Eduardo Lourenço, prémio Pessoa, esforçou-se por refutar a dialética de Hegel. Citou a seguinte passagem do filósofo alemão do século XIX:
«É ele mesmo que é preciso interrogar: o que é isto? Tomemo-lo sob o duplo aspecto do seu ser como agora e aqui, e então a dialética tomará uma forma tão inteligível como o mesmo isto. Á questão: o que é agora? Nós respondemos, por exemplo: o agora é a noite. Para experimentar a verdade desta certeza sensível uma qualquer experiência será suficiente. Notemos por escrito essa verdade; uma verdade não perde nada em ser escrita e tão pouco em ser conservada. Vejamos, entretanto, ao meio-dia essa verdade escrita: devemos dizer então que ela desapareceu. O agora que é a noite é conservado, quer dizer que é tratado como aquilo que se fez passar como um sendo; mas ele demonstra-se como um não sendo.» (Hegel, Fenomenologia, pag 206 citado em Eduardo Lourenço, Obras Completas, I, Heterodoxias, pag 123, Fundação Calouste Gulbenkian).
E prossegue Eduardo Lourenço na crítica a esta passagem de Hegel:
«Traduzamos a fraseologia para linguagem corrente. Hegel atribui à certeza sensível um conteúdo situado ou no tempo ou no espaço. Um instante decorrido ou uma mudança de situação ou perspetiva e o conteúdo da certeza sensível não é o que era, mas outro. Esse facto exprime realmente a dialética imanente ao ser sensível, mas por que motivo Hegel conclui de uma passagem de algo a outra coisa, como sendo a passagem de duas coisas contrárias? Pelo facto de não serem idênticos, segue-se que sejam contrários? Do sendo que era a primeira determinação do agora, como concluir necessariamente para o agora como não sendo? Não se vê nesta dialética nada que exprima um modo de verdade, uma determinação do absoluto.»
«A contrariedade absoluta não se manifestou. Antes pelo contrário: algo permanece que permite pensar o movimento da noite ao dia e é o agora.
«Contudo, o movimento descrito por Hegel não contém a ideia do contraditório e de facto não o é. A razão está em que esse movimento de pensamento que parece ser ele mesmo como mediação, o absoluto da unidade sintética dos opostos, só existe em função dessa ideia de absoluto. Esse é o segredo da dialética. O absoluto não é nem a construção da síntese nem o seu fim mas o seu pressuposto. O sendo do agora não passa a puro não sendo mas precisamente a não sendo do agora, o absoluto do agora (absoluto relativamente a esse sistema) participando simultaneamente das duas determinações. Mas não se vê como se possam chamar contrárias tais determinações nem como se possam mediar por si.»Eduardo Lourenço, Obras Completas, I, Heterodoxias, pag 123, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é posto por mim).
Eduardo Lourenço diz que, na passagem do dia à noite,a contrariedade absoluta não se manifestou. Isto é obviamente falso: o dia elimina a noite, enquanto céu de plena luz solar o dia é um contrário absoluto da noite. Não podem coexistir no mesmo lugar geográfico: se a luz do dia surge, a escuridão da noite desaparece. Logo o anoitecer ou o amanhecer descritos por Hegel contêm as ideias do contraditório e do contrário. Eduardo Lourenço, que não parece dominar a diferença entre contrário (exemplo: fogo e água são contrários) e contraditório (por exemplo: 7 e 9 são contraditórios mas não contrários) estabelecida por Aristóteles, confunde estes dois conceitos. Não percebe, sequer, que o intermédio (por exemplo: o lusco-fusco) é contraditório com cada um dos contrários que medeia (no caso: a noite e o dia luminoso).
Ao contrário do que sustenta Lourenço, Hegel tem razão se postula que o sendo do agora passa a puro não sendo: o dia, a esta hora, vai passar a noite dentro de algumas horas. O não sendo do agora é o passado e o futuro. O ser do dia de luz é o não ser da noite. E essa contrariedade manifesta-se dentro do agora - o que Eduardo Lourenço não intui - porque, neste instante, há regiões do globo terrestre onde é noite e outras onde é dia de luz solar.
Por isso a frase «O sendo do agora não passa a puro não sendo mas precisamente a não sendo do agora» é absolutamente confusa e vaga: o sendo do agora - por exemplo, o verão de 2012 - passa a não sendo (não verão de 2012: outono, inverno) mas, no sentido formal, o sendo do agora como estrutura vazia nunca passa a não sendo do agora. Porque o agora é uma dimensão do Absoluto dentro da qual corre o filme do Relativo.
O que Eduardo Lourenço não distingue, porque lhe falta a argúcia dialética, é os dois sentidos do sendo agora: o sentido formal e o sentido conteudal. Formalmente, o agora é imutavel, é o presente eterno e não muda: os seus contrários são o passado e o futuro.
Em conteúdo, o agora está a mudar a cada instante: ora é dia, ora é lusco fusco, ora é noite. O dia é contrário à noite - o dia transforma-se em noite, os contrários transformam-se um no outro, é o que Hegel afirma. E nessa transformação, há a conservação do vencido ou dominado sob a auréola do vencedor ou dominante: o dia conserva, de facto, algumas coisas da noite, como por exemplo, o facto de a Lua se ver a certas horas de luz diurna. A mediação é o lusco fusco - o momento em que a sombra e a luz se igualam e o sol se oculta no horizonte ou desponta neste. A contrariedade e a contradição (toda a diferença é uma contradição) são as bases da dialética.
Com a sua retórica abstracta, isenta de clareza, sem exemplos concretos, e a sua visão unilateral, católica estática, de que o Absoluto não pode manifestar-se através da luta de contrários mediada por intermédios, Eduardo Lourenço não conseguiu, nem de perto nem de longe, refutar a dialética de Hegel.
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