Heidegger oscila muitas vezes, de forma quase imperceptível, ao denominar a mesma realidade primordial como Ser (Sein, em alemão) ou como Ente (Seiendem). Ora existe uma diferença: ainda que no discurso heideggeriano Ente e Ser tenham muitas vezes o mesmo significado, o Ente é um pouco mais «corpóreo», concentrado, do que o Ser no sentido mais lato, que é o de existência geral e de conexão de essências.. Não esqueçamos que Ente é o que é, uma coisa ou um estado presente expresso no gerúndio «sendo», e Ser é um verbo multitemporal, que engloba o passado «foi», «foram» e o futuro «será», «serão».
Assim Heidegger escreveu:
«O ser-aí (Dasein) embora situado em pleno ente (Seiendem) e por ele [afectivamente] disposto está lançado como livre para poder-ser no meio dos entes (Seiende). ( ) Semelhante impotência (dejecção), porém, não é primordialmente o resultado da invasão do ser-aí (Dasein) pelo ente (Seiendem), mas determina o seu ser (Sein) (Martin Heidegger, «A essência do fundamento» (Vom Wesen des Grundes), Edições 70, Lisboa, Pág. 125; a letra negrita é colocada por mim).
Este discurso propicia uma pequena ambiguidade: o ente, citado em primeiro lugar, que dispõe o Dasein (cada homem) e no meio do qual este está, é o ser (Sein) referido em outros textos de Heidegger e difere profundamentes dos entes (Seiende), citados em segundo lugar, que são, por exemplo, cavalo, cama, automóvel, casa, cidade, rua, planície, rio, ar, céu; por outro lado, o ser (Sein) citado, em último lugar, é simultaneamente, a essência do homem ou ser-aí e a conexão dessa essência ao ente mais geral ou ser como transcendente.
O Ente (com E maiúsculo) é uma essência geral mas o Ser pode interpretar-se não só como essência geral mas como existência geral a existência não é presença apenas num plano material, é admissível a existência, isto é, realidade, de arquétipos, deuses, anjos, almas «humanas», diabos, etc., fora do plano material e ainda como essência particular (a essência do ente ser-aí, isto é cada homem; a essência da coisa ou ente diante dos olhos, isto é, da cadeira, do computador, do gato, da paisagem, etc).
Numa passagem de «Carta sobre o humanismo», como noutros textos, Heidegger coloca a palavra ser (Sein) onde, em outros textos, coloca «Ente» (Seindem):
«Mas o ser (Sein) que é o ser? Ser é o que é mesmo. Experimentar isto e dizê-lo, é a aprendizagem pela qual deve passar o futuro não é Deus, nem um fundamento do mundo.» (Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães Editores, Pág.67).
Esta oscilação no vocabulário heideggeriano, entre o ser como essência e o ser como conexão de essências e existência geral, volta-se contra o próprio Heidegger que escreveu:
«Toda a ontologia, por rico que seja e bem cravado que esteja o sistema de categorias de que disponha, resulta no fundo cega e um desvio da sua mira mais peculiar, se antes não esclareceu suficientemente o sentido do ser, por não ter concebido o esclarecê-lo como seu problema fundamental» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 21).
De facto, Heidegger nunca esclareceu explicitamente a acepção de ser no seus quatro sentidos: existência ou realidade geral (material, vital, energética ou espiritual), essência universal, conexão de essências, coisa (ente). Não faz estas distinções com clareza meridiana, não definiu cada uma delas, expondo-as num quadro sinóptico. E por isso mesmo, a sua ontologia falhou no esclarecimento do problema capital do tempo, ainda que ele tivesse a pretensão de ter ultrapassado a ontologia tradicional. Não ultrapassou.
Parménides desvinculou o ser, do tempo mutável não do tempo eterno e aí, nessa posição teórica, começou o erro de Heidegger ao cingir-se à concepção parmenídea da «irrealidade do fluxo do tempo», tempo que estaria petrificado num presente irremovível. É Heidegger quem não se afasta da tradição ontológica de interpretar o tempo como extrínseco ao ser, de conceber o tempo original como temporizador horizontal- extático ou criador do tempo comum que engloba passado, presente e futuro. O tempo é apenas a duração das formas que constituem o ser e, como tal, encontra-se, de modo intrínseco, tanto no ser imóvel e imutável como no ser em devir. O tempo é o compasso que desenha a circunferência do ser. É pois, como eternidade, a dimensão estática (a ponta fixa) e, como tempo irregular, a dimensão extática (a ponta móvel do compasso) do ser.
Aliás, a própria concepção de Parménides sobre o ser (Ente) inclui sub-repticiamente o conceito de tempo uma vez que é «sem fim» na duração:
«Um só discurso nos fica como via: é; neste há muitos sinais de que o ente é ingénito e imperecível, pois é completo, imóvel e sem fim. Não foi no passado, nem será, pois é agora a todo o momento, uno, contínuo.(..)
«Como poderia nascer? Pois se nasceu, não é, nem há-de ser alguma vez. Portanto, fica extinto o nascimento e ignorada a destruição. » (discurso de Parménides in Fragmento 8, Simplício, Física 145; a letra negrita é posta por mim).
A eternidade é o tempo ingénito e infinito ou o tempo infinito mas gerado. Inevitavelmente, a eternidade é um acidente essencial do ser.
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