Estarão correctos aqueles que sustentam que a« filosofia é uma disciplina não empírica e não formal»?
Aires Almeida e Desidério Murcho definem do seguinte modo a filosofia (o negrito é de nossa autoria):
«A filosofia trata de problemas conceptuais e não formais.Como a matemática, a filosofia não é uma disciplina empírica, isto é, não trata de problemas que se possam resolver pela observação ou pela experimentação. Assim a filosofia não é uma disciplina como a física ou a história que são disciplinas empíricas. Contudo, ao contrário da matemática, a filosofia não se ocupa de problemas que possam resolver-se por meio de provas formais. Os problemas da filosofia só podem resolver-se por via da discussão racional, cuidadosa e sistemática.»
«É enganador pensar que os problemas da filosofia por serem de natureza conceptual não são verdadeiros problemas ou não são problemas reais. O problema de saber se o aborto é eticamente permissível não é menos real só porque é um problema conceptual.»
(in «Textos e Problemas de Filosofia», organização de Aires Almeida e Desidério Murcho, Plátano Editora, Lisboa, pags. 10-11)
Um dos erros latentes deste texto é opôr formal a conceptual. Formal não se opõe a conceptual: todo o conceito é uma forma espiritual. Opõe-se sim a substancial ou «material». Há conceitos formais - como o conceito de um, de dois, de três, de todo e de parte - e há conceitos substanciais - como o conceito ou ideia de cão, de árvore, de aborto, de mar, de espírito, de matéria...A filosofia trata obviamente de problemas formais na medida em que se converte em lógica clássica ou proposicional simbólica e em dialéctica.
Por exemplo, o problema da Unidade geradora da Multiplicidade é, em si mesmo, formal e conceptual.
Ao contrário do que sustentam Aires de Almeida e Desidério Murcho, a filosofia é uma disciplina simultaneamente empírica e meta-empírica, isto é, metafísica. Se não possuisse uma vertente empírica, a filosofia não poderia produzir nenhuma ciência empírica ou prática como aconteceu ao longo dos séculos - o átomo de Demócrito e Leucipo, da Antiguidade Clássica, é um conceito filosófico que evoluiu num sentido empírico a ponto de se lhe determinar substancialidade (hidrogénio, oxigénio, cobre..) e correspondente número de massa - nem tão pouco influiria na reformulação das ciências.
Na verdade, a filosofia trata de problemas que se podem resolver pela experimentação biotecnológica ou político-social. Por exemplo, a filosofia da autogestão das empresas como «a melhor forma de criar justiça social e riqueza» nasce de problemas empíricos, possui um carácter parcialmente empírico e pode ser testada empiricamente. Do mesmo modo, sucede com o aborto: a sensibilidade de cada pessoa , o seu lado empírico, influi na filosofia dessa pessoa àcerca do aborto voluntário. A filosofia é a ciência empírica ou hermenêutica que duvida de si mesma: será que a função faz o orgão, como dizia Lamarck? Serão os sonhos manifestações dos desejos, muitas vezes distorcidas, como dizia Freud? Serão as vacinas úteis à saúde ou causarão arterioesclerose, cancro e um debilitamento geral das defesas orgânicas?
Separar a filosofia da realidade empírica, negar-lhe vertente empírica, é próprio de uma visão antidialética do mundo, hiper-analítica, que fragmenta o que não pode ser dissociado.
Igualmente se equivocam Aires e Desidério ao sustentar que «a filosofia não se ocupa de problemas que possam resolver-se por meio de provas formais». Mas é óbvio que se ocupa disso! Os princípios da lógica clássica (identidade, não contradição, terceiro excluído, razão suficiente) não são senão mecanismos ou provas formais e a filosofia ocupa-se deles, inclui-os no seu arsenal de pensamentos. A filosofia ocupa-se de todos os problemas que constituem o cerne das ciências, lógicas, empírico-formais ou hermenêutico-sociais: o surgimento de qualquer dúvida ou profundidade especulativa numa ciência (por exemplo o pensamento de um matemático sobre se «dois adicionado a três é o mesmo que quatro adicionado a um») converte instantânea e automaticamente a certeza científica em filosofia.
O erro de Desidério e Aires reside em confundirem conceptual com metafísico ou racional-abstracto, como se depreende da seguinte passagem (o negrito no texto abaixo é nosso):
«Dizer que um problema é conceptual é só dizer que não é um problema susceptível de ser resolvido recorrendo à experiência ou ao simples cálculo - mas pode ser um problema real e importante. Acontece apenas que é um problema cuja solução depende fundamentalmente do pensamento incluindo a avaliação crítica de pontos de vista diferentes».
(in «Textos e Problemas de Filosofia», organização de Aires Almeida e Desidério Murcho, Plátano Editora, Lisboa, pags.11)
Um mecânico que se apercebe que é necessário mudar a rótula do sistema de rodas de um automóvel observou sensorialmente e concebeu - formou um conceito - intelectualmente a solução do problema. E vai resolver ou traduzir esse conceito empírico num acto experimental: a mudança da rótula.
Falta a Aires e Desidério a distinção entre conceito empírico e conceito meta-empírico ou metafísico. Se possuíssem essa noção, não se equivocariam, não usariam de forma espúria o termo «conceptual».
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O grupo III do Exame Nacional de Filosofia 714, de Julho de 2006 em Portugal, é tributário da defnição hiperanalítica, errónea, do conhecimento como «crença verdadeira justificada».
Vejamos o texto e as questões iniciais do grupo III desse Exame:
«Para sabermos alguma coisa, não basta adivinharmos, mesmo que acertemos, por maior que seja a confiança que depositemos no nosso palpite. Então, além da crença verdadeira, que mais é necessário para termos conhecimento? Não será ter provas? Isto é, para termos conhecimento, não será necessário estarmos ligados à verdade daquilo em que acreditamos por razões ou provas que temos para acreditar? E essas razões ou provas não terão de ser adequadas para justificarem a nossa crença?»
D.Kolak e R.Martin, Sabedoria sem Respostas: uma Breve Introdução à Filosofia, trad.port., Lisboa, Temas & Debates, 2004, p. 51 (adaptado)
1. Considere o texto.
1.1. Qual é a definição de conhecimento discutida no texto?
1.2. «Então, além da crença verdadeira, que mais é necessário para termos conhecimento? pergunta o autor.
Responda a esta pergunta, apoiando a resposta em um ou mais exemplos.»
Nos critérios de correcção da questão 1.2 deste Exame figura o seguinte:
-Para haver conhecimento, além de termos crenças verdadeiras, temos de ser capazes de justificá-las.
-Podemos ter crenças verdadeiras sobre algo, sem conseguirmos justificar tais crenças: por exemplo, quando jogamos às cartas, podemos acreditar que nos vai sair o ás de trunfo e isso acontecer de facto.
-Nesse caso temos uma crença verdadeira, mas não sabemos realmente que nos vai sair o ás de trunfo. (Comentário nosso: A frase é um absurdo, pois se há uma crença verdadeira, que apreende o objecto (verdade), sabemos realmente que nos vai sair o ás de trunfo...)
- Porém, podemos saber que nos vai sair o ás de trunfo por termos viciado as cartas nesse sentido: neste caso, a nossa crença além de verdadeira, é justificada.»
CONHECIMENTO NÃO IMPLICA, OBRIGATORIAMENTE, JUSTIFICAÇÃO, AO CONTRÁRIO DO QUE SUSTENTAM OS AUTORES DA PROVA
Para haver conhecimento não tem que haver, necessariamente, justificação. O conhecimento é um fluxo de intuições sensoriais e intelectuais que se afirmam por si mesmas, isto é, possuem a dose de dogmatismo indispensável para nos colocar na posse de certezas. Por exemplo, a percepção do sol, da côr azul do céu, do sabor de um beijo não implica conhecer teoria nenhuma científica (heliocentrismo, astrofísica em geral, biologia humana, etc) mas tão somente sentir: não precisam de justificação.
O conhecimento é a certeza. É o contacto entre o sujeito humano e um objecto material, ideal ou de outra natureza, intrínseco ou extrínseco ao sujeito. Essa é a definição correcta. A justificação - conjunto de inferências para fundamentar, estruturar e consolidar o conhecimento obtido por intuição - vem, em regra, depois das intuições cognoscentes. Essa justificação não é condição do conhecimento: é um conhecimento suplementar que se adiciona ao conhecimento originário, intuitivo, destituído de justificação.
Se algum estudante escrevesse na prova de Exame de Filosofia o que aqui escrevo, seria penalizado, segundo os critérios de correcção...
E no entanto, senhores inquisidores da «filosofia analítica», gente da Arte de (Não) Pensar, a Terra da definição de conhecimento move-se! Não está imóvel frente ao sol da «crença verdadeira justificada» com que nos quereis queimar os neurónios pensantes, usando as insígnias dos vossos barretes cardinalícios de mestres ou doutorados! Há mais e melhores definições de conhecimento além da vossa...
Há conhecimento erróneo, ilusório e conhecimento verdadeiro, empírico, empírico-racional, racional ou supra-racional.
Os mentores ideológicos desta prova - isto é os autores do manual de Filosofia do 11º ano A arte de pensar, da Didáctica Editora, Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão - não atingiram, sequer, a margem do rio do conhecimento filosófico, que é uma corrente holística indivisível , perspectivada desde vários ângulos em redor: não percebem que escravizar alunos e professores à definição, dada em 1963 pelo filósofo norte-amercano de segunda categoria Edmund Gettier (n. 1927), de conhecimento como «crença verdadeira justificada» é uma ditadura antifilosófica de sectários, de gente incapaz de pensar com profundidade.
Ora os testes de Exame Nacional de Filosofia têm de ser muito bem concebidos, com grande amplitude de pensamento e sabedoria, o que, seguramente, não foi o caso.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz
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