Aristóteles definiu Deus como um pensamento activo, perfeito, imutável, imóvel, fonte do bem e causa indirecta, passiva, de todo o movimento no universo. E esse pensamento vivo é substância, isto é, a substância primeira imaterial, princípio da perfeição. Todavia, o neoaristotélico medieval SãoTomás de Aquino recusou atribuir a Deus a condição de substância.
Escreveu Aristóteles:
«E posto que há algo que move sendo ele mesmo imóvel, estando em acto, esse não pode mudar em nenhum sentido. ( ) Trata-se de algo que existe necessariamente. E enquanto existe necessariamente é perfeito, e deste modo é princípio. ( )
«De um tal princípio pendem o Universo e a Natureza. E a sua actividade é como a mais perfeita que somos capazes de realizar por um breve intervalo de tempo (ele está sempre em tal estado, o que para nós é impossível), pois a sua actividade é prazer (por isso o estar desperto, a sensação e o pensamento são sumamente prazenteiros e em virtude disto são-no também as esperanças e as recordações). »
«Do que foi dito, resulta evidente, por conseguinte, que há uma certa substância (ousía) eterna e imóvel, e separada das coisas sensíveis. Foi igualmente demonstrado que tal substância não tem em absoluto, tamanho, mas carece de partes e é indivisível.» (Aristóteles, Metafísica, Livro 12, capítulo VII, 1072b-1073a; o bold é nosso).»
São Tomás de Aquino nega que Deus pertença a qualquer género, inclusive ao género substância:
«Artigo 5º
Deus pertence ou não pertence a algum género?
Objecções pelas quais parece que Deus pertence a algum género:
1. Substância é o ser que subsiste por si mesmo. Isto corresponde sobretudo a Deus. Portanto, Deus pertence ao género da substância. ( )
Resposta às objecções: À primeira há que dizer: A palavra substância não significa somente o que subsiste por si mesmo, pois o que é ser enquanto tal não é género, como se demonstrou. Mas significa a essência a que lhe corresponde ser assim, isto é, ser por si mesma. Sem embargo, o ser não é a sua própria essência. Deste modo, é claro que Deus não pertence ao género da substância.» (Santo Tomás de Aquino, Suma de Teologia, I, Parte I, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, pags 119-120; o bold sem itálico é nosso).
Não é claro, a meu ver, este texto do doutor angélico: a frase «o ser não é a sua própria essência» é equívoca, como equívoca é a consequência «Deste modo, é claro que Deus não pertence ao género da substância». São Tomás joga com um duplo sentido da palavra ser: existência em geral; ente supremo, princípio criador. É certo que a substância é um ser-aí, um ser-algo, além de ser (existir em geral). Mas para fazer Deus escapar da redoma do género substância, que identifica com essência, o doutor angélico afirma, em contradição com outras passagens da Suma, que o ser (Deus) «não é a sua própria essência».
São Tomás usa nos dois sentidos conferidos por Aristóteles, com alguma ambiguidade, a palavra substância (ousía): objecto ou ente singular, único; essência, ou seja, forma comum (eidos), colectiva, a diversas substâncias individuais.
Deus, ser singular, é uma substância espiritual, imóvel e eterna, no dizer de Aristóteles; mas não é substância e não pertence ao género substância para São Tomás . Parece que o erro reside neste último.
Aliás, São Tomás admitiu que o Filho - uma das pessoas constituintes de Deus - é engendrado substancialmente do Pai, isto é, a substância (essência individualizada) do Filho nasce do Pai:
«Segundo o Damasceno, ingénito significa o mesmo que incriado, em um sentido: o substancial. E nisto se diferencia a substância criada da incriada.(...) É assim que não se pode deduzir que o Pai ingénito se distinga do Filho engendrado substancialmente, mas que só há distinção de relação, isto é, enquanto a relação filial não se dá no Pai.» (Santo Tomás de Aquino, Suma de Teología, Tomo I, pag 353).
Não pode haver dúvidas de que o Filho, parte integrante de Deus, possui substância. Como seria possível, pois, que Deus não pertencesse ao género substância?
Afinal, o que é substância, em sentido pleno do termo, isto é, de substância primeira (proté ousía), na doutrina aristotélica? É uma forma individualizada: pela matéria ou não. Deus é a substância incriada (a proté ousía), a forma pura sem matéria, a única substância em que a essência é a sua própria existência.
Pertence pois à espécie substância, sendo embora absolutamente singular e distinto, em grau superior, de todas as outras substâncias.O problema central da divergência entre Aristóteles e São Tomás está no conceito de substância. Para Aristóteles, a substância primeira (prote ousia) resulta da fusão entre a essência ( exemplo: cavalo) e uma porção de matéria prima que individualiza ( e assim a substância é, por exemplo, «este cavalo chamado Pégaso de cor branca»).
David Icke é uma substância, um homem individualizado, Eduardo Aroso é outra substância, outro homem individualizado distinto de Icke: só têm a mesma essência, isto é, a forma comum «homem». Diferenciam-nos os acidentes, isto é, os pormenores.
Ora São Tomás pretende que Deus não seja uma substância, neste caso um Deus individualizado, julgo, porque isso implicaria a partição de Deus: o Deus dos católicos, o Deus dos cátaros, o Deus dos judeus, Allah, etc. Substância primeira é individualização mas Aristóteles não recusa que Deus seja a substância, o ente, anterior ao universo e regente deste.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica