Exprimido o pensamento do filósofo francês Giles Deleuze, escreveu João Sousa Dias:
« A filosofia não é dialéctica, não é discursiva, não há um discurso propriamente filosófico, os conceitos não são proposições que se apresentariam como opiniões verosímeis e de cujo conflito a filosofia extrai um "saber" distinto da ciência.« (...)
Ora a filosofia é caracteristicamente paradoxo, anti-doxa, não porque teria o gosto pela contradição ou valorizaria opiniões inverosímeis, mas porque extrai das frases qualquer coisa (conceitos) que não é da ordem da opinião, nem sequer da proposição. Certo, os conceitos são soluções, casos de solução, dependem de problemas que os peticionam e da ligação a outros conceitos para a resolução desses problemas. Mas nem os problemas filosóficos são interrogações ou questões, nem os conceitos soluções são respostas que, obtidas, anulariam os problemas.» (Sousa Dias, Lógica do acontecimento, Deleuze e a Filosofia, páginas 78-79, Afrontamento; o negrito é posto por mim).
Há concordâncias e discordâncias a manifestar sobre esta tese de Deleuze e, presumivelmente, de Sousa Dias. Concordância: o conceito filosófico é superior à proposição. O mesmo é dizer que a noologia - estudo da imagem do pensamento, segundo Deleuze; chamo-lhe noética mas vai dar ao mesmo - é superior à lógica proposicional. Concordo, em absoluto. Intuir os conceitos, as realidades ideais e materiais num momento prévio à formulação do discurso é o essencial para estar na verdade. Porque falham numerosos filósofos de segunda e terceira água e autores de manuais escolares de filosofia que hoje colonizam editoras com as suas publicações? Porque não intuem correctamente as ideias (noologia). Sabem as regras mas não os conteúdos noéticos, a essência dos termos.
Tenho discordâncias com o que Sousa Dias e Deleuze exprimem acima. Uma é com a unilateralidade da frase «a filosofia não é dialéctica». A filosofia é dialéctica, isto é, funda-se na oposição de contrários e no devir, sem prejuízo de uma estabilidade relativa de conceitos. A própria frase filosófica de Parménides «o ser é, o não ser não é» - ao contrário do que sustenta Deleuze há um discurso propriamente filosófico, como o desta frase, discurso que se esparge em gradações quando aborda o campo das ciências, das artes, da religião, etc - é dialéctica em si mesma. A dialéctica inclui lógica formal estática e supera esta. Certamente, há doutrinas filosóficas e definições com incoerências, antidialécticas, mas globalmente falando, a filosofia procede de uma dialéctica no interior do espírito humano. Eis uma passagem da filosofia dialéctica - perspectivismo e devir - extraído da Metafísica:
«Assim, segundo a potência, a semilinha é anterior à linha inteira, e a parte ao todo, e a matéria à substância, enquanto que atendendo ao estado de actualização são posteriores, posto que alcançam o estado de acualização quando o composto está desagregado.» (Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1039 a, 5-10).
Isto é pura filosofia dialética. Como pode Deleuze dizer que a filosofia não é dialéctica? Só se está a visar a má filosofia...
Também é unilateral afirmar com Deleuze e Sousa Dias que «os problemas filosóficos não são interrogações ou questões». O problema filosófico da essência e da existência de Deus ou Deuses é um conjunto de interrogações e de conceitos/teses como soluções possíveis. A filosofia maneja em simultâneo o princípio céptico (dúvida que toma a forma de interrogação, questão) e o princípio dogmático (certeza). Sem interrogações, não haveria filosofia, ainda que ela se estenda além dessas interrogações.
«Nem um conceito é proposicionável , nem um problema é uma interrogação, a qual representa apenas a neutralização de uma proposição correspondente que lhe serve de resposta e que se supõe pre-existente de direito (mesmo quando ainda não enunciado de facto, ou quando essa resposta ainda não foi encontrada)» (Sousa Dias, ibid, pág 81).
Sejamos claros: há conceitos que não são proposicionáveis, a não ser de forma algo equívoca, mas a generalidade dos conceitos são proposicionáveis. O discurso é o vasto campo onde se abrem os girassóis-conceitos da filosofia.
A FILOSOFIA CIRCUNSCREVE-SE AO PLANO DA IMANÊNCIA, SEM PLANO DE REFERÊNCIA, ISTO É, SEM OBJECTO NO MUNDO EXTERIOR OBJECTIVO?
Veiculando as ideias de Deleuze, escreve Sousa Dias:
«A proposicionalização dos conceitos e dos problemas de filosofia está sempre em concomitância com a redução do plano de imanência a um plano de referência. Em contrapartida, o reconhecimento da irredutibilidade do plano filosófico como não referente implica o estatuto extra-proposicional dos problemas e dos conceitos.» (Sousa Dias, ibid, pág. 81; o negrito é de minha autoria).
Um erro próprio do pensamento mecanicista revela-se neste excerto: considerar a filosofia, sem proposições, como uma esfera dentro da razão e da ideação do sujeito-acontecimento, e considerar a ciência e o senso comum, com as respectivas proposições, como transposições de um plano de imanência para um plano de referência/transcendência, isto é, um mundo material exterior com os seus objectos referenciáveis.
Ora isto é um erro. Se há conceitos filosóficos que parecem não possuir referente (objecto que lhes corresponda) no mundo físico exterior, como, por exemplo, os conceitos de «essência» e «necessidade», hão-de obrigatoriamente possuir um referente no mundo ideal interior ou interiorizável em certa medida (o mundo dos arquétipos em Platão, o mundo dos sete tipos de relações em David Hume, o mundo das categorias do entendimento e dos númenos, em Kant). Os conceitos filosóficos possuem sempre um referente, em muitos casos no mundo exterior físico. Por exemplo, o conceito de átomo, princípio filosófico nas doutrinas dos gregos Demócrito e Leucipo, possuía referente no mundo material, séculos mais tarde identificado pelo microscópio electrónico. Se os conceitos filosóficos não possuirem um referente ideal ou material, como distingui-los das ideias-imagens míticas que a imaginação engendra a cada passo? Só os referentes, ideais ou materiais, permitem distinguir a filosofia do mito.
Deleuze e Sousa Dias cavam um fosso excessivo entre a filosofia e a ciência, ao pintarem a primeira como a «freira de clausura» que não sai da sua cela de convento (o plano da imanência) e a segunda como a noviça que sai para o exterior do convento (o plano da referência), vai ao mercado, fala com as pessoas comuns, visita casas e aqui encontra as suas referências de vida e pensamento. No polo oposto ao positivismo lógico que faz da filosofia a serva das ciências naturais e sociais, Deleuze reduz a filosofia a uma espécie de teologia ou «saber hermético mais ou menos místico», anulando a sua vertente epistemológica, ocultando o facto de que na espinal medula de cada ciência está, pelo menos uma, filosofia determinada.
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