Quarta-feira, 12 de Junho de 2019
Hegel: clareza e obscuridade nos seus textos

 

Há teses de Hegel que são notáveis e compreensíveis na Fenomenologia do Espírito, como por exemplo a seguinte:

 

«O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se completa mediante o seu desenvolvimento. Do absoluto, há que dizer que é essencialmente resultado, que só no final é o que é de verdade, e em isso precisamente estriba a sua natureza, que é a de ser real, sujeito ou devir de si mesmo. »

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 16; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Hegel sustenta que no princípio está o Espírito, o mais universal de tudo. Adiciona ao teísmo da primeira fase do Espírito, o panteísmo da segunda fase (Deus é as árvores, os rios, as plantas e os animais «irracionais») e o panenteísmo da terceira fase (Deus é a humanidade nos seus diferentes povos e tipos de estado, de arte, de religião e de filosofia, evoluindo para a liberdade e ao mesmo tempo Deus é espírito puro, transcendente, no Além). O resultado acima referido é a terceira fase, a da humanidade, que resulta da união e síntese entre a fase de Deus pensante e a fase de Deus impensante, alienado em natureza física em corpos físicos.

 

Hegel fala de quatro etapas na fenomenologia do Espírito, isto é, nas sucessivas formas que este vai assumindo: consciência, autoconsciência, razão e espírito. Ponho reservas a esta divisão: a autoconsciência já é, em si mesma, razão. Hegel dá a seguinte definição de autoconsciência:

 

«Mas de facto, a autoconsciência é a reflexão, que desde o ser do mundo sensível e percebido, é essencialmente o retorno a partir do ser outro. Como autonsciência é movimento(....) A diferença não é, e a autoconsciência é somente a tautologia sem movimento do eu sou eu.»

 

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 108; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Fixemo-nos: quando Descartes intui «eu penso logo existo» isso é autoconsciência; quando Albert Camus infere que a vida humana é destituída de sentido pois não há Deus nem é possível garantir o triunfo perene da verdade e da justiça para toda a humanidade isso é autoconsciência.

 

Mas há numerosos parágrafos da Fenomenologia que são ambíguos devido às múltiplas divisões que ele introduz no mesmo conceito tipo bonecas russas Matrioska, umas dentro das outras. Veja-se  por exemplo, esta passagem em que se refere à substância ética:

 

«A substância é, deste modo, espírito, unidade autoconsciente do si mesmo e da essência; mas ambos têm também o significado da estranheza de um face ao outro. O espírito é consciência de uma realidade objectiva para si livre; mas a esta consciência se enfrenta àquela unidade do si mesmo e da essência, à consciência real se enfrenta a consciência pura. Por um lado, mediante a sua alienação,  a autoconsciência real passa ao mundo real e este retorna àquela; mas, por outro lado, superou-se precisamente esta realidade, a pessoa e a objectividade. Esta estranheza é a pura consciência ou essência

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 287; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Na primeira frase da citação acima a substância aparece como a unidade entre o si mesmo e a essência. Ora o que é o si mesmo senão o espírito do indivíduo? Neste caso, a essência terá de ser a objectividade, a realidade, o bem e o mal que se encontram fora da consciência. Mas na última frase da citação Hegel muda o significado de essência, que no início era lei exterior, realidade exterior para... consciência pura. Não bate certo.

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 108; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Estamos pois perante um exercício de sofística em que Hegel, sem embargo do seu brilhantismo, é pródigo.

 

AUTOCONSCIÊNCIA EM GERAL E AUTOCONSCIÊNCIA LIVRE, O PARADOXO DE "O SER SÓ PARA A CONSCIÊNCIA" SER SIMULTÂNEAMENTE "REAL EM SI MESMO"

 

Vejamos um entre muitos exemplos da falta de clareza, ou pelo menos da falta de concreção do pensamento de Hegel:

 

«A razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade; de este modo exprime o idealismo o conceito da razão. Do mesmo modo que a consciência que surge como razão abriga de um modo geral imediato esta certeza, assim também o idealismo a exprime de modo imediato; eu sou eu, no sentido, no sentido de que o eu que é o meu objecto, é objecto com a consciência do não ser de qualquer outro objecto, é objecto único, é toda a realidade e toda a presença, e não como na autoconsciência em geral, nem tão pouco como na autoconsciência livre, já que ali é só um objecto vazio em geral e aqui somente um objecto que se retira dos outros que continuam a governar junto dele. Mas a autoconsciência só é toda a realidade não somente para si mas também em si ao devir esta realidade ou mais exactamente ao demonstrar-se como tal. E se demonstra assim no caminho pelo qual, primeiro no movimento dialétco da suposição, da percepção e do entendimento , o ser outro desaparece como em si, e logo no movimento que passa pela independência da consciência no senhorio e na servidão, pelo pensamento da liberdade, a libertação céptica e a luta da libertação absoluta da consciência desdobrada dentro de si, o ser outro enquanto é para ela, desaparece para ela mesma. Apareceriam sucessivamente dois lados, um em que a essência ou o verdadeiro tinha para a consciência a determinabilidade do ser e outro em que a sua determinabilidade era ser somente para elaMas ambos os lados se reduziam a uma verdade, a de que o que é ou o em si só é enquanto é para a consciência e o que é para ela é também em si

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 144; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

Percebe-se neste texto o que significa a tese de Hegel de que no idealismo «o ser outro desaparece como em si»: no idealismo material ou ontológico, a árvore, a casa ou o cão que em relação a mim são ser outro  que desaparecem em si, isto é, desaparecem como realidades independentes de mim, reduzem-se a simples ideias na minha mente que é o universo inteiro.  Mas Hegel não define o que é a autoconsciência livre - é o pensamento de alguns filósofos destacados do vulgo?- e em que se distingue da autoconsciência em geral - esta já sabemos ser reflexão e não absorção acrítica das percepções do mundo exterior.

 

A última frase do texto «Mas ambos os lados se reduziam a uma verdade, a de que o que é ou o em si só é enquanto é para a consciência e o que é para ela é também em si.» é em si mesma um paradoxo: Hegel começa por dizer que o que é ou existe só é para a consciência - posição do idealismo e da fenomenologia: a árvore que vejo só é real para a minha consciência - e depois contradiz-se ao dizer que o que existe para a consciência existe também em si mesmo, como realidade independente - posição do realismo: a árvore está fora da minha mente e subsiste quer eu a veja e pense ou não.

 

O ESPÍRITO, SUBSTÂNCIA ÉTICA, VERSUS A SUBSTÂNCIA QUE SÓ SURGE NELE QUANDO O ESPÍRITO AGE

 

Ideias que Hegel repete são a do desdobramento da consciência e a da luta entre a essência e a autoconsciência, entre o universal e o singular. Hegel define o espírito assim, ora identificando-o como substância ora diferenciando-o desta:

 

«Mas a essência que é em si e para si e que ao mesmo tempo é ela mesma real como consciência e se representa a si mesma é o espírito

«A sua essência espiritual já foi definida como a substância ética; mas o espírito é a realidade ética. É o si mesmo da consciência real, à qual se enfrenta, ou que mais precisamente se enfrenta a si mesma, como mundo real objectivo, o qual, sem embargo, perdeu para si mesmo toda a significação de algo estranho, do mesmo modo que o si mesmo perdeu toda a significação de um ser para si, separado, dependente ou independente de aquele.  O espírito é a substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente - o inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos - e o seu fim e a sua meta, como o em si  pensado de toda a autoconsciência».

 (G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pp. 259-260; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

Esta passagem, relativamente obscura - Como é que o si mesmo perdeu toda a significação de um ser para si? Refere-se a quando Deus se alienou em natureza física e deixou de pensar? -  está em contradição com a seguinte:

 

«Na sua verdade simples, o espírito é consciência e desdobra os seus momentos. A ação cinde-o em substância e em consciência da mesma, e cinde tanto a substância como a consciência. A substância, como essência universal e como fim, enfrenta-se consigo mesma como a realidade singularizada...»

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 261; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

A incoerência está em considerar o espírito como substância ética, depois como realidade ética e por último dizer que o espírito é apenas consciência e só a ação o cinde  em substância e consciência de esta. Substância era qualidade do espírito, eterno e imóvel, tese primeira, mas só surge quando o espírito se põe em ação e divide em substância e consciência, tese segunda. Há aqui imprecisão conceptual.

 

O espírito é o quarto degrau mas engloba os outros três degraus. Há aqui uma visão eclética, algo confusa: espírito é tomado em dois sentidos diferentes, ora como consciência em geral, mesmo não ética, ora como essência ética:

 

«Aqui, onde se põem o espírito ou a reflexão de estes momentos em si mesmos, a nossa reflexão a respeito deles pode recordá-los brevemente conforme a este lado; os ditos momentos eram a consciência, a autoconsciência e a razão. O espírito é pois consciência em geral, que abarca em si a certeza sensível, a percepção e o entendimento»

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 26o; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

Há falta de concreção no pensamento hegeliano, oscilações de vagueza em conceitos como essência, substância, ser em si, ser para si. Talvez por isso Schopenhauer classificasse Hegel de «charlatão», do mesmo modo que nós acusamos Heidegger de um certo grau de charlatanismo retórico em O Ser e o Tempo.

 

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Quarta-feira, 22 de Fevereiro de 2017
Teste de filosofia do 11º ano (14 de Fevereiro de 2017)

 

 

Eis um teste de filosofia do 2º período lectivo no ensino secundário em Portugal.

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja

Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA A

14 de Fevereiro de 2017 Professor: Francisco Queiroz

I

“.Em Bachelard, o racionalismo dialético adequa-se à lei do salto de qualidade pois supera os obstáculos epistemológicos para alcançar o ultra-objecto. As quatro fases do método hipotético-dedutivo estão fora do âmbito da razão mas não do entendimento, segundo Kant.”

 

1) Explique estes pensamentos.

 

2) Explique, como, segundo a gnosiologia de Kant, se formam o fenómeno OLIVEIRA, o conceito empírico de OLIVEIRA e o juízo a priori «A soma dos três ângulos internos de um triângulo é 180º».

      

3) Relacione, justificando:

A) As sete relações filosóficas em David Hume e as formas a priori da sensibilidade e do entendimento na teoria de Kant.

 

B) Os três tipos de conhecimento em Bertrand Russel e três tipos de res em Descartes.

 

C) Princípio da falsificabilidade em Popper, conjectura, corroboração.

 

D) Idealismo, teoria da tábua rasa e ideias de «eu», «alma» e «substância» em David Hume.

 

CORREÇÃO DO TESTE COTADO MAXIMAMENTE PARA 20 VALORES

 

1) Segundo o filósofo francês Gaston Bachelard, a opinião, isto é, o senso comum, não pensa, isto é, traduz necessidades em conhecimentos, fabrica a explicação que mais lhe convém. Exemplo: a maioria das pessoas que sentem frequentes dores de cabeça não perdem tempo a investigar a causa dessas dores, tomam um comprimido de farmácia que faz desaparecer o sintoma mas não a causa que lhe está subjacente. Na ciência nada é dado porque tudo ou quase tudo é construção racional. Exemplo: a teoria do espaço-tempo de Einstein, que diz que o espaço encurva na proximidade de grandes massas não nos é dada pelos orgãos dos sentidos, é pensada na razão. O racionalismo é a doutrina segundo a qual a razão é a fonte principal ou única de conhecimento desprezando as percepções empíricas. É pelo raciocínio (racionalismo) que o facto bruto é transformado em facto científico, isto é , num facto racional ou empírico-racional cuja essência é o ultra-objecto: a cor do céu diurno não é azul, o azul existe apenas no interior da nossa mente; o mármore não é frio, é bom condutor de calor e rouba calor à mão que nele pousamos, etc. O obstáculo epistemológico em Bachelard é todo o entrave ao conhecimento científico: a primeira impressão, a experiência inicial,  o realismo natural ( o mundo exterior como parece ser: o céu é azul, o mármore é frio, etc, o preconceito do senso comum, a falta de tecnologia apropriada (exemplo: a falta de telescópios, microscópios, reagentes químicos, máscaras antigás, fatos de amianto, bússolas, aparelhos de refrigeração, etc.) o preconceito racial ou religioso, etc. Pode dizer-se que o racionalismo enfrenta o obstáculo epistemológico segundo a lei do salto de qualidade: a acumulação lenta, em quantidade, de um factor num fenómeno conduz, em dado instante, a um salto brusco de qualidade. Esta lei aplica-se à descoberta do ultra-objecto, isto é, um objecto invisível, no todo ou em parte, como por exemplo, os quarks up e down, constituintes supostos do protão.(VALE QUATRO VALORES).O método hipotético-dedutivo baseia-se na indução amplificante, inferência que Popper não aceita como válida, e tem quatro fases: observação ou ocorrência do problema, hipótese, dedução matemática da hipótese e verificação experimental com confirmação ou não da hipótese. Na doutrina de Kant, a razão é a faculdade de pensar a metafísica, os númenos, e está totalmente desligada dos fenómenos físicos que são objecto do método hipotético-dedutivo. Na mesma doutrina, o entendimento é a faculdade que pensa os fenómenos (as esferas, as roldanas, os planos inclinados, os tubos de ensaio com reagentes, etc) e portanto é ele que concebe o método experimental. (VALE TRÊS VALORES)

 

2) O númeno ou objecto metafísico, geralmente fora do espírito humano, afecta de alguma maneira a sensibilidade fazendo nascer nesta um caos empírico de matéria indeterminada e as formas a priori de espaço (figuras, extensão) e tempo (duração, simultaneidade, sucessão) moldam essa matéria transformando-a no fenómeno oliveira, que é o objecto visível ou coisa para nós. As imagens do fenómeno, isto é, de centenas de oliveiras, são levadas pela imaginação às categorias de unidade, pluralidade, realidade e outras do entendimento ou intelecto ligado ao mundo empírico e aí são reduzidas à unidade, a um conceito único de oliveira. Na forma a priori do tempo, na sensibilidade existem os números (90, 180, etc), na forma a priori espaço da sensibilidade existe a intuição pura de triângulo, estas intuições são elevadas ao entendimento, às categorias de unidade, pluralidade, totalidade, necessidade e estas categorias com a ajuda da tábua de juízos puros, em particular do juízo apodíctico, produzem o juízo a priori «A soma dos três ângulos internos de um triângulo é 180º » (VALE TRÊS VALORES).

 

3) A) As sete relações filosóficas são, segundo David Hume: identidade, semelhança, relações de tempo e de lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. É discutível saber se são noções a posteriori, ou seja, que surgem na experiência sensorial e não antes desta, ou se são formas a priori, isto é, estruturas vazias que estão antes da primeira experiência. As formas a priori da sensibilidade, em Kant, são: o espaço, cujo conteúdo é extensão e figuras geométricas, e o tempo, cujas determinações são duração, sucessão, simultaneidade e números.

É fácil detectar correspondências entre Hume e Kant: as relações de tempo e de lugar, em Hume, correspondem ao espaço e tempo à priori em Kant; a proporção de quantidade ou número, em Hume, equivale aos números contidos no tempo, em Kant.

 

As categorias, em Kant,  são formas a priori do entendinento, isto é, mecanismos inatos do pensamento, anteriores a toda a experiência sensorial, como por exemplo, unidade, pluralidade e totalidade (categorias da quantidade). São 12 e constituem a seguinte tábua:

«TÁBUA DAS CATEGORIAS»

I

Da quantidade:

Unidade

 Pluralidade

   Totalidade

           2                                                                                   3

Da Qualidade                                                              Da relação

Realidade                                                                    Inerência e subsistência

Negação                                                                      ( substancia et accidens)

Limitação                                                                    Causalidade e dependência

                                                                                                     (causa e efeito)

.....................................................................................Comunidade

                                                                                    (acção recíproca entre

                                                                                     o agente e o paciente)

                                                                         4

Da Modalidade:

Possibilidade-Impossibilidade

Existência-Não-existência

Necessidade-Contingência

 

 

Podemos fazer corresponder a relação filosófica de causação (determinismo), em Hume, à categoria de necessidade (lei infalível de causa-efeito)  em Kant. Também podemos estabelecer correspondência entre a relação filosófica de identidade e a categoria de inerência e subsistência (substância e acidente). As formas a priori do entendimento incluem as categorias e os juízos puros (afirmativos, negativos, assertóricos, apodícticos, etc) que são doze (VALE TRÊS VALORES).

 

3-B)As três res ou substâncias primordiais em Descartes são: a res divina, Deus, espírito criador do universo, fonte das outras duas; a res cogitans ou pensamento humano sobre ciências, filosofia, senso comum, etc; a res extensa, isto é, a matéria, abstracta e indeterminada, constituída por comprimento, largura e altura dos corpos, destituída de cor, som, cheiro. Os três tipos de conhecimento segundo Bertrand Russell são: o saber-fazer, que é um conhecimento empírico-técnico, como andar de bicicleta, nadar, jogar futebol; o conhecimento por contacto, isto é, empírico directo, como ver uma planície alentejana, ouvir uma música dos «Discípulos», saborear gaspacho e opinar «O gaspacho é uma sopa fria de tomate agradável ao paladar»; o conhecimento proposicional, isto é, racional ou empírico-racional, como por exemplo, «O quark up tem carga eléctrica positiva 2/3 ao passo que o quark down tem carga negativa 1/3», «Portugal entrou na Comunidade Económica Europeia em 1 de Janeiro de 1986». contrariando muitas vezes as percepções empíricas. Podemos fazer corresponder a res cogitans ao conhecimento proposicional porque são pensamento(VALE TRÊS VALORES).

 

3-C) 3) B) Conjectura é uma suposição, uma hipótese. O conjecturalismo é a teoria de Popper segundo a qual as teorias das ciências empíricas, as leis induzidas, não passam de suposições, de hipóteses falíveis, pois é impossível verificar todos os casos concretos correspondentes a dada lei ou tese. Assim, por exemplo, a tese de que o átomo de enxofre tem 16 electrões é uma mera hipótese e não uma verdade indiscutível. A indução (amplificante) é a generalização de alguns exemplos empíricos similares de modo a construir uma lei universal e necessária. Popper rejeita este raciocínio indutivo dizendo que só seria legítimo se fosse possível a verificação de todos os casos correspondentes a essa lei induzida, mas só é possível a corroboração, isto é, a confirmação de alguns casos. O princípio da falsificabilidade  é a teoria de Popper segundo a qual uma teoria «científica» deve ser falsificada, posta em questão, através de testes experimentais rigorosos e de discussão racional, e ser aceite provisoriamente enquanto resistir a esses testes.. (VALE DOIS  VALORES).

 

3) D) O idealismo, isto é, a doutrina que diz que o mundo material exterior à mente humana não existe, é ilusório, é base da teoria de Hume. Por exemplo, o"eu" em David Hume não é uma realidade, mas uma ideia ilusória, uma vez que somos apenas uma corrente de percepções empíricas a que a memória e a imaginação atribuem um núcleo invariável chamado «eu». Do mesmo modo, a   substância (exemplos: as substâncias cadeira ou nuvem) é uma ideia fabricada pela nossa imaginação servindo-se das sete relações filosóficas que são disposições sensório-intelectuais a priori da mente humana: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. A ideia de permanência, de continuidade entre as percepções empíricas forja as ideias de eu e de substância. As relações de tempo e lugar não estão em objectos materiais fora de nós mas são um modo de ver e pensar inerente à nossa mente - e isto é idealismo. David Hume é empirista  porque sustenta que as nossas impressões de sensação ou percepções empíricas (exemplo: a visão de um gato, o sabor da açorda alentejana) são a fonte das nossas ideias. Sustenta a teoria da tábua rasa que diz que ao nascer a mente humana vem vazia de conhecimentos. (VALE DOIS VALORES).

 

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Segunda-feira, 2 de Junho de 2014
Teste de filosofia do 11º C (Maio de 2014)

 

Eis um teste de filosofia, para o terceiro período lectivo, para o 11º C. O teste centra-se na teoria do conhecimento (Hume, Descartes; idealismo solipsista, relativismo, fenomenologia) na ontologia (Parménides, Hegel, David Hume, Descartes) na teleologia/ sentido da existência (Kierkegaard, Hegel, Camus). Evitaram-se as escorregadias questões de escolha múltipla que, em muitos casos, não permitem ao aluno exibir e desenvolver o seu saber filosófico.

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia com 3º Ciclo, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA C
30 de Maio de 2014. Professor: Francisco Queiroz

 


I

 

“A perspectiva cristã situa-se nesta posição: o não-ser existe em toda a parte como o nada de que as coisas são feitas, como aparência e vaidade, como pecado, como sensibilidade afastada do espírito ..Deus é, não existe, o homem existe, mas não é“

Kierkegaard

 

1)-Explique estes pensamentos.

 

II

 

2) Disserte sobre o seguinte tema:

 

" O ser em Parménides, em David Hume e em Hegel".

 

III

 

 

3) Relacione, justificando:
A) Substância em Descartes e Substância em David Hume.
B) Realismo Crítico em Descartes e Fenomenologia.
C) O Existencialismo de Albert Camus e o Existencialismo de Kierkegaard.
D) Teoria de Karl Popper sobre as ciências, relativismo, idealismo solipsista.

 

 

 

CORRECÇÃO DO TESTE DE FILOSOFIA (COTADO PARA 20 VALORES)

 

1) Na visão cristã do mundo, segundo Kierkegaard, o não ser ou nada é a matéria física, incluindo o corpo humano, porque todas as coisas materiais - uma casa bela, um corpo jovem e belo, um automóvel, uma conta bancária bem recheada - se corrompem, desaparecem ou deixam de pertencer ao seu possuidor. Também as vaidades e aparências - por exemplo: ser deputado, ser dono de uma empresa, ser doutorado, vencedor de um prémio importante, etc - fazem parte do não ser porque se reduzem a nada ao ser confrontadas com a eternidade que a alma humana viverá ou no Paraíso ou no Inferno, já que nada se leva deste mundo ao morrer  (VALE UM VALOR E MEIO). "Deus é mas não existe" significa: Deus existe eternamente, fora do tempo, e como está fora das contingências da existência (nascer, crescer, tranalhar, morrer, etc) diz-se que não existe.». "O homem existe e não é" significa: o homem está em perpétuo devir, a existência é feita de mudanças, altos e baixos, por isso existe e deixa de existir, mas não é, se por é se entende ser eterno, sempre o mesmo (VALE UM VALOR E MEIO).

 

 

2) O ser em Parménides é, não foi nem será. É uno, homogéneo, imóvel, incriado, invisível e imperceptível aos sentidos, esférico. Ser e pensar é um e o mesmo. A alteração das cores, a mutação, o nascimento e a morte são ilusões, reais só na aparência.

Ser é um termo ambíguo, polissémico: por um lado é o existir em geral; por outro lado é o existente, algo que existe, o essente, uma essência ou substância de carácter universal. Parménides usa o termo nos dois sentidos, de existência e de essência. Neste segundo sentido, pode interpretar-se como o cosmos esférico ou como o pensamento divino estruturante do cosmos (sentido hegeliano). Fica em aberto a questão de saber se Parménides era idealista ou realista crítico.

 O ser em David Hume é antropológico: percepções empíricas ou impressões dos sentidos, razão, imaginação mas não um «eu-substância» coeso como em Kant ou em Descartes. O ser do mundo exterior é inexistente (idealismo) ou duvidoso (cepticismo) e, portanto, é não-ser efectivo ou provável.

Em Hegel, o ser é a ideia absoluta ou Deus que se desdobra em três etapas: ser em si, ou Deus sozinho, antes de criar o universo, o espaço e o tempo, pensamento puro; ser fora de si, ou Deus transformado em natureza física, alienado, em astros, céus, montanhas, rios, plantas e animais; ser para si ou Deus encarnado em hunanidade, evoluindo através de formas de estado -Estado Oriental, só um homem livre; Estado greco-romano, vários homens livres e os restantes, servos ou escravos; Estado cristão reformado por Lutero no século XVI em que todos os homens são livres pois autorizados a interpretar livremente a Bíblia sem a mediação do clero católico romano, liberdade essa alargada, no plano político-social,  com a revolução francesa de 1789 - em direcção à liberdade de espírito.(VALE QUATRO VALORES)

 

3) A) Na ontologia de  Descartes há três substâncias: a res divina, ou Deus, anterior às outras duas e criadora delas; a res cogitans, pensamento, que só existe nos humanos: a res extensa (extensão dotada de formas e tamanhos, comprimento, largura e altura), estruturadora do mundo material . Em David Hume, a noção de substância não corresponde a nenhum objecto exterior, é um acto da imaginação que liga percepções empíricas : o "eu" não é substância, não existe sequer (idealismo) ou é duvidoso (cepticismo) tal como não existem ou são duvidosas as noções de "alma", "substância", "essência" . Por outro lado, não existe ou é duvidoso o mundo exterior onde se albergariam as "substâncias" árvore, planície, corpos de animais e homens, etc. (VALE TRÊS VALORES)

 

B) O realismo crítico em Descartes consiste em postular o seguinte: há um mundo de matéria exterior às mentes humanas, feito só de qualidades primárias, objetivas, isto é, forma, tamanho, número, movimento. As cores, os cheiros, os sons, sabores, o quente e o frio só existem no interior da minha mente, do organismo do sujeito, pois resultam de movimentos vibratórios de partículas exteriores já que o mundo exterior é apenas composto de formas, movimentos e tamanhos. .Assim, a rosa não é vermelha, é apenas forma e tamanho. O ramo de rosas é apenas formas, tamanho e um certo número de unidades, não tem cor, nem cheiro, nem peso. O mármore não é frio nem duro, o céu não tem cor.

A fenomenologia balança entre o idealismo e o realismo: para a fenomenologia o mundo de matéria existe fora do corpo físico do sujeito, mas não sabe se este mundo está dentro ou fora da mente (envolvente) do sujeito. Tanto o realismo crítico de Descartes como a fenomenologia usam o método céptico, duvidam.  (VALE TRÊS VALORES).

 

C)- O existencialismo é a corrente filosófica segundo a qual a existência precede a essência ou sobrepõe-se a esta, quer dizer, o homem faz-se e refaz-se a cada instante, escolhendo, através do seu livre-arbítrio, uma via de acção ou certo tipo de valores, sem que nenhuma essência pré-definida ( Deus, o destino, o carácter inato, a pressão social, etc) seja capaz de o dominar e determinar. Albert Camus representa, com Sartre, no século XX, um expoente do existencialismo ateu. Camus acentuava o carácter absurdo da existência humana, feita de guerras, de assassínios, de torturas e fome afectando milhões de seres humanos, e a inexistência de Deus ou deuses como criadores de um mundo de injustiças e fealdade. Usava o mito de Sísifo - um personagem que, por ajudar os homens, foi condenado a empurrar diariamente um rochedo até ao alto de uma montanha e a repetir sempre esse esforço, uma vez que os deuses faziam logo rolar o rochedo montanha abaixo- para descrever a situação do operário alienado no trabalho de fábrica, do trabalhador sem horizontes preso à roda do trabalho industrial ou burocrático como Sísifo. Camus considerava o suicídio como uma resposta insuficiente, embora filosófica, ao drama do absurdo da vida, porque significava a renúncia a um mundo mau que permaneceria, e preferia a resistência, a luta por uma existência mais digna, contra o fascismo e todas as formas de exploração do homem e da mulher, luta embora sem esperança de regeneração universal.

 

Segundo Kierkegaard, filósofo existencialista cristão, há três estádios na existência humana: estético, ético e religioso. No estádio estético, o protótipo é o Don Juan, insaciável conquistador de mulheres que vive apenas o prazer do instante, e sente angústia se está apaixonado por uma mulher e teme não a conquistar. O desespero é posterior à angústia: é a frustração sobre algo que já não tem remédio ou que se esgotou. Ao cabo de conquistar e deixar centenas de mulheres, o Don Juan cai no desespero: afinal nada tem, o prazer efémero esvaiu-se. Dá então o salto ao ético: casa-se. No estado ético, o paradigma é do homem casado, fiel à esposa, cumpridor dos seus deveres familiares e sociais. Este estado relaciona-se com o essencialismo, doutrina que afirma que a essência, o modelo do carácter ou do comportamento vem antes da existência e condiciona esta. A monotonia e a necessidade do eterno faz o homem saltar ao estádio religioso, em que Deus é o valor absoluto, apenas importa salvar a alma e os outros pouco ou nada contam. Abraão estava no estádio religioso, de puro misticismo, quando se dispunha a matar o filho Isaac porque «Deus lhe ordenou fazer isso». O estádio religioso é o do puro existencialismo, doutrina que afirma que a existência vive-se em liberdade e angústia sem fórmulas (essências) definidas, buscando um Deus que não está nas igrejas nem nos ritos oficiais. Neste estádio, o homem casado pode abandonar a mulher e os filhos se «Deus lhe exigir» retirar-se para um mosteiro a meditar ou para uma região subdesenvolvida a auxiliar gente esfomeada. A escolha a cada momento ante a alternativa é a pedra de toque do existencialismo.

Kierkegaard acentuava a noção de angústia, essa liberdade bloqueada, essa intranquilidade que surge antes ou durante muitos actos decisivos (exemplo: a angústia do aluno antes de saber a nota do teste, a angústia da mãe antes do parto, etc). Camus não resolve o paradoxo da existência, ela é absurda e ele postula não haver Deus, ao passo que Kierkegaard situa o paradoxo no interior do estado religioso e diz que se deve amar e seguir a vontade de Deus apesar de não compreendermos esta. (VALE QUATRO VALORES).

 

D) O princípio da falsificabilidade de Popper estabelece que as ciências são conjuntos de conjecturas (conjecturalismo), isto é, as suas leis ou teses são hipóteses, conjecturas potencialmente falsas, falsificáveis, refutáveis. Isso exige aplicar permanentemente o princípio da testabilidade: há que submeter a constantes testes experimentais as teses de uma ciência. Entre as várias teorias na mesma área científica ( exemplo: vacinar ou não vacinar na medicina preventiva; heliocentrismo versus geocentrismo na astrofísica) Popper defende que se deve escolher a mais verosímil, a que dá mais garantias, sublinhando que a ciência é uma aproximação incessante à verdade sem nunca abarcar o todo desta.

O relativismo é a doutrina segundo a qual a verdade, os valores éticos, estéticos, científicos, etc, variam de povo a povo, de grupo a grupo, classe a classe social, de época a época, etc. Pode dizer-se que a epistemologia de Popper é relativista porque a verdade, falível em cada campo das ciências, muda com frequência, é relativa à época.

O idealismo solipsista sustenta que o mundo material exterior se reduz a percepções empíricas e ideias, a matéria não existe em si mesma, dentro de uma única realidade, a minha mente de sujeito. Popper considerava-se realista e não idealista solipsista. (VALE TRÊS VALORES).

 

 

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Quarta-feira, 10 de Julho de 2013
Sobre a Analogia e as Causas do Homem na «Metafísica» de Aristóteles

 

A analogia é, segundo Aristóteles, um nível transgenérico, superior aos géneros. Tal como o género, a analogia é um universal. A primeira analogia teorizada por Aristóteles é entre ser e uno.

 

Uno pode ser interpretado de duas maneiras diferentes: como quantidade, visão de Aristóteles, isto é acidente interno da substância (exemplo: «Esta árvore é una, é uma só»); como substância, visão de Platão, isto é ser-essência geral (exemplo: « O ser é o mundo dos arquétipos, englobando o Bem, o Belo, o Justo, o Uno, a Sabedoria»). Nesta óptica, Uno é adjectivo ou numeral em Aristóteles e substantivo em Platão.

 

«Ademais, mas em outro sentido, os princípios são os mesmos analogicamente: assim é com acto e potência, se bem que estes são também distintos, e de distintos modos, para coisas distintas. » (Aristóteles, Metafísica, livro XII, 1071 a, 1-5).

 

Acto e potência são análogos? Não serão espécies do género «modos de ser»? E as espécies são análogas entre si? Ou são genericamente unas?

 

«Ademais, ainda que as causas das substâncias o sejam de todas as coisas,sem embargo, como foi dito, as causas e os princípios são distintos para coisas distintas que não pertencem ao mesmo género - cores, sons, substância, qualidade - a não ser analogicamente.» (Aristóteles, Metafísica, livro XII, 1071 a, 25-30).

 

Cores e sons, em certo sentido, não pertencem ao mesmo género: cores e formas visíveis são espécies do género visão e sons e silêncio são espécies do género audição. Mas, na verdade, sendo árvore e homem  espécies do género ser vivo, podemos detectar uma analogia de forma entre ambas: as raízes da árvore são análogas aos pés do homem, o tronco da árvore é análogo às pernas e ao tronco do homem, os ramos são análogos aos braços, a copa é análoga à cabeça.  Assim, neste caso, a analogia instala-se no seio do género e não está acima dele.  

 

Mas há, certamente, analogia entre géneros como, por exemplo, a analogia entre o género "ser" (ontologia)  e o género "conhecer" (gnosiologia).

 

O SOL E A ECLÍPTICA, CAUSAS DO HOMEM,  NÃO TÊM FORMA?

 

Como causas do homem, Aristóteles aponta os elementos, a forma ou essência, o pai e a mãe, o sol e a roda das constelações atravessada pela trajectória aparente do sol designada por eclíptica:

 

«Assim, do homem, são causa os elementos - fogo e água enquanto matéria - e a forma própria e também algum agente exterior como o pai; e além de tais coisas, o sol e a eclíptica, os quais não sendo matéria nem forma nem privação, nem sendo da mesma espécie são, sem embargo, produtores de movimento»

«Além do mais, há-de observar-se que algumas coisas podem enunciar-se universalmente, mas outras não. Os princípios imediatos de todas as coisas são o isto primeiro em acto e outra coisa que está em potência. Portanto, aqueles universais não existem, já que o indivíduo é princípio dos indivíduos.»

( Aristóteles, Metafísica, livro XII, 1071 a, 10-20; o destaque a bold é da minha autoria).

 

Nestes excertos, Aristóteles frisa a primazia do individual concreto sobre o universal. Ao dizer que os universais não existem, Aristóteles está a criticar a teoria das Ideias em Platão segundo a qual, por exemplo, a Ideia de Homem - uma forma imutável, eterna e perfeita de homem - existe separada, num mundo inteligível, supra-terreno.

 

Mas questionemos o que Aristóteles escreve sobre o sol. Este tem forma circular e matéria ígnea - aliás, matéria etérea ou quinta essência no sistema aristotélico, se não erro. Como pode Aristóteles negar forma ao sol?  E como pode algo sem forma nem matéria produzir movimento, exceptuando Deus, o pensamento imóvel e eterno? E a eclíptica ou trajectória aparente do Sol não tem forma ou é uma forma sem matéria em permanente actualização?

 

Suponho que Aristóteles nega que o sol e a eclíptica tenham forma comum (eidos) ou essência mas não nega que possuam forma ou configuração individual.


É de salientar que ao dizer que o sol e a eclíptica são causas do homem e produtores do movimento Aristóteles pode estar a querer significar que há um determinismo astral, solar e zodiacal, na vida do homem: o nascimento, o crescimento, a estabilização na maturidade, do homem - e quiçá as suas acções ou grande parte destas - são geradas pelo movimento do sol na eclíptica e pelos graus desta (graus do Zodíaco). 

  

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Quarta-feira, 24 de Outubro de 2012
Crítica de Aristóteles a Platão: o Relativo não é uma Forma, uma Substância separada

 

Em «Metafísica», livro de oiro da filosofia, Aristóteles critica a doutrina platónica do Uno e da Díade do Grande e do Pequeno como princípios geradores dos entes. Escreveu:

 

«Os que põem o Desigual como algo uno e constituem a Díada Indefinida a partir do Grande e do Pequeno dizem coisas demasiado afastadas do comunmente admitido e do possível. Sucede que essas coisas, melhor do que sujeitos, são afeções e acidentes dos números e do tamanho - o Muito e o Pouco do número, o Grande e Pequeno do tamanho - do mesmo modo que Par e Ímpar, Liso e Rugoso, Recto e Curvo. A este erro há que somar que Grande e Pequeno e todas as coisas que são tal, são necessariamente termos relativos. Ora bem, o relativo é, de todas as categorias, a que tem natureza e substância em muito menor grau, e é posterior à qualidade e à quantidade. E, como se disse, a relação é uma afeção da quantidade, mas não matéria, já que outra coisa é a matéria que serve de substrato tanto ao relativo em geral como às suas partes e espécies» ( Aristóteles, Metafísica, Livro XIV, 1088a, 15-25; o destaque a negrito é colocado por mim).

 

No fundo, Aristóteles critica Platão não só por teorizar uma região de essências aparte - o mundo Inteligível, acima do céu visível - mas também por não hierarquizar, em termos de anterioridade e posterioridade, a essência- substância (exemplo: a árvore) como anterior à essência- acidente (exemplo: o belo) no mundo dos arquétipos.  Platão coloca o arquétipo de Belo como anterior ao arquétipo de Árvore, ressalvando que em algum dos seus textos coloca em dúvida a existência da forma arquetípica árvore, e Aristóteles faz o inverso: coloca a essência ou forma eterna de Árvore como anterior à qualidade de Belo que apenas surge nas coisas belas. Aristóteles considera o mundo platónico das essências uma abstração onde as formas aparecem desarticuladas entre si, todas num mesmo plano,  como as peças de Lego que servem para construir uma casa. No pensamento aristotélico, o relativo não é sequer uma substância (ousía) uma forma substancial,  e esta é, em princípio, anterior ao acidente.

 

Aristóteles hipostasiou as Ideias de Platão nos próprios objectos sensíveis da matéria, ao passo que Platão hiperestasiou a essência e os acidentes dos objectos sensíveis num mundo inteligível, situado acima do céu visível.

 

Aristóteles opôs-se à ontogénese matemática definida por Platão:

 

«Desde logo, nem a Díada Indefinida nem o Grande e o Pequeno ´são causas de que haja dois «brancos», o de que haja muitas cores, sabores e figuras. Mas em tal caso, essas coisas seriam também números e unidades. » (..)

«Este erro é causa também de que, ao buscar o oposto de O que é e do Uno (de aquele e deste proviriam as coisas que são) propuseram o Relativo e o Desigual, que não é nem o contrário nem a negação de eles, mas é uma das coisas que são, uma natureza particular como o quê e a qualidade. E isto haveria também que investigar, como os relativos são muitos e não só um.» (Aristóteles, Metafísica, Livro XIV, 1089a, 35/ 1089b, 1-5; o destaque a negrito é posto por mim).

 

 Por lacuna parcelar de pensamento dialético, Aristóteles coloca o relativo fora da oposição uno-múltiplo, ignorando que o relativo engloba o uno e o múltiplo, e é portanto o uno e o seu contrário, uma determinação holística. Continuando a referir-se aos platónicos, escreveu Aristóteles:

 

«E falam de mais espécies ainda do Relativo. Qual é, então, a causa de que estas sejam muitas? Assim, pois, é necessário, como dizíamos, estabelecer aquilo que é potência a respeito de cada tipo de realidade ( o que propôs esta teoria explicou o que é potencialmente um isto (tóde tí) e uma substância, sem sê-lo por si mesmo, dizendo que tal coisa é o Relativo; ao mesmo teria podido ocorrer dizer que tal coisa é a qualidade, a qual nem é potencialmente o Uno nem O que é, nem é tampouco negação do Uno e de O que é, mas uma, em particular das coisas que são) e muito mais ainda, como se disse, se se trata de  investigar como são muitas as coisas que são, e não de investigar, dentro da mesma categoria, como é que são muitas as substâncias, ou muitas as qualidades, mas como é que são muitas as coisas que são». (Aristóteles, Metafísica, Livro XIV, 1089, 15-20, )

 

É contestável o que Aristóteles aqui escreveu. A identificação de Uno com O que é permanece equívoca, constitui um dos calcanhares de Aquiles da «Metafísica» de Aristóteles: o Múltiplo é, tanto como o Uno, o que é. Esta é a visão dialética que sustento: não há uno sem múltiplo, ambos são em igual grau. O relativo abarca uno e múltiplo: os contrários são relativos entre si, os contraditórios são relativos entre si, o que Aristóteles não soube equacionar correctamente no Livro X da Metafísica, uma vez que classificou os relativos como uma espécie extrínsexca às espécies contraditórios e contrários.  Por que razão a Qualidade é uma das coisas do Uno? Não é o Uno uma Qualidade? De acordo com a filosofia aristotélica o uno ou é substância, ou é acidente, e neste último caso, será Qualidade, Quantidade ou Relação ou as três coisas ao mesmo tempo.

 

Diga-se o que se disser, a «Metafísica» de Aristóteles é um livro mais importante que «Ser e Tempo» de Heidegger ou de que «O Ser e o Nada» de Sartre. Aristóteles é muito mais preciso nos pormenores de definição, do polimento das faces do "diamante" do ser, o diamante ontológico, que a generalidade dos filósofos posteriores.

 

 

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Sábado, 7 de Janeiro de 2012
Questionar Kant: a totalidade é categoria de quantidade?

 

Kant definiu doze categorias ou conceitos puros do entendimento que permitem modelar e pensar os fenómenos. Como categorias da quantidade colocou:

 

 

Unidade.

Pluralidade.

Totalidade.

 

(Kant, Crítica da Razão Pura, página 110, Fundação Calouste Gulbenkian).  

 

Mas a totalidade é uma categoria da quantidade? Qual é a quantidade que há num todo? Unidade sugere um, pluralidade designa dois, três, quatro, cinco, vinte, mil, um milhão, etc. A totalidade opõe-se à parcialidade, o todo opõe-se à parte. Por que razão o todo não é uma qualidade mas sim uma quantidade? Parece-me que o todo é simultaneamente uma quantidade determinada (um) e uma qualidade (por exemplo: energia; alma; turma de alunos; sabedoria; vitalidade, etc). Note-se que emprego o termo qualidade num sentido distinto, mais vasto, do que o usado em Aristóteles - neste a qualidade é um predicado, um acidente da substância, como por exemplo a cor branca é uma qualidade da substância "este cavalo" - abrangendo as substâncias ou entes individuais (exemplo: esta cidade de Beja, esta região do Alentejo, são qualidades do ente ou «ser» Portugal, etc, etc). Mas, no todo, aquilo que o faz ser todo é a continuidade e contiguidade das suas partes entre si, ou seja, uma qualidade unitária que subjaz à pluralidade das partes, se as houver.

 

Em suma: se Kant colocou a totalidade como categoria da quantidade, deveria igualmente colocá-la como categoria da qualidade. E deveria emparelhar a totalidade com a parcialidade, visto que estão dialeticamente ligadas.

 

O todo é uma espécie dentro do género unidade, é uma modalidade de unidade. A parte é outra espécie do género unidade.

 

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Sexta-feira, 30 de Setembro de 2011
John Locke abre a porta ao idealismo e à fenomenologia

John Locke está no limite entre o idealismo e o realismo, já fora deste, porque não garante que a matéria seja substância, mas apenas um modo de apreensão da substância incognoscível. É o atomismo perceptivo - verdadeira filosofia analítica do século XVII - que permite colocar um ponto de interrogação sobre o conceito de substância. A substância está fora de mim mas é incognoscível. Kant virá buscar a isto ,e à tese similar de David Hume, a ideia de númeno, o objecto incognoscível fora da mente humana e do mundo natural englobado nesta. Locke escreveu:

 

«Logo, quando discutimos ou pensamos acerca de quaisquer tipos de substâncias materiais como o cavalo, a pedra, etc, embora a ideia que possuímos de ambos seja apenas a compilação ou a associação dessas múltiplas ideias simples das qualidades sensíveis que costumávamos encontrar unificadas na coisa denominada cavalo ou pedra, uma vez que não podemos conceber como é que ambas poderiam subsistir sozinhas ou uma na outra, supomos que existem num objecto comum ou são suportadas por ele. Este suporte é registado sob o nome de substância, embora seja claro que não temos uma ideia clara e distinta acerca dessa coisa que supomos ser um suporte.»

 

(John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano, volume I, pag 389, Fundação Calouste Gulbenkian).

 

Isto significa que o grau de dureza da vasilha de barro, o seu cheiro típico, a sua forma arredondada são ideias simples e reais mas a substância no seu todo que nos é dada pela ideia complexa de vasilha de barro, já é obscura ontologicamente. A passagem da parte (a ideia simples) ao todo (a ideia complexa) é mediada por uma espécie de cortina de névoa que não permite divisar os contornos, a natureza dos objectos exteriores.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 14 de Setembro de 2011
Aristóteles interpreta Platão: o Grande e o Pequeno não seriam Formas mas Princípios imanentes à matéria

 

Aristóteles compara do seguinte modo o platonismo ao pitagorismo: 

 

« Platão afirma ademais, que entre as coisas sensíveis e as Formas existem as Realidades Matemáticas, distintas das coisas sensíveis por serem eternas e imóveis, e das Formas porque há muitas semelhantes,enquanto que cada forma é somente uma e ela mesma. E posto que as Formas são causas do resto, pensou que os elementos de aquelas são os elementos de todas as coisas que são , que o Grande e o Pequeno são princípios enquanto matéria e que o Uno o é enquanto substância. Com efeito, a partir de aqueles, por participação no Uno, as Formas são os Números. E quanto a que o Uno é, por seu lado, substância, e não se diz que é uno sendo outra coisa, pronunciou-se de modo muito próximo aos Pitagóricos, e igual a estes a respeito de os Números serem causa da substância das demais coisas.

 

«Sem embargo, é próprio dele ter posto uma Díade em vez de entender o Ilimitado como uno, assim como haver afirmado que o Ilimitado se compõe do Grande e do Pequeno e ademais distingue-se em que ele situa os Números fora das coisas sensíveis, enquanto que aqueles que afirmam que os Números se identificam com as próprias coisas, e, portanto, não situam as realidades matemáticas entre as Formas e o sensível. O situar, de modo diferente dos pitagóricos, o Uno e as Números fora das coisas e a introdução das Formas surgiu como consequência de que a sua investigação se manteve ao nível dos conceitos.» (Aristóteles, Metafísica, Livro I, 987 b, 15-30; o negrito é posto por mim).

 

 

Neste texto, Aristóteles além de distinguir Platão de Pitágoras quanto à natureza respectivamente transcendente (platonismo) ou imanente (pitagorismo) dos Números, afirma que, na doutrina de Platão, o Grande e o Pequeno compõem o Ilimitado, isto é, o espaço vazio material (a Chora) que Platão teorizava como oposto ao mundo inteligível das Formas ou Arquétipos. A matéria seria dual, não una, ao contrário do mundo das Formas, Uno primordialmente e em simultâneo e de forma derivada, múltiplo. Aparentemente, a dimensão ou extensão - isto é, o Grande e o Pequeno - constituem a essência primordial, imanente, da matéria. Terá Descartes ido beber aqui a ideia da extensão como a natureza do mundo material?

 

A frase algo enigmática «a partir de aqueles (Grande e Pequeno) as Formas são Números» parece-me significar o seguinte: os Números, como intermédio, entre o singular único ( exemplo: o Belo, o Triângulo, o Cubo) e as coisas materiais multiplicam as imitações da Forma (teoria da participação) de maneira a que estas configurem as coisas. Esta configuração das coisas faz-se através da Díada do Grande e do Pequeno, dois princípios aparentemente residentes na matéria indiferenciada que espera receber a imagem das Formas através dos Números.

 

Se o Igual, o Maior e o Menor são arquétipos, formas do mundo inteligível, não deveriam igualmente o Grande e o Pequeno figurar nesse mundo? Sim, a menos que Grande e Pequeno designem quantidades definidas, aprisionadas na matéria  - exemplo: homem com estatura de 160 centímetros é pequeno, com estatura de 170 a 175 centímetros  é moderamente grande, com estatura de 200 a 220 centímetros é muito grande - e não tenham o carácter abstracto e perene das Formas.

 

 

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Quinta-feira, 4 de Agosto de 2011
As sete espécies de relação filosófica segundo David Hume e discrepâncias com Kant

 

No seu «Tratado da Natureza Humana», obra tão importante quanto a «Crítica da Razão pura» de Kant, David Hume escreveu:

 

«Há sete espécies diferentes de relação filosófica: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. Podem dividir-se estas relações em duas classes: as que dependem inteiramente das ideias que comparamos entre si e as que podem variar sem qualquer mudança de ideias. É da ideia de triângulo que deduzimos a relação de igualdade que existe entre os seus três ângulos e dois rectos; e esta relação é invariável enquanto a nossa ideia permanecer a mesma. As relações de contiguidade e distância entre dois objectos pelo contrário podem variar apenas por uma alteração de lugar, sem qualquer mudança nos objectos ou nas ideias; e o lugar depende de inúmeras circunstâncias diversas, as quais a mente não pode prever. O mesmo se pasa com a identidade e a causação.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 103, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrito é colocada por mim).

 

As sete relações filosóficas são sete formas, uma delas a priori - parece-me que a proporção de quantidade ou número é a priori - e as outras seis a posteriori do entendimento e da faculdade perceptiva humana que correspondem, de certo modo, às doze categorias formuladas posteriormente por Kant. Hume escreveu:

«Já observei que a geometria ou a arte pela qual determinamos as proporções das figuras, embora ultrapasse muito, tanto em universalidade como em exactidão, os juízos imprecisos dos sentidos e da imaginação, nunca atinge contudo perfeita precisão e exactidão. Os seus primeiros princípios são ainda deduzidos da aparência geral dos objectos (...)

«Restam, portanto, a álgebra e a aritmética como as únicas ciências nas quais podemos levar uma cadeia de raciocínios até um certo grau de complicação, conservando contudo uma perfeita exactidão e certeza. Estamos de posse de um critério preciso que nos permite ajuizar da igualdade e proporção dos números; e, conforme estes correspondem ou não ao critério, determinamos-lhe as relações sem qualquer possibilidade de erro.»

(David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 105, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrito é colocada por mim).

 

Kant leu Hume e inspirou-se nas suas «relações filosóficas», em particular na causação e nas relações de tempo e lugar. A revolução coperniciana no conhecimento - a inversão de papéis entre o sujeito e o objecto - de que Kant se proclama autor foi realizada, na Idade Moderna, não por ele mas por George Berkeley e prosseguida por David Hume.

 

Note-se que Hume considerou que aquelas sete relações - em particular as de identidade,  relações de tempo e lugar e causação ou causa-efeito - não podem por si sós produzir conhecimentos uma vez que necessitam de dados empíricos e quase todas nascem da comparação destes, isto é, nascem do concurso dos sentidos e da imaginação. Quase todas são pois relações filosóficas ou "categorias"  a posteriori, ao contrário das doze categorias de Kant que são estruturas a priori do entendimento, capazes de formular conceitos como o de "uno" e os de números três, quatro, cinco, sem haver experiência.

 

E Hume não incluiu nestas sete relações, entre outras, a categoria de substância/acidente que Kant viria a postular porque não gradua ontologicamente as qualidades dos objectos como Kant o fez. Segundo Kant, a essência de um vinho é o sumo  fermentado da uva e o sabor ou a cor são acidentes, qualidades subjectivas que não existem no fenómeno vinho mas no nosso modo de o perceber, mas Hume não via razões para tal distinção, uma vez que a cor e o sabor do vinho são propriedades tão essenciais quanto a textura líquida e a taxa de alcóol.

 

 

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Segunda-feira, 20 de Junho de 2011
A essência como algo material na teoria de Hegel


 

Na "Fenomenologia do Espírito" Hegel escreveu:

 

« Mas o espírito não se mostrou ante nós como simples recolhimento da autoconsciência na sua pura interioridade, nem como o mero afundamento da autoconsciência na substância e no não ser da sua diferença, mas como este movimento do si mesmo que se aliena de si mesmo e se afunda na sua substância que, como sujeito, se adentrou em si partindo dela e convertendo-a em objecto e conteúdo, ao superar esta diferença da objectividade e do conteúdo. Aquela primeira reflexão partindo da imediatez é o diferenciar-se o sujeito da sua substância ou o conceito que se cinde, o ir para dentro de si e o devir do eu puro. Enquanto esta é um puro operar do eu=eu, o conceito é a necessidade e o surgir do ser aí (Dasein) que tem a substância como sua essência e subsiste para si. Mas o subsistir do ser aí para si é o conceito posto na determinabilidade e, portanto, o seu movimento nele mesmo, consiste em afundar-se na simples substância, que somente é sujeito como esta negatividade e este movimento. O eu não tem razão para aferrar-se à forma da autoconsciência contra a forma da substancialidade e objectividade, como se tivesse medo da sua alienação; a força do espírito consiste em permanecer igual a si mesmo na sua alienação e, como que é em si e para si, em pôr o ser para si somente como momento, como se punha o ser em si.» (Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, pags 470-471; o negrito é posto por mim).

 

 

Note-se que, neste excerto de Hegel, o termo substância possui um sentido fisicalista: a matéria é substância, o espírito em si não. Estamos, pois, em termos de terminologia, longe da res divina ( substância divina) expressão que Desacartes usava ao referir-se a Deus. Temos, no texto acima, as três fases do espírito, estático e em movimento,- as que compõem a dialéctica espiralar, quase circular, de Hegel - assim expressas:

 

1. Autoconsciência em si. O ser em si. O espírito, Deus, um pensamento universal abstracto, o ser, antes de criar o mundo físico, o espaço e o tempo. A imediatez, em sentido ontológico e protológico.

2. A substância da autoconsciência ou a autoconsciência alienada: o ser fora de si, na sua diferença como substância material, a matéria, o mundo da natureza biofísica, que é uma alienação do espírito puro, o objecto e o conteúdo (material) do espírito, substancialidade e objectividade. É negatividade porque a matéria nega o espírito, ao não possuir ideias, raciocínio, imaginação.

3. A autoconsciência como conceito: o ser para si, ou a consciência que, após mergulhar na matéria, reentra em si, na primeira fase, mas enriquecida com o saber da experiência.

 

 

O termo imediatez em Hegel parece ter um significado duplo: há a imediatez do ser puro, que é espírito ainda virgem, abstracto, ao qual nada foi acrescentado, uma imediatez ontológica, por assim dizer; e a imediatez da sensação, que é natureza biofísica "reflectida"  instantaneamente na consciência humana, sem a reflexão própria do conceito, do intelecto, uma imediatez gnosiológica.

 

Hegel dá ao termo essência um sentido material. Isto é expurgar a essência, do seio do ser puro. Ser = espírito, essência= matéria, conceito = ser para si, ser individuado (Dasein) que é reflexão, regresso do pensar a si mesmo. Em Aristóteles, a essência (eidos) era uma forma eterna, destituída de matéria. Aristóteles designava a essência incarnada na matéria por substância primeira (proté ousía). Mas com Hegel, a essência passa a designar a substância, a forma preenchida por matéria. E isso abre caminho já ao materialismo de Marx e Engels.

 

 

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