Quinta-feira, 31 de Março de 2022
São Tomás: Deus tem uma vontade imutável

São Tomás de Aquino responde do seguinte modo à questão A vontade de Deus é ou não mutável?

«Objeções pelas quais parece que a vontade de Deus é mutável:

«1. Diz o Senhor em Génesis 6-7: Arrependo-me de ter feito o homem. Mas todo aquele que se aborrece do feito, tem uma vontade mutável. Logo Deus tem uma vontade mutável.

 

Ao contrário, está o que se diz em Números, 23,19, : Deus não mente como se fosse um homem; Deus não muda como se fosse um homem.

Solução. Há que dizer: A vontade de Deus é completamente imutável. (...) Pois alguém de vontade permanentemente imutável, pode fazer isto agora e depois fazer o contrário. Mas a vontade mudaria se alguém começasse a querer o que antes não quis, ou deixa de querer o que quis».

(Santo Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Parte 1, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, pág. 251-252).

O facto de Deus se arrepender de ter criado o homem não significa vontade mutável, mas sim opinião ou avaliação mutável porque o arrependimento é compatível com a vontade imutável de criar um ser perfeito, sem pecado. Deus pode arrepender-se e manter a Sua vontade perfecionista, sempre a mesma.

Nota- O autor deste blog está disponível para ir a escolas e universidades dar conferências filosóficas ou participar em debates. 

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Terça-feira, 21 de Dezembro de 2021
São Tomás : a alma não é corpo

Contra a opinião dos filósofos naturalistas que sustentavam ser a alma a força que move o corpo, portanto uma energia corporal, ainda que Aristóteles falasse vários tipos de alma, uma delas a alma intelectiva ou racional, sede do livre-arbítrio, escreveu São Tomás de Aquino:

«Bem, como fica demonstrado em Física ( de Aristóteles) VIII, há algum motor inteiramente imóvel que não se move nem substancial nem acidentalmente. E tal motor provoca um movimento sempre uniforme. Há outro motor que não se move substancial mas acidentalmente . Por isso o seu movimento não é uniforme. Este tipo de motor é a alma. E há outro tipo de motor que se move substancialmente: é o corpo. Como os antigos naturalistas acreditavam só na existência dos corpos, sustentaram que todo o motor se move, e que alma é corpo e que se move substancialmente».

(Santo Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Parte 1, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, pág. 673).

O motor absolutamente imóvel é Deus, que suscita o movimento uniforme da esfera celeste, geradora e medida do tempo. Mas o motor essencialmente imóvel que só acidentalmente se move é a alma. Falta exemplificar como se move a alma: será, por exemplo, a alma purificar-se pela devoção a Deus e o amor ao próximo a ponto de curar uma doença grave no corpo?

São Tomás acrescenta ainda:

«Há dois tipos de contacto: Físico e espiritual. O primeiro não se dá mais do que quando um corpo toca outro corpo. O segundo permite que um corpo seja tocado por algo  incorpóreo que impulsiona o corpo» (ibid, pág. 673).

Este algo incorpóreo é a alma. São Tomás diverge aqui de Aristóteles que considerava a alma como a forma do corpo.



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Sábado, 13 de Novembro de 2021
São Tomás: o entendimento está fora da forma ou alma do homem

São Tomás de Aquino escreveu, respondendo à questão de saber se «o princípio imtelectivo se multiplica ou não se multiplica conforme se multiplicam os corpos»:

«Que o entendimento seja um só para todos os homens é de todo impossível. Isto resulta evidente se, seguindo Platão, o homem é o seu próprio entendimento. Pois haveria de concluir que o entendimento de Sócrates e Platão é um único entendimento, Sócrates e Platão são um só homem, e não se distinguiriam entre si mais que por elementos alheios a suas respetivas essências (...).

«Igualmente resulta impossível se, seguindo Aristóteles (De anima 2, c.2,n.12), afirmamos que o entendimento é parte ou potência da alma , que é a forma do homem.»

(Santo Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Parte 1, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, pág. 687).

Alma, para São Tomás, é princípio vital, a forma do corpo humano e não espírito puro, desincarnado,  como hoje e desde há séculos o cristianismo a concebe, de um modo geral.

 

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Sexta-feira, 12 de Novembro de 2021
São Tomás:Deus conhece o futuro contingente

A contingência é o que pode acontecer ou não, o acaso, a imprevisibilidade. Para os seres humanos a vida está recheada de contingências ( as vitórias e derrotas no desporto, na política partidária, nos amores, na saúde, nas finanças de cada um, etc)  e daí os acertos e os erros, a insegurança relativa. A vida é uma permanente série de apostas, de viragens contingentes porque imprevistas ou de resultado desconhecido. Mas Deus sabe tudo, o passado e o futuro, nada é contingente para Ele. Lê ou vê o futuro sem o predestinar. São Tomás de Aquino escreveu:

«O que passa a estar em acto no tempo, é conhecido por nós de forma sucessiva no tempo,  mas Deus conhece-o na eternidade que está por cima do tempo. »

(Santo Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Parte 1, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, pág. 216.

Estar em acto significa realidade presente, no momento actual: a semente é semente em acto.  Estar em potência significa possibilidade de vir a acontecer de certa maneira: a criança é um adulto em potência. Deus é o acto puro, não muda, é eternamente o Mesmo. 



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Domingo, 15 de Março de 2020
São Tomás: racional é dos homens, intelectual é dos anjos

 

Platão dividiu o conhecimento intelectual em dianoia (raciocínio matemático e analítico) e noese (intuição inteligível dos arquétipos, sem usar o raciocínio). São Tomás de Aquino distinguiu o intelectual do racional. Alguns teólogos sustentaram que nos anjos não existe amor electivo, isto é, de livre escolha. E São Tomás descreve assim esse argumento:

 

«Objeções por as quais parece que nos anjos não há amor electivo: 

«1. O amor electivo parece ser um amor racional, já que a escolha se segue ao conselho e o conselho é uma deliberação como se diz em III Ethic (de Aristóteles). Mas o amor racional contrapõe-se ao intelectual, que é próprio dos anjos como se diz no capítulo 4 de De Div. Nom. (Dionísio). Portanto, nos anjos não há amor de livre escolha.»

 

O doutor angélico responde assim: 

«Nem todo o amor de livre escolha é amor natural no sentido em que o amor racional se contrapõe ao intelectual. Chama-se amor racional ao que se segue ao conhecimento discursivo e como dissemos anteriormente ao falar do livre-arbítrio (questão 59 artigo 3 , resposta à objeção 1), nem toda a escolha é consequência de um processo discursivo racional; só a escolha do homem o é. »

 

(Santo Tomas de Aquino, Suma de Teologia, I, Parte I, Cuestion 60, Sobre el amor o dilección de los ángeles, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 2006,  pp 560-561; o destaque a negrito é posto por nós ).

 

Para o doutor angélico, os anjos não necessitam de raciocinar para conhecer e escolher, isto é, dispõem de um livre-arbítrio intuitivo, clarividente:

«Assim, pois, como a natureza intelectual dos anjos é perfeita, só têm conhecimento natural e não discursivo e, sem embargo, há neles amor natural e amor electivo. » (ibid, pág 561).

 

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Sábado, 14 de Março de 2020
São Tomás: o Tempo, o Evo e a Eternidade

 

São Tomás de Aquino estabeleceu que há três categorias de medida da duração das substâncias materiais ou espirituais: o tempo, o evo e a eternidade. O evo é a natureza imutável e a medida de duração das substâncias espirituais, dos anjos, dos demónios,  na teologia cristã medieval.

 

Alguns defenderam que há múltiplos evos mas São Tomás entendeu que só há um. A luta de São Miguel Arcanjo empunhando uma espada de fogo contra Satanás não se desenrolou no tempo mas no evo. Este último é a substância imutável dos anjos e dos astros e, nessa medida, não comporta antes e depois - a natureza de um anjo não muda nunca, é intransmutável - mas na medida em que essa substância é dotada de mobilidade ou de livre-arbítrio e pode desaparecer por vontade de Deus, o Eternamente Presente, ao evo são aplicáveis o antes e o depois - o anjo pode mudar de lugar, escolher a sua trincheira de combate, a pessoa humana a quem dar proteção. São Tomás escreveu:

 

«O evo diferencia-se do tempo e da eternidade como um intermédio entre ambos. Há alguns que estabelecem a diferença dizendo: a eternidade não tem princípio nem fim; o evo tem princípio mas não fim; o tempo tem princípio e fim . Mas trata-se de uma diferença acidental como ficou dito (artigo 4). (...)

«Portanto, se o próprio evo não está submetido à novidade e à antiguidade, a razão deparar-se.á com o facto de ser intransmutável; por isso na sua medida não haverá antes nem depois.»

 

«Por conseguinte, há que dizer: como se quer  que a eternidade é a medida do ser permanente, quanto mais algo se afasta do ser permanente, tanto mais se afasta da eternidade. Há certas coisas que se afastam tanto da permanência do ser, que o seu ser está submetido à mudança, ou é a própria mudança. Por isso são medidos com o tempo. Isto é próprio de todo o movimento e também é próprio de todos os seres corruptíveis». (...)

«Por outro lado, há seres que se afastam muito menos da permanência no ser, porque o seu ser não está submetido à mudança nem é a própria mudança(...) Isto é o próprio dos corpos celestes cujo ser substancial é intransmutável. (...)

 

«Algo parecido se passa com os anjos que têm ser instransmutável submetido à mutabilidade da escolha, algo própria da sua natureza. Por isso, podem mudar a respeito da sua escolha, pensamento, afecto e lugar. E podem ser medidos pelo evo, que é o intermédio entre a eternidade e o tempo». (...)

«O evo é totalidade simultânea, sem embargo não é eternidade, porque está submetido ao antes e  ao depois».

 

(Santo Tomas de Aquino, Suma de Teologia, I, Parte I, Cuestion 10, Sobre la eternidade de Díos, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 2006,  pp 157-158; o destaque a negrito é posto por nós ).

 

Quando lemos a Suma Teológica de São Tomás ou a Física de Aristóteles percebemos que são de qualidade superior ao «Ser e o Tempo» de Heidegger, o grande charlatão da filosofia do século XX.  

 

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Sexta-feira, 8 de Novembro de 2019
São Tomás de Aquino: a alma intelectiva e o sentido do tacto

 

Em resposta aos que defendem que a alma intelectiva, sumamente perfeita, não pode estar unida a um corpo imperfeito, que precisa de ser vestido e calçado e se corrompe, São Tomás escreveu:

 

«Como se queira que a forma não o é pela matéria, mas mais precisamente a matéria pela forma, deve fundamentar-se a partir da forma a razão pela qual  a matéria é de tal natureza e não ao contrário. Pois a alma intelectiva como dissemos anteriormente (questão 55. artigo 2) na ordem da natureza, ocupa o lugar mais baixo entre as substâncias intelectuais, devido a que não lhe é conatural o conhecimento inato da verdade, como o é com os anjos mas que se vê obrigada a desgraná-la através dos sentidos tomando-a da multiplicidade das coisas como diz Dionísio no capítulo 7 de De Div. Nom. Por outro lado, naquilo que é necessário a natureza não falta a nenhum ser. Por isso, seria necessário que a alma intelectiva tivesse não somente a faculdade de entender, mas também a de sentir. Mas como quer que a ação de sentir não se pode levar a cabo mais do que por meio de um orgão corporal, precisa-se por isso que a alma intelectiva se una a um corpo constituído de tal maneira que possa servir convenientemente de orgão aos sentidos

 

«Todos os sentidos se fundamentam no tacto. Mas é preciso que o orgão do tacto seja algo intermédio entre os contrários que pode perceber, como o frio e o quente, o húmido e o seco. Pois assim, encontra-se em potência a respeito de uns e de outros, podendo receber a sensação. Por isso quanto mais se aproxime do dito ponto médio do orgão do tacto, mais perfeita será a capacidade sensível táctil. Mas a alma intelectiva possui o mais alto grau de capacidade de sentir pois como diz Dionísio no livro De Div. Nom., as qualidades do ser inferior encontram-se mais perfeitamente no superior. Portanto, foi necessário que o corpo ao qual estivera unida a alma intelectiva, fosse um corpo composto e de compleição mais equilibrada que os demais.»

«Por isso, de todos os animais o homem é o que possui o melhor tacto. Entre os homens, os de melhor tacto são os de melhor entendimento. »

(Santo Tomas de Aquino, Suma de Teologia, I, Tratado del Hombre, pp. 694-695, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 2006; o destaque a negrito é posto por nós).

 

Note-se que Tomás de Aquino harmoniza a alma intelectiva (o entendimento, a faculdade de raciocinar e intuir intelectualmente) com a alma sensitiva (alguns dos instintos, as percepções empíricas) através do sentido do tacto. Este parece ter prioridade scobre os outros sentidos: um cego surdo e mudo possui o sentido do tacto, além de entendimento .  Diz, no entanto, no início da longa citação acima, que a alma intelectiva do homem é, no reino dos espíritos, o mais baixo destes pois não possui o conhecimento inato da verdade como os anjos possuem. Isso explica, decerto, que haja homens ateus, ou maus de carácter.

 

E em resposta aos que dizem que a alma intelectiva do homem, sumamente perfeita,  não pode unir-se a um corpo tão imperfeito como o do homem que nem sequer possui, como os animais, cascos, cornos,  unhas, dentes e  pelos, fortes e protectores do calor e do frio e das agressões de animais hostis, escreve o filósofo:

 

«A alma intelectiva, porque pode compreender o universal, tem capacidade para o infinito. Por isso a natureza não podia impor-lhe determinadas estimativas naturais, nem tão pouco determinados meios de defesa ou abrigo como aos outros animais, cujas almas têm capacidade de percepção e outras faculdades para coisas particulares. Mas em lugar disso, o homem possui por natureza a razão e as mãos, que são orgão dos orgãos; pelas quais o homem pode preparar uma variedade infinita de instrumentos para infinitos efeitos».

(Santo Tomas de Aquino, Suma de Teologia, I, Tratado del Hombre, pág.695, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 2006; o destaque a negrito é posto por nós).

 

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Terça-feira, 5 de Julho de 2011
Sobre "O Ente e a Essência": ambiguidades em São Tomás e em Santiago de Carvalho

 

Com prefácio do catedrático medievalista Mário Santiago de Carvalho, a Contraponto editou em 1995 "O ente e a essência"  de São Tomás de Aquino. Servi-me dessa edição para leccionar a estudantes alentejanos uma parte do já "desaparecido", na minha escola, programa de Filosofia do 12º ano do ensino secundário em Portugal, que incluía a escolha de três entre vinte obras conceituadas de filosofia. Tanto o texto original de São Tomás como o prefácio de Mário Santiago de Carvalho padecem de imprecisões teóricas, algumas das quais passo a explanar.

 

O ARISTOTELISMO NÃO É ESSENCIALISMO?

 

Em prefácio de uma edição portuguesa de "O Ente e a Essência" de São Tomás de Aquino escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

« Como se insistiu, este é um mérito de Tomás de Aquino, e ele terá consistido em servir-se com rigor da lógica, elucidando-a e pondo-a ao serviço das tarefas da ontologia Este é portanto um aspecto que não quereríamos desvalorizar , pois é, de facto, a linguagem da lógica, o aristotelismo, com o avicenismo e o essencialismo, que galvanizam este texto. » (Mário Santiago de Carvalho in prefácio de "O Ente e a essência" , pag 61, Contraponto, Porto).

 

Que significa para Mário Santiago o termo essencialismo? Tudo leva a crer que significa platonismo, pois separa aristotelismo de essencialismo. Trata-se de um equívoco: o aristotelismo é um essencialismo, uma vez que nele as essências antecedem a existência das coisas materiais, tal como em Platão.

 

A AMBÍGUA DISTINÇÃO ENTRE ESPÉCIE E "NATUREZA HUMANA"

 

São Tomás, enquanto fiel a Aristóteles, distinguiu entre a essência em si mesma (segundo a sua absoluta consideração) e a essência individuada (segundo o ser que possui em cada indivíduo):

 

«Mas a natureza ou essência assim compreendida pode ser considerada de dois modos. Do primeiro modo, segundo a sua noção própria, que é a sua absoluta consideração. (...) Por exemplo, ao homem enquanto homem, corresponde-lhe "racional" e "animal" e outros predicados que entram na definição; mas ser branco ou negro, ou qualquer outra coisa semelhante que não pertença à noção de "humanidade" não corresponde ao homem enquanto homem». (...)

 

«Do segundo modo considera-se (a essência)  segundo o ser que possui neste ou naquele indivíduo. Neste caso, pode atribuir-se-lhe algo por acidente, em razão daquilo em que se encontra. Por exemplo, diz-se que o homem é branco, porque Sócrates é branco, embora isso não pertença ao homem enquanto homem.» (São Tomás de Aquino, "O Ente e a Essência", pag 82-83)

 

«Compete pois à "natureza humana", segundo a sua consideração absoluta, ser atribuída a Sócrates. A noção  de espécie, por sua vez, não lhe compete segundo a sua absoluta consideração, mas deriva de acidentes que a acompanham segundo o ser que possui no intelecto. Por esse motivo, o termo de espécie não é atribuído a Sócrates, como se se dissesse "Sócrates é espécie". Mas isso teria necessariamente de suceder, se a noção de espécie conviesse ao homem segundo o ser que tem em Sócrates, ou segundo a sua absoluta consideração, quer dizer enquanto é homem.» (Tomás de Aquino, ibid, pag 85).

 

Se a "natureza humana", que é o mesmo que a essência homem, como .São Tomás diz no início do livro, convém ao indivíduo Sócrates, porque razão "espécie ´não poderia ser atribuída a homem? É óbvio que, no sentido da extensão, da quantidade dos indivíduos que a integram, Sócrates não é a (toda a) espécie humana, e neste sentido, espécie não lhe convém. Mas do ponto de vista da essência, da forma comum à espécie, esta convém a Sócrates a ponto de se poder dizer: "Sócrates é uma incarnação ou exemplificação da espécie humana" . Aristóteles identificou bem a essência com a espécie (eidos) .O texto de Aquino acima tem falta de clareza.

 

O ABSOLUTO É EXTERIOR AO SINGULAR E AO UNIVERSAL? A ESSÊNCIA É MÚLTIPLA NA ALMA?

 

Referindo-se aos dois modos de considerar a essência teorizados por São Tomás, escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

«A consideração absoluta é evidentemente o ideal da ciência, o índice de que é genuinamente científica a linguagem que fazemos. (...) Sempre que possível, o ontólogo deve privilegiar este plano que não é singular nem universal, mas é absoluto

«No segundo modo, a natureza ou essência já não se considera na sua significação, mas na sua realização. Encontramo-nos a um nível menos abstracto. Neste segundo plano acontece aquilo que se recusava ao primeiro. Se, neste, a essência não podia ser una nem múltipla, já no segundo caso é isso que acontece, ela é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e é una na realidade (os unissingulares)». (Mário Santiago de Carvalho, in introdução de "O Ente e a Essência", pag 36; o negrito é de minha autoria).

 

 

Por que razão o plano da essência na sua consideração absoluta (exemplo: "o homem enquanto homem") «não é singular, nem universal, mas absoluto», segundo Santiagpo de Carvalho?

Há uma confusão antidialéctica de níveis neste pensamento de Mário Santiago. O absoluto engloba o singular, o particular (no sentido de parte, regional, grupo de entes da mesma espécie) e o universal. Absoluto não se opõe a singular e universal mas  sim a relativo: há um singular absoluto e um universal absoluto, um singular relativo e um universal relativo.

 

Mário Santiago de Carvalho afirma que no caso do seu modo da consideração absoluta «a essência não poderia ser una nem múltipla». Mas sustentar isto é violar o princípio do terceiro excluído: ou as coisas são unas ou não unas, isto é, são múltiplas. Há coisas que são unas e múltiplas em simultâneo, segundo a perspectiva. A essência é sempre una. A essência "cavalo" no seu modo de consideração absoluta - o cavalo enquanto cavalo - é única em todas as mentes humanas: um quadrúpede, mamífero hipomorfo, da ordem dos ungulados, com crinas, veloz, uma das três sub-espécies da espécie Equus Ferus.

Como pode Mário Santiago asseverar que a essência não é una? É um paralogismo.

 

E afirma ainda que a essência no modo que tem em cada singular "é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e una na realidade (os unissingulares).» Grande nuvem de confusão aqui paira!  A essência de Sócrates, que é a essência homem individuada em Sócrates, é una na alma (na percepção, no pensamento) e não múltipla. Podemos admitir que diferentes pessoas conceptualizem Sócrates de modo diferente - e aqui entra a multiplicidade - mas cada uma delas o conceptualiza de forma una.

 

Quando Santiago de Carvalho diz que «qualquer conceito é universal» equivoca-se no que toca à filosofia de Aristóteles: segundo este, as espécies não são conceitos universais mas sim comuns, isto é, «regionais», abrangendo comunidades sectoriais. Só o género e os universais supra-genéricos, como o ser, o uno, o semelhante, etc, são universais.

 

ARISTÓTELES NÃO CONCEBIA COMO UMA ESSÊNCIA CHEGA À EXISTÊNCIA?

 

Escreve ainda Mário Santiago de Carvalho, referindo-se à pretensa superioridade  do pensamento de Tomás de Aquino sobre o de Aristóteles:

 

«Podemos dizer, em resumo deste capítulo, o seguinte: ao substituir a teoria do hilomorfismo universal São Tomás pôs em relevo um tipo de composição muito particular, o da essência com a existência. (...) Considerada deste ponto de vista, à substância ou ao concreto como primeiro objecto da ontologia acresce uma consideração que Aristóteles não podia conceber (como é que uma essência chegou à existência? - como é que esta essência se mantém em existência?)» (Mário Santiago de Carvalho in Introdução de "O Ente e a Essência", pag 49: o negrito é posto por mim).

 

Ao contrário da tese que sustenta Mário Santiago de Carvalho de que o Estagirita grego não  concebia como é que as essências se mantinham em existência, Aristóteles concebia as essências como autosubsistentes, eternas, incriadas, acto, e, portanto, não se punha o problema de as essências chegarem à existência como o põe o cristianismo de São Tomás que identifica Deus com a existência pura, suporte das essências:

 

«As coisas eternas são, quanto à substância, anteriores às coisas corruptíveis e nada que esteja em potência é eterno. (...) O corruptível em sentido absoluto é o corruptível quanto à substância. Portanto, nenhuma das coisas que são incorruptíveis em sentido absoluto está em potência em sentido absoluto. (Nada impede que o esteja em algum aspecto, por exemplo, quanto à qualidade ou ao lugar.) Logo todas elas estão em acto. Tão pouco está em potência qualquer das coisas que são necessariamente. (Certamente, estas são as realidades primeiras; e, desde logo, se elas não existissem, não existiria nada.)» (Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1050 b, 15-20)

 

Este texto é muito claro: as essência, por exemplo a essência cavalo ou a essência árvore são incorruptíveis, anteriores aos cavalos e às nuvens físicas, e estão em acto. Isto é platonismo. Essas essências, actos em si mesmas, estão em potência para os cavalos e nuvens que se gerarem, materialmente, no futuro próximo ou longínquo. 

 

 

O mundo em Aristóteles, é eterno e incriado. Tanto quanto me é dado perceber, o cosmos apenas passou do repouso ao movimento dos astros e esferas celestes quando os planetas e estrelas contemplaram Deus, o pensamento puro e imóvel, e desejaram alcançá-lo pondo-se a rodar. As essências eternas - Sol, Lua, Vénus, Júpiter, esferas celestes, árvore, montanha, homem, cavalo, etc - não foram criadas por Deus, como sustentavam São Tomás e os teólogos cristãos, coexistem desde a eternidade com o próprio Deus, não recebem deste a existência.

O problema da essência (to ti en einai) e da existência (einai, to ón) já está colocado por Aristóteles, não é um tema que principiasse com São Tomás de Aquino. A essência eterna, forma pura, já possui existência, uma existência imaterial.

 

A INTENÇÃO (INTENTIO) É UM CONHECIMENTO DE MÉDIA DIMENSÃO?

 

Sobre a intenção (intentio), noção existente na filosofia do Aquinate e em outras da escolástica, escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

«Examinando mais atentamente o que isto quer dizer,  verifica-se que entre a singularidade individual (cada um dos homens) e a universalidade (o conceito, que enuncia o que há de comum aos homens) há um modo de ser próprio, intermediário, que é o modo de ser de uma determinada natureza na inteligência. O modo de ser na inteligência (i.e. o modo como se concebe uma dada realidade) partilha de ambas as notas. Ele é universal (porque se aplica uniformente aos vários indivíduos da mesma espécie) e particular (porque é apenas e sempre a representação mental do indivíduo que num certo momento pensa,»

«É este modo de ser intermediário (a que se dá o nome de "intencional") com as suas notas, que mais nos deve ocupar...» (Mário Santiago de Carvalho, Introdução a "O ente e a essência", pag 37, Contraponto; o negrito é colocado por mim). 

 

 

A intentio é a percepção empírica, o dado fenoménico, ou o conceito, isto é a ligação entre o cérebro/ inteligência ou orgão sensorial e os objectos físicos exteriores,que pode ou não exprimir integralmente o ser dos objectos exteriores. Guilherme de Ockham escreveu:

 

«É pois, a saber, que se chama intenção da alma algo que há nela apto para significar outra coisa (...)assim as palavras são signos secundários daquelas coisas das quais são signos primários as intenções da alma. Isso que há na alma, e que é signo da coisa, e do qual se compõe a proposição mental ao modo como a proposição oral se compõe de palavras, se chama algumas vezes intenção da alma; outras, conceito da alma; outras, paixão da alma; outras, semelhança da coisa..» (Ockham, Suma de la lógica in Los filósofos medievales, selección de textos, de Clemente Fernandez, pag 1074, Biblioteca de Autores Cristianos; o negrito é por mim colocado)

 

Daqui se conclui apenas que a intentio é posicionalmente um intermédio entre o mundo físico exterior e a consciência vazia ou parcialmente vazia do indivíduo. Mas não se pode dizer que a intentio é, por natureza, um intermédio no plano gnosiológico, um conhecimento misto de singular e universal, como sustenta Santiago de Carvalho no texto acima. Os números um, dois, três e quatro são intenções e constituem conceitos universais que se aplicam a biliões de singulares. Em si o conceito de dois não é singular: é um universal, aplicável universalmente a casos singulares.

 

A ESSÊNCIA DE HOMEM E A DE SÓCRATES DIFEREM SÓ NA QUESTÃO DO LIMITADO/ILIMITADO? OU TAMBÉM NO QUID DA FORMA?

 

 

Por matéria delimitada, São Tomás de Aquino entende a matéria concreta, tridimensional, com dimensões corporais definidas. Por exemplo: este homem de 189 centímetros de altura, aquela casa de 120 metros quadrados de área coberta. Escreveu o Aquinate:

 

 

«Por esta razão, deve saber-se que o princípio de individuação não é a matéria considerada de qualquer modo mas unicamente a matéria delimitada. Chamo "matéria delimitada" à que se considera submetida a dimensões determinadas. Ora esta matéria não entra na definição de homem, mas entraria na definição de Sócrates, se Sócrates tivesse definição. Na definição de homem, ao contrário, entra a matéria não-delimitada. Na definição de homem, não se põem estes ossos e esta carne, mas os ossos e a carne tomados em abstracto, que constituem a matéria não-delimitada do homem. É evidente, por conseguinte, que a essência de homem e a essência de Sócrates não diferem senão quanto ao "delimitado" e ao "não-delimitado" ». (Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, pag 75, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

O equívoco de São Tomás é considerar o delimitado como a diferença entre a essência Sócrates com a essência homem que não tem limites mas apenas a proporção entre as diferentes partes. Mas falta uma diferença essencial que reside no "quid" de cada uma das essências, a individual e a específica: a forma de Sócrates, calvo, nariz achatado, lábios grossos difere da forma homem como espécie - homem não calvo, nariz correcto, etc. É, pois, a disparidade entre duas formas, a que envolve a matéria de cada corpo e a que paira como espécie. 

 

A FORMA É RECIBIDA NA MATÉRIA DELIMITADA?

 

 

Depois de se referir a duas modalidades de essências - a de Deus, que é apenas existir puro, e a das inteligências separadas, que são forma e existência - São Tomás escreve:

 

 

«Na terceira modalidade, a essência encontra-se nas substâncias compostas de matéria e de forma, nas quais o existir é igualmente recebido e finito, já que recebem o existir a partir de outro. Além disso a sua natureza ou quididade é recebida na matéria delimitada. Por esse motivo são finitas, quer pela parte superior quer pela inferior.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 96, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

Neste texto há um erro de São Tomás: originalmente, e na natureza, a forma não é, em regra, recebida na matéria delimitada mas sim na matéria não delimitada, delimitando ou confinando uma porção desta. Pois a matéria só se torna delimitada, isto é, condensada, sujeita a dimensões singulares e concretas, ao receber a forma específica. As árvores nasceram quando a forma árvore se uniu à matéria-prima indeterminada, infinita, não delimitada (hylé). É óbvio que o oleiro faz o vaso imprimindo a forma numa matéria delimitada: uma certa porção de barro. Mas aqui trata-se da arte humana de produzir e não da génese originária na natureza.

 

 

 

A CONTRADIÇÃO DE ARISTÓTELES PATENTE EM SÃO TOMÁS: A ESSÊNCIA SÓ EXISTE NAS COISAS SINGULARES MAS TEM DE EXISTIR PREVIAMENTE  ÀPARTE COMO FORMA ETERNA

 

Toda a "Metafísica" de Aristóteles gira em torno de um eixo dinâmico: um essencialismo ( "as formas ou essências são eternas e preexistem aos objectos materiais" e nisto é igual a Platão) que se procura converter em existencialismo (" as formas essenciais não existem fora dos objectos materiais, fora da existência material" e aqui opõe-se a Platão) mas não tem como fazê-lo, senão mediante uma certa incoerência

 

Aristóteles é um platónico envergonhado. Critica a existência das formas platónicas mas ele mesmo é levado a admitir que as formas são eternas e têm de subsistir por si, fora da matéria. Mário Santiago de Carvalho não dá conta de se ter apercebido desta inconsistência do aristotelismo na introdução à edição que traduziu para português. Neste excerto da "Metafísica" Aristóteles admite que há formas eternas não geradas, ou seja, formas fora da matéria, tal como Platão postulava, e em seguida afirma que não existe a essência esfera fora das esferas materiais (de bronze, pedra, etc) nem a forma casa fora das casas plasmadas na matéria:

 

«Assim pois, é evidente por aquilo que foi dito que não se gera o que se denomina forma ou substância, enquanto que o composto que se denomina segundo esta gera-se, sim, e que em todo o gerado há matéria, e um é isto, e outro é aquilo.»

«Mas existe acaso uma esfera fora de estas ou uma casa fora dos tijolos? A ser assim, não ocorreria que não se geraria nenhum objecto determinado? (...) Assim, pois, é evidente que se existem realidades fora dos indivíduos, tal como alguns costumam falar das Formas, a causalidade das Formas não terá utilidade nenhuma para explicar as gerações e as substâncias.»  (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1033 b, 15-30).

 

São Tomás cai na mesma incoerência inerente ao aristotelismo:

 

« De maneira semelhante, também não se pode dizer que as noções de género ou de espécie correspondam à essência, enquanto que esta é uma realidade fora das coisas singulares. como afirmavam os PLATÓNICOS» ( Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 82; o negrito é posto por mim).

 

Neste excerto acima, o Aquinate nega que a essência exista fora do objecto singular.

Compare-se agora com o excerto seguinte em que o filósofo dominicano afirma que a essência está fora do objecto singular e fora da alma, o que nega o nominalismo e o conceptualismo irrealista e afirma um realismo platonizante das essências:

 

«Com efeito, é falso dizer que a essência do homem, enquanto tal, tem o ser neste singular. Na verdade, se ser neste singular pertencesse ao homem enquanto é homem, nunca estaria fora deste singular. Paralelamente também, se pertencesse ao homem enquanto é homem não ser neste singular, nunca seria nele. A verdade porém está em dizer que o homem enquanto é homem, não tem que existir neste singular ou naquele, nem na alma.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, paginas 83-84, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

De duas uma: ou a essência «Homem» existe no colectivo de todos os homens e não em cada homem singular; ou existe, algures, aparte, para gerar cada homem ao unir-se à matéria-prima indeterminada (hylé).

 

A única diferença significativa entre Platão e Aristóteles, neste aspecto da cosmogénese, é que o primeiro introduz o demiurgo, um deus-operário, que imprime formas dos arquétipos na matéria e o segundo faz desaparecer, aparentemente, o demiurgo e confere às formas eternas mobilidade, autonomia, para se imprimirem na matéria, uma vez que o Deus aristotélico é imóvel e não intervém no mundo.

 

 

 

 

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Terça-feira, 28 de Setembro de 2010
Incoerência em São Tomás: Deus é apenas existência mas possui perfeições (essência)

No "Ente e a Essência" Tomás de Aquino confundiu, em Deus, a essência com a existência, o theo ou Inteligência suprema, criadora ou não,  com o tó on ou seja o ente, o ser :

 

«Há com efeito uma realidade, Deus, cuja essência é o seu próprio existir. Por esta razão, Por esta razão, há alguns filósofos dizem que Deus não tem quididade ou essência, uma vez que a sua essência se não diferencia do seu existir. Daqui se segue que ele não entra em nenhum género, porque tudo o que entra num género tem de ter quididade, além do seu existir, pois a quididade ou a natureza de um género ou de uma espécie compreende, enquanto que o existir se diversifica pelos vários indivíduos. Se dizermos que Deus é somente existir, não temos de cair no erro dos que afirmaram que Ele é esse universal pelo qual todas as coisas existem formalmente. De facto este existir que é Deus é de uma consideração tal que nenhuma adição lhe pode ser feita.»(Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, Contraponto, pag 92)

 

 

Segundo São Tomás, Deus é pura existência mas não é o ser mais comum, o universal de Aristóteles, um dos transcendentais. Se fosse o ser mais comum que penetra em todas as coisas, Deus perderia, em certa medida, o estatuto supremo que só o distanciamento, lá no Alto, Lhe dá. Dizer que a essência de Deus é a sua existência é confundir o quid ou tó ti (o quê é, a talidade, o definido)  com o  tó on (o que é, o ente, o existente indefinido). São Tomás cai neste paradoxo e tenta superar a ambiguidade de Deus não ter essência dizendo o seguinte:

 

«De modo semelhante, ainda que seja apenas existir, não devem faltar-lhe as restantes perfeições . »  (Tomás de Aquino, Ibid, pag 93).

 

O raciocínio é paradoxal: Deus é apenas existir, mas ao mesmo tempo é omnipotência, bondade absoluta, sabedoria absoluta, justiça absoluta, beleza absoluta, misericórdia absoluta, etc. Portanto, Deus não é somente existir, possui uma essência que emerge da existência. Tomás de Aquino patina na neve da incoerência teórica.

 

 

 

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Domingo, 26 de Setembro de 2010
A essência "homem" e a semi essência "humanidade" ou platonismo oculto em São Tomás

Um dos textos de "O Ente e a Essência" de São Tomás de Aquino atravessados por alguma névoa de confusão é o seguinte:

 

«Assim se torna evidente que quer o termo "homem" quer "humanidade" significam a essência do homem, mas de maneira diversa, conforme se disse. Isto porque o termo "homem"  significa-a como um todo, enquanto não suprime a concretização da matéria, mas implícita e indistintamente a inclui, da maneira como o género, conforme se disse, contém a diferença. É por esta razão que se predica o termo "homem" dos individuais. Já o termo "humanidade" significa-a como parte, pois só contém na sua significação aquilo que é próprio do homem, e suprime toda a delimitação da matéria. De onde a não predicamos dos indivíduos humanos. É também por esse motivo que o termo "essência" é algumas vezes predicado numa realidade - dizemos, de facto, que Sócrates é de uma certa maneira uma essência -  enquanto, outras vezes é negado, como quando dizemos que a essência de Sócrates não é Sócrates.» (Tomás de Aquino, O Ente e a essência, Contraponto, pag 81).

 

Que diferença há entre homem e humanidade, segundo São Tomás? Ambas representam a essência homem - ser racional, antropóide, dotado de rosto, mãos com um polegar oposto aos restantes quatro dedos, etc - com a única diferença de "homem"  se poder materializar neste ou naquele ente,  ao passo que "humanidade"  seria irredutível a cada indivíduo concreto. Ora isto não é, senão, platonismo oculto visto que Platão sustentou que as Formas incorruptíveis ou arquétipos permanecem num mundo superior aparte. Neste caso, o arquétipo seria humanidade  e a projecção do arquétipo na matéria individuante seria homem.

 

Por isso é incoerente a crítica que São Tomás faz aos platónicos:

 

«De maneira semelhante, também não se pode dizer que as noções de género ou de espécie correspondam à essência, enquanto que esta é uma realidade existente fora das coisas singulares, como afirmavam os PLATÓNICOS. É que assim o género e a espécie não poderiam ser atribuídos a um indivíduo determinado.» (São Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, Contraponto, pag 81; o negrito é de minha autoria).

 

Se Tomás de Aquino colocou «humanidade»  fora dos seres singulares, à maneira de um arquétipo, como pode criticar o mundo platónico das formas autosubsistentes e eternas?

 

Existe, aliás, um nítido afastamento de Tomás de Aquino em relação a Aristóteles: este, embora considerando o eidos - essência integral ou forma comum da espécie - capaz de existência separada, fá-lo descer e plasmar-se em cada indivíduo ao passo que São Tomás separa a essência humanidade e  o género animalidade dos homens concretos e dos animais concretos, considerando-os uma meia essência e um semi género.´

 

São Tomás escreve, contra o pensamento de Aristóteles:

 

«Com efeito, é falso dizer que a essência do homem, enquanto tal, tem o ser neste singular. Na verdade, se ser neste singular pertencesse ao homem enquanto é homem, nunca estaria fora deste singular.Paralelamente também, se pertencesse ao homem enquanto é homem não ser neste singular, nunca seria nele. A verdade, porém, está em dizer que o homem, enquanto é homem, não tem que existir neste singular ou naquele, nem na alma.» (Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, Contraponto, págs 83-84; o negrito é posto por mim).

 

É um raciocínio inconsistente, paradoxal: São Tomás afirma que a essência homem não pode estar em nenhum singular senão ficaria capturada nele - pensamento  falacioso - mas com a frase «paralelamente também, se pertencesse ao homem enquanto é homem não ser neste singular, nunca seria nele.» sugere o inverso, isto é, que essência homem pode descer ao singular.

 

Ao invés, Aristóteles afirmou que a essência está na substância singular (ainda que esteja também fora desta):

 

«De estes argumentos se conclui que cada realidade singular e a sua essência são uma e a mesma coisa, e não acidentalmente, e que conhecer uma realidade singular não é senão conhecer a sua essência, de modo que inclusive por indução se mostra que ambos são a mesma coisa.» (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1031b, 19-22; o negrito é posto por mim).

 

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