No seu «Tratado da Natureza Humana», obra tão importante quanto a «Crítica da Razão pura» de Kant, David Hume escreveu:
«Há sete espécies diferentes de relação filosófica: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. Podem dividir-se estas relações em duas classes: as que dependem inteiramente das ideias que comparamos entre si e as que podem variar sem qualquer mudança de ideias. É da ideia de triângulo que deduzimos a relação de igualdade que existe entre os seus três ângulos e dois rectos; e esta relação é invariável enquanto a nossa ideia permanecer a mesma. As relações de contiguidade e distância entre dois objectos pelo contrário podem variar apenas por uma alteração de lugar, sem qualquer mudança nos objectos ou nas ideias; e o lugar depende de inúmeras circunstâncias diversas, as quais a mente não pode prever. O mesmo se pasa com a identidade e a causação.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 103, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrito é colocada por mim).
As sete relações filosóficas são sete formas, uma delas a priori - parece-me que a proporção de quantidade ou número é a priori - e as outras seis a posteriori do entendimento e da faculdade perceptiva humana que correspondem, de certo modo, às doze categorias formuladas posteriormente por Kant. Hume escreveu:
«Já observei que a geometria ou a arte pela qual determinamos as proporções das figuras, embora ultrapasse muito, tanto em universalidade como em exactidão, os juízos imprecisos dos sentidos e da imaginação, nunca atinge contudo perfeita precisão e exactidão. Os seus primeiros princípios são ainda deduzidos da aparência geral dos objectos (...)
«Restam, portanto, a álgebra e a aritmética como as únicas ciências nas quais podemos levar uma cadeia de raciocínios até um certo grau de complicação, conservando contudo uma perfeita exactidão e certeza. Estamos de posse de um critério preciso que nos permite ajuizar da igualdade e proporção dos números; e, conforme estes correspondem ou não ao critério, determinamos-lhe as relações sem qualquer possibilidade de erro.»
(David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 105, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrito é colocada por mim).
Kant leu Hume e inspirou-se nas suas «relações filosóficas», em particular na causação e nas relações de tempo e lugar. A revolução coperniciana no conhecimento - a inversão de papéis entre o sujeito e o objecto - de que Kant se proclama autor foi realizada, na Idade Moderna, não por ele mas por George Berkeley e prosseguida por David Hume.
Note-se que Hume considerou que aquelas sete relações - em particular as de identidade, relações de tempo e lugar e causação ou causa-efeito - não podem por si sós produzir conhecimentos uma vez que necessitam de dados empíricos e quase todas nascem da comparação destes, isto é, nascem do concurso dos sentidos e da imaginação. Quase todas são pois relações filosóficas ou "categorias" a posteriori, ao contrário das doze categorias de Kant que são estruturas a priori do entendimento, capazes de formular conceitos como o de "uno" e os de números três, quatro, cinco, sem haver experiência.
E Hume não incluiu nestas sete relações, entre outras, a categoria de substância/acidente que Kant viria a postular porque não gradua ontologicamente as qualidades dos objectos como Kant o fez. Segundo Kant, a essência de um vinho é o sumo fermentado da uva e o sabor ou a cor são acidentes, qualidades subjectivas que não existem no fenómeno vinho mas no nosso modo de o perceber, mas Hume não via razões para tal distinção, uma vez que a cor e o sabor do vinho são propriedades tão essenciais quanto a textura líquida e a taxa de alcóol.
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