerado dentro da sensibilidade, é múltiplo, antes de ser moldado pelas formas a priori. As formas são também múltiplas e, bem ao contrário do que Russell afirmou, não são sempre as mesmas, variam: certamente, as formas primitivas como triângulos, círculos, quadrados, são a priori e não mudam mas as formas das árvores, maçãs, montanhas, mar, ondas, corpos humanos, etc, são a posteriori , dependem da experiência, e mudam.
Nota: Este artigo foi enviado à revista Intelektu em Outubro de 2007 para eventual publicação, que foi recusada. Como "justificação" foi invocado por Sara Bizarro que «não publicamos história da filosofia»...Mas isto são ideias, raciocínios, fazem parte da própria essência da filosofia.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Apesar de servir para leccionar o programa de Filosofia do 11º ano de escolaridade em Portugal, o manual da editora A Folha Cultural «Este Amor pelo Saber», de Amândio Fontoura, Mafalda Afonso e Maria de Fátima Gomes, com supervisão de Alexandre Franco de Sá, inclui alguns erros teóricos que vamos explicitar.
EM KANT, OS DADOS DA SENSIBILIDADE NÃO APARECEM À RAZÃO, E A SENSIBILIDADE NÃO É "POSSIBILITADA" POR UMA FORMA A PRIORI
A gnosiologia de Kant é um dos pontos fracos deste livro cujos autores, como aliás 99% dos autores de manuais de filosofia, não compreendem a fundo o pensamento do filósofo alemão de Konisberg. Que diremos, no entanto, se nem o próprio Bertrand Russell era capaz de perceber o idealismo transcendental de Kant a quem classificava de filósofo "confuso"?
«Para Kant, os conceitos puros do entendimento devem organizar a experiência, tornando possível que os dados da sensibilidade apareçam à razão.» (Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 176).
Há aqui um equívoco: os dados da sensibilidade nunca aparecem à razão (Versnunft) , faculdade metafísica voltada para os númenos incognoscíveis - no sistema ontognosiológico de Kant - mas aparecem apenas ao entendimento (Verstand), faculdade intelectual que pensa o mundo físico com os seus objectos (fenómenos, como por exemplo, cadeiras, nuvens, planícies, corpos animais, etc).
Lê-se ainda no referido manual:
«A sensibilidade é então possibilitada, segundo Kant, pelo facto de a matéria das sensações ser organizada por uma forma a priori que possibilita as próprias sensações. Por exemplo, quando vemos uma mesa e, depois, uma cadeira que esteja perto dela, estes dois objectos não podem ser vistos senão enquadrados numa estrutura que permite o seu aparecimento. Esta estrutura é o espaço comum que eles ocupam...»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 175).
O equívoco da primeira frase é o seguinte: dizer que a sensibilidade é possibilitada por uma acção da forma a priori que consiste em organizar a matéria das sensações. Não. Há aqui brumas da confusão. A sensibilidade é as duas formas a priori (espaço e tempo puros), não é possibilitada por estas, não é um momento ou estrutura posterior a estas. A sensibilidade pura possibilita, sim, os objectos empíricos, materiais.
O IDEALISMO NÃO ENCERRA, NECESSARIAMENTE, TODA A REALIDADE NA CONSCIÊNCIA
Eis como o manual define idealismo:
«O idealismo: esta posição sustenta que não há coisas reais independentes da consciência. Segundo esta perspectiva, toda a realidade está encerrada na consciência do sujeito; as coisas são somente conteúdos da consciência; apenas os conteúdos da consciência são reais.»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 182; parte do bold é nosso).
Esta é uma definição parcialmente errónea de idealismo. Senão, vejamos: em Kant, os númenos ou coisas em si são coisas reais independentes da consciência e não são, sequer, conteúdos da consciência. Por outro lado, os conteúdos da consciência designados por fenómenos não são autenticamente reais. A doutrina de Kant é um idealismo transcendental e não encaixa mesmo nada na definição de idealismo dada no manual...
HÁ SUBJECTIVISMO COMPATÍVEL COM OBJECTOS INDEPENDENTES DA CONSCIÊNCIA
A definição de subjectivismo delineada neste manual é:
«O subjectivismo: nesta concepção, o fundamento do conhecimento está no sujeito; os princípios do conhecimento humano residem no sujeito, do qual depende a verdade do conhecimento, uma vez que este conhece de acordo com o conjunto das leis que lhe são inerentes. Nesta concepção, é o sujeito que produz o objecto, não havendo objectos independentes da consciência, pois todos são produto do pensamento.»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 182; parte do bold é nosso).
As águas sulfurosas da confusão conceptual são borbulhantes, neste texto. Confunde-se subjectivismo (percepção subjectiva da realidade interior ou exterior) com idealismo. A esmagadora maioria dos subjectivistas - Salvador Dali, Picasso, Mozart, e praticamente todos os artistas, escritores e intelectuais, além de muita gente simples do povo eram subjectivistas- acreditam na existência de objectos independentes do pensamento humano, simplesmente interpretam-nos de forma singular e intimista.
HÁ OBJECTIVISMO EM QUE O OBJECTO NÃO DETERMINA O SUJEITO
Eis como o manual define objectivismo:
«O objectivismo: segundo esta concepção, é o objecto que determina o sujeito ; o sujeito apenas recebe as características do objecto, fazendo uma mera reprodução destas em si ».
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 182; parte do bold é nosso).
É uma definição bastante imperfeita e sectorial de objectivismo. Na verdade, existe objectivismo sem existir sujeito ou sujeitos: é a teoria defendida por exemplo por Sartre em "O ser e o nada" ou por Alfredo Reis segundo a qual a consciência é ser material, não constitui um espelho ou uma caixa de ressonância psíquica àparte da matéria. E, segundo a concepção realista, há milhões de anos, antes de haver humanidade, havia objectivismo - realidades objectivas, em si mesmas, como a Terra e o sistema solar - sem haver sujeito.
AO DEFINIR REALISMO, NÃO BASTA DIZER QUE SUPÕE OBJECTOS REAIS FORA DA CONSCIÊNCIA
«O realismo é a posição epistemológica segundo a qual há objectos reais independentes da consciência...»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 182; parte do bold é nosso).
É uma definição insuficiente, esfumada entre azuis de imprecisão: também o idealismo transcendental de Kant sustenta que há objectos reais - os númenos - fora da consciência....Falta algo mais, de essencial, para definir realismo gnosiológico: a alusão à materialidade dos objectos.
A INCAPACIDADE DE DEFINIR FENOMENOLOGIA
Sobre fenomenologia, diz o manual:
«Para a fenomenologia, conhecer é aquilo que tem lugar quando um sujeito apreende um objecto e cabe-lhe clarificar o que significa ser o objecto de conhecimento, ser sujeito cognoscente, e o que resulta desta relação que é o conhecimento (...) O sujeito desloca-se da sua esfera para a esfera do objecto, de modo a apreender as características do objecto - que está fora do sujeito e possui características diferentes...»
(Amândio Fontoura, Mafalda Afonso, Maria de Fátima Gomes,«Este amor pelo saber», revisão científica de Alexandre Franco de Sá, A Folha Cultural, Lisboa, pag 163).
Esta é uma interpretação realista, inspirada num texto de Nikolai Hartman, que perverte a essência da fenomenologia. Não explica o que esta é. Aliás, nenhum manual de filosofia para o ensino secundário em Portugal sabe explicar, com clareza, o que é fenomenologia (perdão: o manual que redigi sabe, mas não foi publicado...). As teses de Heidegger da verdade como desocultação do ser, opõem-se àquela definição do manual, que nada mais é que a teoria da verdade como correspondência.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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