Sábado, 20 de Março de 2010
Contra Rorty: A impossibilidade de a linguagem funcionar sem referente, real ou ideal, e a insuficiência do ironismo

 

Richard Rorty proclamou ser necessário renunciar definitivamente «à ideia de correspondência entre as orações e os pensamentos e ver as orações como se estivessem ligadas entre si em vez de com o mundo» (R.Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature, Princeton, Pág. 359).

 

Há aqui uma confusão de Rorty: a linguagem é o vestuário, a casa que transporta o pensamento, a pele do pensamento, por assim dizer. Excepto no caso circunstancial de ouvirmos ou lermos um discurso incompreensível numa língua estranha para nós, a linguagem é indissociável do pensamento, suscita, exprime sempre um ou múltiplos pensamentos. Portanto há sempre correspondência entre linguagem e pensamento, nos humanos: a linguagem associa-se sempre ao pensamento mas o inverso nem sempre acontece. Essa correspondência assume formas concretas muito diversas, expressas antes de mais nas línguas de cada povo: por exemplo, em francês, a frase «l ´homme est à la table» é uma expressão linguística equivalente à portuguesa «o homem está à mesa» e à inglesa «the man is at the table» mas nos três casos as palavras diferentes entre si (jogos de linguagem) designam pensamentos similares e uma mesma realidade objectiva exterior.

 

O que Rorty sugere - desfazer a correspondência da linguagem com o pensamento - é absurdo. É possível desfazer a correspondência entre uma dada linguagem e um dado pensamento e o correspondente objecto físico - ou seja, é possível mudar de jogo de linguagem, como no caso da palavra «sujeito» que na filosofia medieval designava,por exemplo, a árvore, a catedral, isto é o objecto exterior a nós e, posteriormente, passou a designar o eu, a entidade interior a mim ou a cada humano - , mas não é possível abolir a correspondência entre a linguagem em geral e o pensamento em geral. A natureza da linguagem humana é ser pensamento e revestimento do pensamento.

 

Ao contrário do que sustentam Rorty e os seguidores da «hermenêutica solidária» que entendem por representacionalismo unicamente a descrição pela linguagem de um mundo exterior objectivo, toda a linguagem é representacionalista - ou de um mundo exterior, biofísico ou social, ou de um mundo interior, psíquico e simbólico, ou de um mundo misto, interior-exterior. Linguagem é representação gráfica, verbal, táctil, mental de um objecto, situação ou qualidade, real ou irreal.

 

O coerentismo - teoria segundo a qual a verdade é não dogmática, absolutamente segura, mas plausível, definindo-se em função da coerência entre si das diversas teses sobre o incerto ou problemático mundo exterior ou interior - de que Rorty participa, desliga a verdade da correspondência com o mundo exterior mas mantém um mundo interior de conceitos e teses, fixas ou mutáveis, onde há altos e baixos relevos da verdade em graus de plausibilidade, isto é, onde a noção de correspondência palavra-ideia-objecto se mantém fora do campo físico real. .Portanto, no coerentismo mantem-se a relação de correspondência entre orações (proposições) e pensamentos que, neste caso, se reportam a objectos ideais.

 

Em Rorty, há o mesmo erro que em Popper: nivelar todas as teorias num pirronismo conjectural o que é correcto apenas como uma precaução, como um método de abordagem livre, a priori, mas não pode ser a posição definitiva. Esta terá de ser o probabilismo - a posição céptica já enunciada na antiguidade grega por Carnéades e que Popper adopta embora o negue formalmente -  ou o dogmatismo. Posicionalmente, ou seja no que respeita à posição definitiva, há teorias integralmente verdadeiras, outras parcialmente verdadeiras, em graus diversos, e outras integralmente falsas.

Metodologicamente - método como caminho para a verdade - a posição de Rorty parece correcta: ela é a ironia de Sócrates, mas não a maiêutica. Não dá à luz nada: é um cepticismo, um ironismo.

Rorty escreveu:

 

«Definirei como ironista todo aquele que cumpra três condições: (1) tem dúvidas radicais e contínuas sobre o vocabulário final que usa porque ficou impressionado com outros vocabulários, vocabulários tidos como finais pela gente ou pelos livros com que se deparou; (2) dá-se conta de que os argumentos expressos no seu actual vocabulário não podem nem reforçar nem dissolver aquelas dúvidas: (3) ao filosofar sobre a sua situação, não crê que o seu vocabulário esteja mais perto da realidade do que outros, nem que esteja em contacto com algo que não seja ela mesma. (…)»

«O ironista, pelo contrário, é um nominalista e um historicista. Pensa que nada tem uma natureza intrínseca, uma essência real e crê, por isso, que a aparição de um termo como “justo” ou “científico” ou “racional” no vocabulário final do presente não é razão para pensar que a investigação socrática sobre a essência da justiça ou sobre a essência da racionalidade levará muito mais além dos jogos de linguagem do próprio tempo. O ironista gasta o seu tempo a preocupar-se com a possibilidade de haver sido iniciado na tribo equivocada e de que lhe tivessem ensinado a jogar o jogo equivocado. (...) Sem embargo, não pode fornecer critério nenhum sobre o que consiste em estar equivocado.» (Richard Rorty, Contingency, Irony and Solildarity, II, 4, Cambridge; a letra negrita é posta por mim).

 

O erro de Rorty, na sua apologia do ironista, é de dupla face: por um lado, consiste em proclamar a impossibilidade de fornecer um critério de verdade sobre as teorias e o mundo, isto é, a impossibilidade de abandonar o cepticismo pirrónico; por outro lado, reside no facto de proclamar a inconvertibilidade mútua entre os vários vocabulários filosóficos. Isso não é verdade: o termo “idealismo” em Kant não corresponde ao termo “idealismo” em Hegel mas é possível explicar cada um deles e convertê-lo num determinado termo do outro vocabulário. Para Kant, por exemplo, a doutrina do «idealismo» de Hegel seria classificada como um «realismo transcendental» de carácter metafísico. Os jogos de linguagem representam apenas o relativismo da linguagem, da relação desta com as essências e coisas que designa, mas não traduzem o "relativismo" dessas essências e coisas.

 

Estas têm uma consistência estável, por assim dizer absoluta, apesar de poderem ser relativizadas, conexionadas de diferentes modos com diferentes coisas ou circunstâncias. Exemplo: embora o peso de um corpo, definido como a força de atracção gravítica que sofre em relação à Terra, varie com a distância do corpo ao centro da Terra, podendo ser nulo quando o corpo se encontra em órbita no espaço (relativismo do peso) a essência "peso" é absoluta, isto é, a definição do que é peso é inalterável (absolutismo ou não relativismo de peso). Em suma: em meu entender, é aceitável ser ironista provisoriamente, numa atitude propedêutica inicial, mas há que passar ao probabilismo  ou ao dogmatismo ao entrar em cada jogo de linguagem porque se descobre uma arquitectura coerente nele.

 

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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 13:24
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