Terça-feira, 24 de Setembro de 2013
A questão da essência no ideal-realismo de Hegel
Hegel é, tal como Kant, um filósofo pouco entendido pela grande maioria dos académicos.
Sobre a essência, escreveu:
«A substância é, de este modo, espírito, unidade autoconsciente do si mesmo e da essência; mas ambos têm também a significação do estranhamento, um relativamente ao outro. O espírito é consciência de uma realidade objectiva para si livre; mas a esta consciência se enfrenta aquela unidade do si mesmo e da essência, à consciência real se enfrenta a consciência pura. Por um lado, mediante a sua alienação a autoconsciência real passa ao mundo real e este retorna àquela; mas, por outro lado, superou-se precisamente esta realidade, tanto a pessoa como a objectividade; estas são puramente universais. Este seu estranhamento é a pura consciência ou a essência. A presença tem de um modo imediato a sua oposição no seu mais além, que é o seu pensamento e o seu ser pensado, do mesmo modo que este tem a sua oposição no mais aquém, que é sua realidade para ele estranhada.»
«Eis aqui por que este espírito não forma somente um mundo, mas um mundo duplo, separado e contraposto.»
(Hegel,Fenomenología del espíritu, pag 287-288, Fondo de Cultura Económica, México; o destaque a negrito é posto por mim).
Vemos, pois que a substância - por exemplo : um copo - é uma unidade do si mesmo - o copo em si, forma e matéria - e da essência - a forma fundamental do copo, pensada. A essência é a pura consciência, oposta à presença, ao ser. O que quer isto dizer? Que a essência reside no pensamento.
Dir-se-ia que Hegel não defende um realismo das essências, como Platão e Aristóteles, doutrina segundo a qual a essência das coisas reside em elas mesmas (Aristóteles) ou num mundo inteligível objectivo acima do céu visível (Platão). Hegel sustenta o idealismo das essências compaginado com o realismo do ser material.
Assim, o espírito divino, a autoconsciência, gerou o ser material, independente das consciências humanas (realismo) e, em simultâneo, gerou a essência, o ser pensado, que é pensamento reflector do ser material. Quantos milhares de estudos sobre Hegel, entre eles teses de doutoramento, passam ao lado desta questão deveras importante!
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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Nesse espectro de alternativas, inclinar-me-ia por incluir as essências no todo de um mundo inteligível, onde, por óbvia inferência, nada há que não se co-possibilite com seres inteligentes capazes de inteligir o que há.
O que me parece interessante é contrastar o objectivismo das essências em Platão com o intersubjectivismo da essência em Hegel...
Será que Platão realmente perfilhou até ao fim da vida a redução do mundo objectivo a essências ideais que o explicariam? Não se terá ele inclinado para a constatação de um puro jogo de multiplicidades, o qual, pleno de impasses — cul de sacs, percursos sem saída — forçam opções onto-lógicas, nas quais, sim, o mundo inteligível se ergue, forma,
e onde as essências objectivas do ser justamente se averam co-possíveis e compatíveis com seres inteligentes que os observem, interpretem e explicem, quer tal contemporaneidade haja existido no passado, exista no presente ou possa vir a existir no futuro?
E, a bem dizer, esta cosmovisão nem requer nenhum ‘arquitecto’ do mundo inteligível; este emerge, onde possível, por entre as descontinuidades do nada.
p.s.- francisco queiroz, esteja à vontade para dizer algo ou não, a quaisquer destas observações bem superficiais que eventualmente edite nestas caixas de comentários do seu blog. Eu sei perfeitamente quão pouco percebo disto - e quão pouco sistemático sou. Por isso, entendo bem que não replique a observações minhas que podem estar longe de pertinentes. Esteja à vontade.
Cumprimentos.
Quando o Vasco Bizarro se interroga legitimamente «Será que Platão realmente perfilhou até ao fim da vida a redução do mundo objectivo a essências ideais que o explicariam? Não se terá ele inclinado para a constatação de um puro jogo de multiplicidades..» volvo ao «Timeu» de Platão.
Aqui encontro a teoria dos 3 mundos -o do Mesmo ou das essências imóveis, o do Semelhante ou do Tempo e o da Matéria ou do Outro - e a referência a um deus arquitecto.
Quanto à natureza, a chorá informe, princípio passivo , Platão escreve: « Temos de dizer o mesmo da natureza que recebe todos os corpos..Quanto às coisas que entram nela e saem dela, são cópias dos seres eternos, moldados a partir deles de uma maneira maravilhosa e difícil de exprimir » ( Platão, Fiálogos , Sofista, Timeu, etc, pag 276 Publicações Europa-Am).
Em minha opinião, Platão não reduz o mundo objectivo às essências porque neste há uma parte irredutível a estas, a matéria informe, a chóra. O ideal-realismo de Platão não é o idealismo de Berkeley ou de Kant. Mas cada um é livre de especular sobre a doutrina platónica e não se iniba de o fazer.
E quando o Vasco diz : «e onde as essências objectivas do ser justamente se averam co-possíveis e compatíveis com seres inteligentes que os observem, interpretem e explicem,» não me parece, com o devido respeito, que as essências sejam co-possíveis com as mentes humanas no senrido que a fenomenologia hoje dá à co-possibilidade: o mundo não existe sem mim, sem eu o pensar e sentir.
As essências, a meu ver, subsistem por si mesmas e são anteriores à humanidade. É o realismo puro. Cumprimentos
Eu não sei traçar onde colhi, ou de onde retenho esta ideia da co-possibilidade do mundo objectivo com seres inteligentes, talvez em Thomas Nagel ou Leibniz, mas o que não perfilho de todo é qualquer antropomorfismo, que o homem seja necessário para o mundo seja real;
digo só: o mundo existe e pode existir "à vontade", e seguramente que existe em si e por si mesmo sem homens nenhuns, mesmo sem quaiquer seres inteligentes que o observem ou não observem;
digo só: para que o mundo seja real, para haver realidade, o mundo tem de ser co-possível com seres inteligentes; não é preciso, para ser real, que seja inteligido ou observado por quaisquer seres; é só necessário que a sua natureza seja co-possível e compatível com seres que dele se apercebam com inteligência, mesmo que estes não existam, só requerido que possam co-existir.
E isto parece-me profundamente platónico, porque a realidade, para o ser de facto, tem de ser inteligível; e a coisa em si ser inteligível só é possível se se averar co-possível com espírito(s) inteligente(s), mesmo que estes não existam, ou que só tenham existido mas não existam mais, ou nunca tenham existido mas possam eventualmente vir co-existir nesse mundo;
sem o que, ele, mundo, por muito que exista, em si e por si, não tem realidade nenhuma porque real é o mundo inteligível, e um mundo incompatível na sua natureza com espíritos que o intelijam, é um mundo ininteligível e como tal isento de realidade.
F.Queiroz: reitero que prometo ser sóbrio a comentar os seus textos. :)
Diz o Vasco: «porque a realidade, para o ser de facto, tem de ser inteligível; e a coisa em si ser inteligível só é possível se se averar co-possível com espírito(s) inteligente(s), mesmo que estes não existam, ou que só tenham existido mas não existam mais, ou nunca tenham existido mas possam eventualmente vir co-existir nesse mundo;»
É uma posição filosófica perfeitamente legítima. Eu penso que a realidade pode existir sem ser necessariamente inteligível ainda que eu busque a inteligibilidade por tendência natural da razão.
Não se preocupe em prometer «ser sóbrio nas críticas». Os seus comentários nada têm de inconveniente ou menos sóbrio, não exijo que os que me leem e comentam estejam de acordo comigo.
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