Félix Guattari e Giles Deleuze delinearam, do seguinte modo, a distinção entre ciência e filosofia:
«A ciência não tem por objecto conceitos, mas funções que se apresentam como proposições em sistemas discursivos. Os elementos das funções chamam-se functivos (fonctifs, no original francês). Uma noção científica é determinada não por conceitos, mas por funções ou proposições. É uma ideia muito variada, muito complexa, como se pode ver já no uso que dela fazem já respectivamente as matemáticas e a biologia; é, contudo, esta ideia de função que permite às ciências reflectir e comunicar. A ciência não tem nenhuma necessidade da filosofia para estas tarefas. Em contrapartida, quando um objecto é cientificamente construído por funções, por exemplo, um espaço geométrico, falta procurar nele o conceito filosófico que não está de modo nenhum dado na função. Mais exactamente, um conceito pode tomar, por componentes, functivos de toda a função possível, sem ter minimamente o menor valor científico, mas com o objectivo de marcar diferenças de natureza entre conceitos e funções.»
«Nestas condições, a primeira diferença está na atitude respectiva da ciência e da filosofia em relação ao caos. Define-se menos o caos pela sua desordem que pela velocidade infinita com a qual se dissipa toda a forma que aí se esboça. É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e extraindo todas as formas possíveis para desaparecem brevemente, sem consistência nem referência, sem consequência. É uma velocidade infinita de nascimento e de esvanecimento. Ora a filosofia pergunta como guardar as velocidades infinitas ganhando sempre consistência, dando uma consistência própria ao virtual. O crivo filosófico, como plano de imanência que recorta o caos, selecciona movimentos infinitos do pensamento e mobila-se com conceitos formados como partículas consistentes viajando tão rápidas como o pensamento. A ciência tem toda uma outra maneira de abordar o caos, quase inversa: ela renuncia ao infinito, à velocidade infinita, para ganhar uma referência capaz de actualizar o virtual. Guardando o infinito, a filosofia dá uma consistência ao virtual por conceitos; renunciando ao infinito, a ciência dá ao virtual uma referência que o actualiza, por funções. A filosofia procede com um plano de imanência ou de consistência; a ciência, com um plano de referência. No caso da ciência, é como uma paragem da imagem. É um fantástico abrandamento de velocidade, e é por este abrandamento que a matéria se actualiza, mas também o pensamento científico capaz de a penetrar por proposições. Uma função é uma Marcha lenta.»
(Gilles Deleuze e Félix Guatari, Qu est-ce que la philosophie?, Les Éditions de Minuit, Pág 111-112; a letra negrita é posta por mim)
Ao dizer que «Uma noção científica é determinada não por conceitos, mas por funções ou proposições» e que «o conceito filosófico que não está de modo nenhum dado na função» Deleuze e Guattari equivocam-se. As funções ou proposições incluem conceitos ou baseiam-se neles exemplo: a curva designada por parábola é uma função, um movimento descrito segundo determinada equação matemática, mas conserva, simultaneamente, o conceito de curva tangencial a uma recta. A função não exclui o conceito, é o conceito ou rede de conceitos em movimento, em transmutação, do mesmo modo que o filme não exclui a fotografia. Opor o conceito filosófico à função científica é um erro antidialéctico, tal como o é opor liminarmente a palavra à proposição. A palavra está contida na proposição, não se opõe extrínseca e frontalmente a esta, do mesmo modo que a filosofia está contida em cada ciência. Em outro sentido, potencial, a proposição está contida na palavra, como a árvore está contida na semente ou na raiz que cresce e como a ciência está contida na filosofia.
As funções salientam o aspecto dinâmico da vida e da matéria, os conceitos privilegiam o aspecto estático da vida e da matéria. Sem estática não há dinâmica e vice-versa. São os conceitos, que Deleuze e Guattari, vinculam à filosofia mais velozes que as funções, que estes autores remetem para a ciência? Parece-me que não. Em todo o caso, estes autores deveriam fundamentar com exemplos a sua tese. Por exemplo o conceito filosófico de "ser" é mais veloz que o conceito científico de "electrão"? Porquê? Em que medida é ou não é? Nada disto é claro na vasta citação que coloquei acima. Há pois um mobilismo antidialéctico nesta distinção: a filosofia seria, para Deleuze e Guattari, puro movimento, quase absoluto, e a ciência o movimento lento, fotográfico, para captar tal ou tal zona da realidade. Isto contrasta com a ideia tradicional de o filósofo como contemplativo, imobilizando o fluxo do real para nele penetrar pela intuição e o raciocínio.
Deleuze e Guattari proclamam que a ciência renuncia ao infinito, ao contrário da filosofia. Mas como renuncia ao infinito, se os físicos teóricos especulam hoje sobre as 30 ou 40 possíveis dimensões do espaço e se o universo é considerado espacialmente infinito? E como é que a ciência matemática renuncia ao infinito se menos infinito e ao mais infinito constituem horizontes da série de números? A ciência não se debruça menos sobre a janela do infinito do que a filosofia. A diferença entre ambas reside no facto de a filosofia abarcar no seu seio várias perspectivas de ciência contrárias ou contraditórias entre si, estando simultaneamente dentro como núcleo especulativo, não testado ou não testável e fora de cada ciência. A filosofia articula finito e infinito, uno e múltiplo, tal como a ciência o faz.
Opor a filosofia e a ciência como se opõem a imanência e a referência é um discurso ambíguo. Por que não há de a ciência representar a imanência ao contrário do que defendem Guattari e Deleuze e a filosofia a referência conceito que tanto pode indicar transcendência como imanência?
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