Domingo, 21 de Fevereiro de 2021
Equívocos no manual «Preparar o exame nacional de filosofia 11º» (Crítica de Manuais Escolares LX)

 

O manual da Areal «Preparar para o exame nacional Filosofia 11º» de Lina Moreira e Idalina Dias alberga, a par de muitas definições correctas e úteis, vários erros relevantes

 

UMA ERRÓNEA DISTINÇÃO ENTRE DETERMINISMO MODERADO E LIBERTISMO

 

As autoras perfilham a confusão teórica da filosofia analítica em voga separando libertismo de determinismo moderado, sem perceberem que o libertismo é género onde cabem duas espécies: o determinismo moderado pelo livre-arbítrio e o indeterminismo moderado pelo livre-arbítrio. Em ambas estas o livre-arbítrio impera sobre as leis ou acasos da natureza. 

 

Escrevem as autoras: 

«O libertismo é uma das teorias filosóficas que afirma a existência e o primado do do livre-arbítrio na ação humana. Neste sentido, considera que, face às mesmas circunstâncias, o ser humano escolhe livremente entre as várias possibilidades que tem diante de si, o que significa, recuperando o exemplo, que poderíamos ter saído pela janela ou escolhido agir de outra forma. Tal significa o reconhecimento de que, perante a mesma circunstância, havia mais do que uma ação possível, que o agente escolheu uma de várias possibilidades». 

LINA MOREIRA e IDALINA DIAS, «Preparar para o exame nacional Filosofia 11º» , Areal Editores,página 69.

 

Esta definição é exatamente a mesma de determinismo moderado, doutrina segundo a qual o universo é regido por leis biofísicas invariáveis (nascimento, crescimento, estado adulto jovem, envelhecimento e morte dos seres vivos; translação da Terra em torno do Sol em 365 dias, etc.) mas o ser humano dispõe de livre arbítrio, capacidade de escolha racional entre as alternativas de ação a cada momento.

 

O erro das autoras e de todos os manuais de filosofia do ensino secundário e de John Searle e Simon Blackburn está em supor que o determinismo moderado, pelo facto de admitir que há leis biofísicas necessárias, infalíveis, reduz o grau de livre arbítrio nos seres humanos quando é exatamente o contrário que sucede: Sartre escreveu que «nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã», de 1940 a 1944, porque cada francês podia escolher a resistência ou a colaboração com o nazismo.  A pressão das leis físicas infalíveis (determinismo) não reduz, aumenta o livre-arbítrio, que é uma deliberação racional (libertismo). Há maior liberdade no determinismo biofísico com livre arbítrio (determinismo moderado) - porque se escolhe conhecendo as leis da natureza física - do que no indeterminismo biofísico (inexistência de leis necessárias, imprevisibilidade) com livre arbítrio que as autoras, Simon Blackburn e as universidades confusamente batizam de libertismo.

 

O libertismo, segundo o conceito em voga dos manuais, é a tendência de livre escolha sem levar em conta as cadeias do determinismo biofísico em que estamos imersos (estado do corpo: fome, frio, saciedade; situação económica: salário ou outro rendimento, carreira profissional, bens imóveis e móveis; situação política: sociedade aberta ou totalitarismo, etc.) Mas essa tendência libertista não é livre-arbítrio porque lhe falta a racionalidade que só existe quando se observa e leva em conta a situação concreta, o mundo físico e as suas condicionantes. Como diria Hegel «a liberdade é a consciência da necessidade», não é o impulso do louco que se julga livre e age irracionalmente. Já Aristóteles notara a diferença entre livre escolha ditada pelo instinto animal e livre-arbítrio.

 

A CONFUSA NOÇÃO DE INCOMPATIBILISMO E A CONFUSÃO DE DETERMINISMO RADICAL COM FATALISMO

 

Escrevem as autoras:

«A resposta à questão "Será o ser humano efetivamente livre na sua ação?" não é consensual entre os filósofos. Uns consideram que o livre-arbítrio não é compatível com o determinismo - incompatibilismo - outros afirmam o contrário -compatibilismo

«Tanto o libertismo como o determinismo radical são teorias incompatibilistas.»

LINA MOREIRA e IDALINA DIAS, «Preparar para o exame nacional Filosofia 11º» , Areal Editores,páginas 68 e 69.

 

É evidente que o determinismo moderado compatibiliza o livre-arbítrio com o determinismo. Ambos existem no mesmo ser humano adulto. ´Por que razão o libertismo seria um incompatibilismo se há compatibilidade entre o livre-arbítrio e o indeterminismo biofísico (exemplo: surge um dia de queda de neve em pleno verão de Julho no Alentejo e este libertismo da natureza é compatível com o meu livre-arbítrio pois posso escolher entre ficar na praia a receber a neve ou refugiar-me dentro de uma habitação)? É uma tolice dizer que, no seu todo, o libertismo é uma teoria incompatibilista quando ele engloba o determinismo moderado que é, em si mesmo, compatibilismo e o indeterminismo biofísico com livre-arbítrio que é também, em si mesmo, compatibilismo.

 

O libertismo, como género de duas correntes e não na errónea noção deste manual,  é incompatível com o fatalismo - doutrina segundo a qual tudo está predestinado e não há livre-arbítrio real e que não é o mesmo que determinismo radical, coisa de que este e os outros manuais não se apercebem -  com o determinismo radical (exclusão do livre arbítrio, leis biofísicas necessárias compatíveis com um certo grau de acaso) e com o indeterminismo radical (exclusão do livre arbítrio, inexistência de  biofísicas necessárias, pura arbitariedade no mundo natural) .

 

Se há determinismo radical deveria também postular-se que há indeterminismo radical ou indeterminismo biofísico sem livre-arbítrio mas a inteligência dos filósofos analíticos não chega a tanto. No seu «Dicionário Oxford de Filosofia» Simon Blackburn divide confusamente esta temática em 4 correntes - determinismo radical, determinismo moderado, libertismo, indeterminismo - sem perceber que fatalismo se distingue de determinismo radical , que determinismo moderado se inclui no libertismo tal como o indeterminismo moderado com livre-arbítrio. Blackburn nem sequer conceptualiza que há dois tipos de indeterminismo: moderado (com livre-arbítrio) e radical (sem livre-arbítrio).Só tipos confusos, pensadores de segunda classe como este, com doutoramentos (!) em filosofia universitária,  são editados e promovidos pelos media como sendo os filósofos actuais...

 

NO SUBJECTIVISMO AXIOLÓGICO UMA OPINIÃO VALE O MESMO QUE A SUA CONTRÁRIA?

 

Escrevem as autoras:

«Para o subjectivismo, não existe um conceito universal de bem e de mal, mas tantos quantos os indivíduos. Se assim é, uma opinião vale o mesmo que a sua contrária.»

Lina Moreira e Idalina Dias, «Preparar para o exame nacional Filosofia 11º» , Areal Editores,página 84.

 

Isto não é correto. Para cada subjetivista, a sua opinião vale mais que as contrárias, ainda que possa admitir ou não algum grau de verdade nestas. É aquilo que Nietzsche designa de perspectivismo: vemos o mundo, a paisagem de uma dada maneira, a partir de um ponto de observação, e a visão seria outra se mudassemos o lugar de onde observamos. Tome-se como exemplo a opinião sobre a eutanásia. Um cristão adverso a esta prática dirá: «É subjectivo saber quem tem razão, há argumentos a favor e contra, a minha intuição diz-me que eutanásia é um assassinato legal, ofende a Deus, que deseja cuidados paliativos nos hospitais e não extinção provocada da vida humana».

 

As definições erróneas contidas neste manual e nos outros estão presentes sempre, ano a ano, no exame nacional de filosofia do 11º ano do ensino secundário em Portugal. O lóbi da filosofia analítica (Manuel Maria Carrilho, João Branquinho, Guido Imaguirre, Ricardo Santos, Desidério Murcho, João Sáagua, Pedro Galvão, Rolando Alneida, António Pedro Mesquita, Domingos Faria, Célia Teixeira, Aires Almeida, etc.) devia ser afastado da autoria dos exames nacionais porque pensa, avalia e ensina mal, promove como «ciência» uma ridícula lógica proposicional que defende que o juízo «Sou português ou sou espanhol» merece uma tabela de verdade diferente do juízo «Ou sou português ou sou espanhol» quando dizem exactamente o mesmo, são o mesmo no conteúdo. Estamos, na área da filosofia, sob uma ditadura da filosofia analítica norte-americana e britânica mantida por pensadores de segunda e terceira classe.

 

 

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Terça-feira, 27 de Março de 2018
Confusões do Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica: Fiabilismo

 

No «Compêndio em linha de Problemas de Filosofia Analítica», gerado no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, sob a supervisão de Pedro Galvão e Ricardo Santos, lê-se como definição de fiabilismo:

 

«A tese central do fiabilismo é que uma crença verdadeira é conhecimento apenas se foi produzida por um mecanismo que tende a gerar crenças verdadeiras. Como tanto o processo que gera uma dada crença quanto sua propensão a produzir crenças verdadeiras podem não ser apreendidos pelo sujeito a quem se atribui o conhecimento, o fiabilismo é uma teoria externista. A principal fonte de críticas ao fiabilismo reside precisamente na desvinculação entre o que torna crenças meramente verdadeiras conhecimento e a perspectiva do sujeito. As diferentes versões do fiabilismo são diferentes respostas a esta crítica, quer pela aproximação com as ciências cognitivas e como projeto naturalista, quer pela proposição de uma epistemologia da virtude.» (Ernesto Perini-Santos).

 

Fiabilismo é uma definição muito vaga neste Compêndio. A definição dada acima por Ernesto Perini-Santos é uma tautologia: é crença verdadeira aquilo que resulta de um mecanismo gerador de crença verdadeira... O intuicionismo de Descartes expresso em «Eu penso logo existo» é fiabilismo? É.  O fenomenismo de David Hume que reduz o conhecimento a impressões de sensação e de reflexão e a ideias é fiabilismo? É. O falibilismo de Wittgenstein ao admitir a hipótese de amanhã poder acordar não no seu quarto mas no planeta Marte é fiabilismo? É. A teoria da reencarnação e a teoria cristã de uma única vida terrena seguida de Paraíso ou Inferno como estadas da alma imortal são fiabilismo? São.

 

Fiabilismo é toda a concepção que comporta um certo grau de lógica e conduz a uma verdade provável ou indiscutível. E não é necessariamente externista, não precisa sempre de comprovação na realidade exterior à mente do sujeito. A metafísica é fiabilista e quase nunca precisa de provas plasmadas na realidade exterior. E, segundo Kant, a matemática, ciência assente no fiabilismo, é a priori, internista.

 

Fiabilismo não é uma corrente substantiva como realismo, idealismo ou fenomenologia. É uma qualidade abstracta inerente a toda a procura da verdade.

 

A argumentação de Ernesto Perini-Santos baseia-se em raciocínios abstractos falaciosos, formulados por Alvin Goldman, como este:

«2. Uma crença p de um sujeito S é conhecimento se foi obtida por método M tal que, através de M, (i) se p não for verdadeira, S provavelmente não acredita que p e (ii) se p for verdadeira, S provavelmente não acredita que p.»

 

O termo «provavelmente» retira consistência à definição de crença como conhecimento, porque tanto pode dar para um lado como para o seu contrário. As variáveis p, S, M servem apenas para dar uma aparência científica àquilo que não passa de confusas inferências típicas dos novos sofistas - os filósofos analíticos da lógica proposicional.

 

Vejamos com um exemplo concreto o absurdo daquela definição:

«Uma crença de Ernesto (S) de que o átomo existe (p) é conhecimento se foi obtida através do método observação pelo microscópio electrónico (M) de tal modo que através deste método de observação

1) Se a existência do átomo não for verdadeira Ernesto provavelmente não acredita nela e

2) Se a existência do átomo  for verdadeira Ernesto provavelmente não acredita nela.»

 

Isto é um jogo de palavras sem sentido. A crença é conhecimento e em ambos os casos Ernesto provavelmente não acredita nela? Pseudo raciocínios de Alvin Goldman e dos académicos do centro de filosofia da universidade de Lisboa que o subscrevem...

 

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Quinta-feira, 6 de Agosto de 2015
Confusões de Pedro Galvão sobre Hedonismo, Contratualismo e Consequencialismo

 

 

 No seu artigo «Será o Contratualismo reconciliável com o Consequencialismo?» no compêndio de Filosofia Analítica em linha, Pedro Galvão comete alguns paralogismos na compreensão e relacionação de teorias. Para escrever um bom artigo nesta matéria , Galvão deveria definir à partida, com clareza, o que entende por contratualismo, consequencialismo e hedonismo. Não o faz, o que lhe permite, à semelhança de quase todos os teóricos da filosofia analítica, pescar em águas turvas, isto é, produzir conceitos e raciocínios eivados de ambiguidade que dão a aparência de estarmos perante um grande intelectual - e não de um tipo confuso, especialista em retórica.

 

SÓ ALGUNS CONSEQUENCIALISTAS SÃO HEDONISTAS, OU SÃO QUASE TODOS? A SATISFAÇÃO DOS DESEJOS E A COMPENSAÇÃO PELO MÉRITO NÃO SE INCLUEM NO HEDONISMO?

 

 

Escreve Pedro Galvão :

«Alguns consequencialistas são hedonistas. Pensam que só o prazer é intrínseca e fundamentalmente bom, e que só o sofrimento é intrínseca e fundamentalmente mau. Para estes consequencialistas, dados quaisquer dois estados de coisas alternativos, o melhor será sempre aquele em que houver mais prazer, descontado o sofrimento.
O hedonismo é seguramente uma perspectiva muito controversa e bastante impopular nos tempos que correm. Muitos consequencialistas — a maioria, na verdade — recusar-se-iam a seriar estados de coisas unicamente segundo o critério do «saldo hedónico». Defenderiam que outros critérios — por exemplo, o exercício da autonomia, a satisfação de desejos, a compensação pelo mérito, a igualdade na distribuição do bem-estar ou a integridade dos ecossistemas — são importantes para efectuar as seriações. »

(Pedro Galvão, , «Será o Contratualismo reconciliável com o Consequencialismo?»  in Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica, de João Branquinho e Ricardo Santos, pag 627, texto transcrito do Compêndio em 3 de Agosto de 2015; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Pedro Galvão comete no texto acima alguns erros teóricos. O primeiro deles é considerar que só alguns consequencialistas são hedonistas . o que significa: «só uma minoria dos consequencialistas se insere no hedonismo». O que é o consequencialismo? É um termo inventado pela filosofia analítica para substituir o termo pragmatismo, isto é, a filosofia que postula que, mais importante que os princípios teóricos, são os resultados práticos, os frutos da acção, as consequências do esforço. O que é o hedonismo? É a filosofia que identifica o prazer (hedoné, em grego) com o bem e a dor com o mal e preconiza que as acções do homem se devem orientar pela busca do prazer.  Por conseguinte, a grande maioria dos pragmáticos ou consequencialistas são hedonistas e não só alguns.

 

O segundo erro de Pedro Galvão é considerar que «o exercício da autonomia, a satisfação de desejos, a compensação pelo mérito, a igualdade na distribuição do bem-estar» não fazem parte do hedonismo, são critérios de seriação exteriores e, de certo modo, opostos ao hedonismo. Então o exercício da autonomia ( «Sou livre de escolher e agir») não confere prazer (hedonismo)? E a satisfação dos desejos (exemplos: «Comprei o automóvel que desejava, arranjei a casa de férias ideal») não é hedonismo? E a compensação pelo mérito (exemplo: «Vou promover a pessoa X na minha empresa visto que os méritos do seu trabalho são relevantes») é um critério exterior ao hedonismo? Que entende Galvão por hedonismo? O simples prazer imediato de comer chocolate ou caviar, beber cerveja alemã, sentir o vento no rosto quando se anda de moto a 120 quilómetros hora e pouco mais que isto? Galvão não possui precisão na conceptualização de hedonismo.

 

O CONTRATUALISMO NÃO RECONHECE ESTATUTO ÉTICO AOS ANIMAIS?

 

 

Galvão distingue entre o contratualismo de Rawls (Baltimore, 21 de Fevereiro de 1921- Lexington, 24 de Novembro de 2002) e o contratualismo de Thomas Scanlon (28 de Junho de 1940, catedrático na universidade de Berkeley) e escreve:

«Em suma, ao passo que os agentes rawlsianos serão indiferentes aos interesses dos animais, os agentes scanlonianos, ainda que possam importar-se com esses interesses, não poderão apelar à sua preocupação para rejeitar um código moral que os ignore. Num enquadramento contratualista, a perspectiva de que os animais têm estatuto moral não encontra o menor apoio. À luz de qualquer versão defensável de contratualismo, como Carruthers (1992: 107-108, 159-160) sublinha, não há razões para reprovar práticas como a criação intensiva de animais ou o seu uso em laboratórios, mesmo para fins triviais.»

(Pedro Galvão, , «Será o Contratualismo reconciliável com o Consequencialismo?»  in Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica, de João Branquinho e Ricardo Santos, pag 631, texto transcrito do Compêndio em 3 de Agosto de 2015;o destaque a negrito é posto por mim). 

 

Dizer, como Galvão diz, que o contratualismo, seja em que versão for, é incapaz de reconhecer estatuto moral aos animais e portanto, de os defender convenientemente, é um erro crasso. Porque contratualismo - doutrina segundo a qual a verdade ou o critério da acção repousa num contrato entre seres humanos - é  um conceito sociológico e animalismo - doutrina segundo a qual os animais «irracionais» têm direitos iguais ou mesmo superiores aos seres humanos - é um conceito ético-ideológico. Trata-se de espécies de géneros diferentes, que não se opõem de forma excluente entre si e que podem coexistir na mesma pessoa ou na mesma corrente de pensamento. Os budistas,são, em regra, contratualistas - contratualizam, por exemplo, venerar as estátuas de Buda e não implementar matadouros - e animalistas, defensores de que não se deve matar animais nem comer a sua carne.

 

Em resumo: há consequencialistas (pragmáticos) que são contratualistas e há consequencialistas que não o são, e estes últimos são os egoístas individualistas, grande parte dos anarquistas, etc. E em ambas as sensibilidades «consequencialistas» há quem defenda os direitos dos animais (animalismo ético)  e há quem não defenda estes (especismo antropocêntrico ou teoria que postula o direito de o homem matar, comer, prender ou maltratar animais «irracionais»). Há, pois, vários géneros que se intersectam e combinam entre si: consequencialismo/pragmatismo, contratualismo, animalismo ético

 

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Segunda-feira, 3 de Agosto de 2015
Animalismo, personismo e mentismo ou imprecisões da filosofia analítica

 

  No seu artigo «Metafísica da Morte», no compêndio em linha de Problemas de Filosofia Analítica, Pedro Galvão distingue três correntes sobre a metafísica da morte: o animalismo, o personismo e o mentismo. Escreve a partir da definição de pessoa como um ser consciente de si numa relação estreita com  um organismo animal tipo Homo Sapiens:

 

«De acordo com os animalistas (e.g. Olson 1997), essa relação é a de identidade: cada um de nós (uma pessoa humana) pura e simplesmente é um animal da espécie Homo sapiens. Sob esta perspectiva, a morte de cada um de nós será nada mais nada menos que a morte do seu organismo. Sob outras perspectivas, no entanto, esta identificação é um erro, dado que cada um de nós poderá morrer antes do seu organismo. Numa das dicussões sistemáticas mais recentes da filosofia da morte, Luper (2009: 24-38) destaca duas dessas perspectivas: o personismo e o mentismo.
Segundo o personismo, somos pessoas essencialmente. Isto implica que não poderemos sobreviver à perda da capacidade da consciência de si. Por sua vez, isto implica, por exemplo, que não poderemos sobreviver num estado de demência profunda, no qual esta capacidade se extinguiu. Mas, nesse estado, o nosso organismo seguramentenão terá ainda morrido.»

«Para os defensores do mentismo, somos sujeitos de uma mente essencialmente. Poderemos sobreviver à perda da consciência de si, mas não à extinção de todas as capacidades mentais, pelo que deixaremos de existir se o nosso cérebro perder até a capacidade mental básica de gerar estados conscientes, como dores e experiências visuais. Mas o nosso organismo poderá continuar a existir após a perdadessa capacidade. É isso que se verifica nos casos de estado vegetativo persistente.
Às três perspectivas referidas correspondem perspectivas distintas sobre as condições de persistência das pessoas humanas. Por
outras palavras: correspondem respostas distintas ao problema da identidade pessoal ao longo do tempo.»
«O animalista, como afirma que cada um de nós tem as condições de persistência do seu organismo (porque pensa que cada um de nós é o seu organismo), negará que a identidade pessoal dependa de alguma forma de continuidade psicológica. Pois a sobrevivência de um organismo humano, como nos mostram os casos de estado vegetativo persistente, não depende de nenhuma forma de continuidade psicológica.
Se aceitarmos uma perspectiva psicológica da identidade pessoal,teremos de rejeitar o animalismo. » (Pedro Galvão, Metafísica da Morte, pág. 1-2, in Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica, de João Branquinho e Ricardo Santos, transcrição em 2 de Agosto de 2015; o destaque a negrito é posto por nós).

 

A distinção entre personismo e mentismo não é clara. Galvão não define o que é ser pessoa quando define que «segundo o personismo, somos pessoas essencialmente». Que diferença há entre ser pessoa e ser mente? É preciso explicitar. Como pode Pedro Galvão garantir que «a sobrevivência de um organismo humano, como nos mostram os casos de estado vegetativo persistente, não depende de nenhuma forma de continuidade psicológica»? Existe a teoria aristotélica de que a alma é forma do organismo, logo enquanto este persistir a alma vegetativa ou animal há-de continuar a dar-lhe forma. Não conhecemos por dentro a psique de quem está em estado vegetativo persistente nem o lugar onde se encontra. Se um corpo em estado vegetativo se conserva incorruptível há provavelmente nele uma mente ou identidade psicológica «adormecida». Segundo diversas correntes espiritualistas, budistas ou não, a mente da pessoa em estado vegetativo viajará em outros planos da existência, em mundos superiores ou inferiores, logo mantém a identidade psicológica.

 

A MENTE INCORPORADA

 

Pedro Galvão acrescenta, sem hierarquizar em relação às três correntes citadas , o que é típico da confusa filosofia analítica (divide, analisa horizontalmente e carece de sistematização, de pensamento vertical), mais outra corrente: a da mente incorporada.

«De acordo com outras perspectivas psicológicas, a identidade pessoal é fundamentalmente uma questão de continuidade de capacidades mentais. A perspectiva da mente incorporada, de McMahan, enquadra-se nesta categoria. Diz-nos que continuaremos a existir enquanto a nossa mente continuar a existir – e que a nossa mente continuará a existir enquanto o nosso cérebro se mantiver minimamente capaz de gerar estados conscientes (McMahan 2002: 67-69).
A perspectiva da mente incorporada é superior às suas rivais. Assim sendo, há que aceitar o mentismo e que conceber a morte das pessoas humanas como algo distinto da morte dos seus organismos. .(Pedro Galvão, Metafísica da Morte, pág. 2, in Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica, de João Branquinho e Ricardo Santos; o destaque a negrito é posto por nós). 

 

Os chamados «novos filósofos» são assim: fertéis em definições, quase sempre imprecisas, muitas vezes duplicadas noutras, incapazes de uma verdadeira sistematização.  As universidades em filosofia são estéreis: não atingem sequer a mais alta das filosofias, o predestinacionismo de tudo o que acontece no planeta Terra e na humanidade por virtude dos astros, a astrologia histórica.

 

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Quarta-feira, 6 de Agosto de 2014
Equívocos de Pedro Galvão sobre Identidade Pessoal

 

No artigo «Identidade pessoal»da edIção de 2013 do «CompêndIo em lInha de problemas de fIlosofIa analítIca», o professor universitário Pedro Galvão expende teses que, a meu ver, contêm equívocos. Escreveu referindo-se a Fernando Pessoa e aos seus dois heterónimos (personagens fictícias que inventou) Álvaro de Campos, adepto do progresso industrial, e Ricardo Reis:

 

 

«Mais sucinta e intuitivamente: a identidade pessoal consiste em continuidade psicológica (porventura causada de uma certa forma) sem ramificações. A Divisão é um exemplo de continuidade psicológica ramificada, de um para vários, mas também podemos conceber casos inversos de ramificação, de vários para um. Suponha-se, porexemplo, que após alguns anos transplantamos um dos hemisférios
de Campos e um dos hemisférios de Reis para o mesmo crânio vazio de um corpo humano vivo, resultando daí uma certa pessoa. Também essa pessoa – poderíamos chamar-lhe ‘Fernando’ – não seria nem Campos nem Reis, ainda que fosse psicologicamente contínua com ambos.
A continuidade psicológica, note-se, não admite graus.» (Pedro Galvão, Identidade pessoal, CompêndIo em lInha de problemas de fIlosofIa analítIca, pag.7; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Contesto estas teses de Galvão: a identidade pessoal consiste tanto em continuidade psicológica como em continuidade biofísica. Se os nossos olhos mudassem completamente, tal como o nosso rosto, por um acidente inesperado, desapareceria, no todo ou em parte, a continuidade psicológica: uma pessoa com o rosto parcial e irreversívelmente desfeito por uma explosão ou por ácido não tem a mesma identidade pessoal que tinha antes do terrível acidente. Pedro Galvão situa-se na linha do dualismo cartesiano, separando a alma do corpo físico e conferindo a supremacia ao psíquico, à alma.

 

É também falso afirmar que «A continuidade psicológica, note-se, não admite graus.» O homem terrivelmente lesionado, cujo rosto suscita medo aos outros, tem alguma continuidade psicológica: lembra-se de quem era, do seu passado quando tinha um rosto belo, sem lesões, e isto é continuidade (memória); sente-se permanentemente ou quase diminuído, humilhado por não poder apresentar beleza, simpatia física ao contactar as outras pessoas e isto é descontinuidade. Há, portanto, graus de continuidade psicológica. Esta está sempre a variar em quantidade ao longo da vida - visão dialéctica que Pedro Galvão não perfilha.

 

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Sexta-feira, 2 de Maio de 2014
Equívocos no manual «Cogito, Filosofia 11ºano» da Asa (Crítica de Manuais Escolares- LX)

 

 

Vários equívocos caracterizam o livro do professor Cogito, Filosofia 11º ano, de Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão, da Asa.

 

DESASTRE EM PERGUNTAS DE ESCOLHA MÚLTIPLA

 

O manual comporta várias questões de escolha múltipla mal concebidas. Vejamos exemplos:

 

«Para cada uma das questões que se seguem, indique a única resposta correcta.

 

«1. De acordo com a definição tradicional de conhecimento proposicional, uma crença é conhecimento:

a. se for verdadeira.

b. só se derivar da experiência.

c. só se for verdadeira

d. se derivar da experiência.»

(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,  Asa, pág. 181)

 

Segundo os autores do manual a única resposta certa é a 1-c.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).

 

Crítica minha: há duas respostas certas, 1-a e 1-c. A palavra «só» da hipótese c é redundante. Como se pode negar que a resposta a está correcta? Só por miopia, ultra-detalhismo deformante...

 

Eis outra questão da ficha informativa da página 181 do manual:

 

«2. O conhecimento a priori:

a. tem de basear-se na experiência

b. pode não se basear na experiência.

c.  resulta de ideias inatas.

d.  não pode basear-se na experiência.»

(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,  Asa, pág. 181)

 

Segundo os autores do manual a única resposta certa é a 2-b.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).

 

Crítica minha:  Há duas respostas certas ,  c e d, e uma semi certa,  b. De facto, o conhecimento a priori resulta de ideias inatas, anteriores à experiência, e, como tal não pode basear-se na experiência. Custa a crer como os autores se equivocam e equivocam os alunos de forma tão grosseira...

 

Vejamos outro exemplo:

 

«4. De acordo com o falibilismo, uma crença justificada:

a. baseia-se na experiência.

b. pode ser falsa.

c. não pode ser falsa

d. baseia-se na intuição racional.»

 

(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,  Asa, pág. 181)

 

Segundo os autores do manual a única resposta certa é 4-c.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).

 

Crítica minha: a resposta correcta é b, e não c como assevera o manual. Senão vejamos: a teoria de Popper sobre as ciências é falibilista, isto é, admite que qualquer tese ou crença justificada das ciências empíricas - como por exemplo: «a molécula de água é composta por dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio», «o efeito Doppler, a deslocação da luz para o vermelho prova que o universo está a expandir-se» - pode ser falsa, ou sendo verdadeira, apresentar falhas, excepções significativas às regras..

 

Outro exemplo:

 

«2. Para dar uma explicação científica de um fenómeno é preciso:

a. referir uma previsão útil. que melhore a vida da humanidade.

b. indicar a lei geral dentro da qual o fenómeno não podia deixar de ocorrer, considerando as condições iniciais verificáveis.

c. descrever uma regularidade observável, em termos muito exactos.

d. subsumir o fenómeno numa lei geral muito precisa e informativa, que apenas permite explicar outras ocorrências do mesmo fenómeno.»

 

(Cogito, Filosofia 11º ano, Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,  Asa, pág. 248).

 

b.(Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).

 

Crítica minha: há três respostas certas, b,c,d. As respostas b e d são praticamente indistinguíveis. Com que direito e racionalidade opta o manual por excluir a d? A resposta c também está certa porque «descrever uma regularidade observável» é esboçar ou formular uma explicação científica. Exemplo: ainda que não se saiba bem o que é um OVNI, várias aparições de objectos deste tipo nos céus possibilitam descrever certo tipo de comportamentos físicos e electromagnéticos, com regularidades.

 

 

Com este tipo de questões, de resposta errónea ou equívoca, os alunos ficam sujeitos à pura arbitrariedade, o que é desastroso para a justiça na avaliação de conhecimentos e para a imagem da filosofia como disciplina prestigiada e ensinável.

 

A EXISTÊNCIA DO EU É UMA QUESTÃO DE FACTO PARA HUME?

 

Nas páginas que se referem à teoria de David Hume o manual propõe como actividade:

 

1. "Eu existo" é uma relação de ideias ou uma questão de facto?»

 

E dá a seguinte resposta:

«1. Uma questão de facto. Ao afirmar a minha existência, estou a afirmar a existência de uma entidade concreta. Além disso, eu poderia não ter existido: negar a proposição não leva a uma contradição.»

(Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,Cogito, Filosofia 11º ano,   Asa, pág. 153).

 

Crítica minha: Ao contrário do teor desta resposta, Hume considerava o "eu" uma relação de ideias, não um facto provado. Cito Hume:

 

«Mas o eu ou pessoa não é uma impressão, mas aquilo a que se supõe que as várias impressões têm referência. (...) Nunca consigo apanhar-me a mim próprio, em qualquer momento, sem uma percepção, e nada posso observar a não ser a percepção».

 

(David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág 300).

 

Portanto, a existência do eu é indemonstrável, segundo Hume. É uma suposição pois os homens são fluxos de perceções em constante devir:

 

 

«... Atrevo-me a afirmar do resto dos homens que cada um deles não passa de um feixe ou colecção de diferentes percepções que se sucedem umas às outras com inconcebível rapidez e que estão em perpétuo fluxo e movimento.» (David Hume, ibidem, pág 301).

 

Lembra a teoria budista dos dharma ( à letra: lei) ou qualidades existenciais de cada ser humano ( exemplo: percepção visual, percepção táctil, memória, inteligência, etc) que flutuam como átomos no espaço vazio e se juntam, por acaso, para produzir este ou aquele indivíduo concreto.

 

 

 

HUME ACEITA O REALISMO INDIRECTO OU REALISMO CRÍTICO?

 

 

Na ficha formativa da página 181 deste manual «Cogito» figura a seguinte questão:

 

«3. Leia o texto seguinte:

 

«Os realistas indirectos aceitam que a minha chávena de café existe independentemente de mim. Consideram, no entanto, que eu não tenho uma percepção directa desta chávena. O realismo indirecto afirma que a percepção envolve imagens mediadoras. Quando olhamos para um objecto não é esse objecto que vemos directamente, mas sim um intermediário perceptual. (...) Para o realista indirecto, a chávena de café na minha secretária causa a presença de um dado dos sentidos bidimensional: vermelho na minha mente, e é este objecto que eu percepciono directamente. Consequentemente, a chávena de café só é por mim percepcionada indirectamente, isto é, eu só a percepciono porque estou ciente do dado dos sentidos que a causou na minha mente.» (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Lisboa, Gradiva, 2013, pag 82).

 

3.1.  Será que Descartes defende o realismo indirecto? Porquê?

3.2   Será que Hume defende o realismo indirecto? Porquê? »

(Cogito, Filosofia 11º ano, de Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,  Asa, pág. 181)

 

As respostas que os autores dão são as seguintes:

 

«3.1.

Sim Descartes defende o realismo indirecto.

- Em seu entender, os objectos imediatos da percepção são ideias. Embora coloque a possibilidade céptica de as ideias sensíveis não serem representações de objectos físicos. Descartes argumenta que provando que Deus existe e não é um ser enganador, podemos ficar certos de que as nossas ideias sensíveis são, de facto, "imagens mediadoras"  de objectos físicos.

- Assim, através dessas ideias, percepcionamos realmente objectos físicos.»

(Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).

 

3.2

«Hume aceita o realismo indirecto, mas não parece defendê-lo propriamente.

«- Acredita, sem dúvida, que os objectos imediatos da percepção são impressões e que estas são causadas por objectos físicos.

«- No entanto, julga ser impossível justificar esta crença. Pois, em seu entender, só podemos estabelecer relações causais a partir de conjunções constantes observadas. Mas, acrescenta, nunca podemos observar uma conjunção constante entre impressões e objectos físicos, pois só as primeiras podem ser directamente percepcionadas». (Paula Mateus, Pedro Galvão, Ricardo Santos e Teresa Cristovão,Guia do Professor, Cogito, 11º ano, pág 83).

 

Crítica minha:

3.1.

Descartes perfilha, sim, o realismo indirecto ou crítico. Os autores enganam-se ao dizer que «os objectos imediatos da percepção são ideias». É uma confusão: os objectos imediatos da percepção são as cadeiras, as nuvens, os corpos de animais ou de humanos, isto é, os corpos físicos, as ideias essas, são, sim, as percepções - refiro-me às ideias adventícias.

Os autores manifestam ignorância ao não distinguirem, na gnosiologia de Descartes, as qualidades primárias (forma, tamanho, movimento, número) existentes realmente nos objectos físicos e as qualidades secundárias (peso, dureza, cor, odor, som, prazer, dor, etc) que existem apenas dentro da mente e não nos objectos exteriores. Por isso quando dizem «Assim, através dessas ideias, percepcionamos realmente objectos físicos.» fica-se sem perceber de que tipo de ideias se trata em concreto, isto é, não se percebe como são os objectos físicos segundo Descartes: a rosa vermelha na visão (ideia adventícia) corresponde a uma rosa vermelha na realidade exterior? Vaguismo, nebulosidade do manual, incompreensão da ontognoseologia cartesiana... Eis uma amostra do saber dos que pontificam na universidade portuguesa actual e na Sociedade Portuguesa de Filosofia.

 

Crítica minha:

3.2.

 

A frase dos autores «Hume aceita o realismo indirecto, mas não parece defendê-lo propriamente» é confusa, incoerente. Hume não aceita o realismo, seja este directo, ingénuo, ou indirecto, crítico. É um erro grave dizer que Hume «acredita, sem dúvida, que os objectos imediatos da percepção são impressões e que estas são causadas por objectos físicos». Se assim fosse, Hume seria realista. Um dos pilares da doutrina idealista de Hume é, justamente, afirmar a impossibilidade de demonstrar que há um mundo físico real fora das nossas mentes. Logo, ao contrário do que diz o manual, Hume não acreditava que as impressões eram causadas por objectos físicos exteriores:

 

«Esta mesa que, neste momento, se me apresenta, é apenas uma percepção e todas as suas qualidades são qualidades de uma percepção. Ora a mais óbvia de todas as suas qualidades é a extensão». (David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág 286).

 

«Não temos ideias perfeitas de nada senão das percepções. Uma substância é inteiramente diferente de uma percepção. Não temos, pois, nenhuma ideia de substância. A inerência a qualquer coisa é, segundo se supõe, necessária, como suporte das nossas percepções. Nada parece necessário para servir de suporte à existência de uma percepção.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág 280; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Ricardo Santos, Paula Mateus ou Pedro Galvão são doutorados? São. E são «especialistas em lógica proposicional»? Diz-se que sim. E de que lhes serve isso, se não são capazes de visualização ontológica das doutrinas de Descartes, Hume, Kant, etc, o que só uma lógica intuitiva, informal, dialética pode proporcionar? Note-se que, neste manual, por não dominarem a ontognosiologia,  os autores omitem a oposição frontal entre idealismo material e realismo material e, no seio deste, entre realismo ingénuo e realismo crítico, em particular na teoria de Descartes, evitam definir o idealismo de Kant, etc.

 

A filosofia analítica é uma filosofia menor, feita de cortes e sobreposições de conceitos, organizados em hierarquias mais ou menos disformes. As universidades oficiais são um viveiro de doutorados medianamente inteligentes que burocratizam a filosofia, isto é, a fazem decair rapidamente na vulgaridade e no lodo dos equívocos. As perguntas de escolha múltipla, tão em voga nos manuais e testes escolares de quase todos os docentes de filosofia do secundário, são um exemplo dessa burocratização e fraca qualidade de pensamento.

 

 

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Sábado, 20 de Abril de 2013
Equívocos no manual do 10º ano «Razões de ser» da Porto Editora (Crítica de Manuais Escolares - XLVI)

 

O manual «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» de António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, da Porto Editora apresenta diversas incorrecções teóricas. É inferior, em qualidade teórica, ao manual «Novos Contextos» de José Ferreira Borges, Marta Paiva e Orlando Tavares, da mesma editora, ainda que ambos estejam bem concebidos no plano gráfico.

 

A INCAPACIDADE DE DEFINIR CLARAMENTE DETERMINISMO E DE CRITICAR, NO ESSENCIAL, O «DILEMA DO DETERMINISMO»

 

Escrevem António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus:

 

«Hoje, como o determinismo se revelou duvidoso, poucos filósofos se descreveriam como deterministas radicais. Ainda assim, muitos negam o livre-arbítrio porque pensam que a verdade do determinismo é irrelevante para a questão: quer o mundo seja determinista quer seja indeterminista, não somos agentes livres. O seu argumento, conhecido por dilema do determinismo, é o seguinte:

 

(1) - Ou o mundo é determinista ou é indeterminista.

(2) - Se o mundo é determinista, não temos livre-arbítrio.

(3) - Mas se o mundo é indeterminista, também não temos livre-arbítrio.

(4)- Logo, não temos livre-arbítrio.

 

É na premissa (3) que temos de nos concentrar. Por que razão havemos de crer que o indeterminismo, como nos diz esta premissa, é incompatível com a liberdade humana?

Vimos já como se pode argumentar que o determinismo exclui o livre-arbítrio. Se o determinismo é verdadeiro, as nossas acções não são livres porque resultam de factores que estão fora do nosso controlo: as leis da natureza e as circunstâncias anteriores à nossa existência.»

 (António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus,  «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» página 62, Porto Editora).

 

Os autores passam por cima da premissa (2) sem detectar que ela se baseia na falsa dicotomia «ou há determinismo ou há livre-arbítrio». O que é o determinismo? Não definem com clareza. Aceitam acriticamente o «argumento da consequência» de Peter van Ingwagen, que reproduzem na página 59 do manual:

 

«Se o determinismo é verdadeiro, então os nossos actos são consequência das leis da natureza e de acontecimentos situados no passado remoto. Mas o que aconteceu antes de termos nascido não depende de nós; tão-pouco as leis da natureza dependem de nós. Logo as consequências destas coisas (incluindo as nossas ações) também não dependem de nós.» ( Um ensaio sobre o livre-arbítrio, pag 16).

 

O erro de Peter van Inwagen, filósofo norte-americano, - e de António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, que o seguem, de forma acrítica - é considerar livre-arbítrio e determinismo como contrários excludentes (princípio do terceiro excluído) quando, de facto, são contrários coexistentes num termo intermédio: o determinismo limita-se ao mundo biofísico mas não penetra na esfera humana psíquica onde reina o livre-arbítrio, a razão que faz frente aos impulsos da natureza e delibera. Ambos,  o determinismo e o livre-arbítrio, coexistem no tecido do ser, o ser cósmico e o ser humano. Portanto, a premissa (2) do dilema do determinismo é uma falácia. Isto é ignorado pelos autores do manual. A filosofia analítica não conceptualiza a diferença entre contrários excludentes, incompatíveis, e contrários coexistentes, compatíveis.

 

O FALACIOSO SILOGISMO «MODUS TOLLENS» DO LIBERTISTA

Prossegue o manual:

 

«Vamos examinar agora as perspectivas que nos dizem que os agentes humanos têm uma vontade livre. Uma delas é o libertismo, que é também uma forma de incompatibilismo. Porém, em vez de afirmar o determinismo para negar o livre-arbítrio, que é a via escolhida pelo determinista radical, o libertista afirma o livre-arbítrio e nega o determinismo. Partindo do argumento da consequência, ele raciocina desta forma:

 

(1) Se o determinismo é verdadeiro, então não temos livre-arbítrio. 

(2) Temos livre-arbítrio.

(3) Logo, o determinismo não é verdadeiro.»

 

«O grande desafio que se coloca ao libertista é defender a premissa (2), o que implica descobrir uma forma de escapar ao dilema do determinismo.»

(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus,  «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» páginas 62-63, Porto Editora)

 

 

A grande crítica que cabe fazer é à premissa (1). O erro deste silogismo condicional falácia de modus tollens está aí (para ser um modus tollens correcto a segunda premissa seria Não temos livre-arbítrio). O determinismo é verdadeiro em que região do ser? Na natureza biofísica. E o livre-arbítrio, onde vigora? No mundo psíquico e racional humano. Portanto, não podem excluir-se mutuamente, no quadro global. Há lugar para ambos. Os autores do manual não colocam assim a questão com esta clareza e arrastam uma nuvem de confusão raciocinante. Escapar ao dilema do determinismo? Mas é um falso dilema. É esta a mediocridade da filosofia analítica: pseudo dilemas, isto é, falácias de dicotomia, pseudo paradoxos como o de Russel, etc.

 

 

 

O ACASO NÃO CONTRIBUI PARA TORNAR AS ACÇÕES LIVRES?

 

Escrevem ainda os autores, a propósito de acções livres:

 

«Como devemos, então, conceber as acções livres? Estas têm de ser acontecimentos indeterminados, segundo o libertista. Mas os acontecimentos indeterminados parecem ser apenas aqueles que ocorrem em parte por acaso. E o acaso, como vimos, nada contribui para tornar uma acção realmente livre

(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus,  «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» página 63, Porto Editora; o destaque a negrito é posto por mim).

 

 

É uma visão errónea: a acção livre comporta sempre uma certa dose de acaso psicológico, espiritual, interno ao agente. De facto, na essência da liberdade está o acaso, o não predestinado, o não determinado por um encadeamento rígido de causas e efeitos. O livre-arbítrio é uma estrutura psíquica mista de acaso e necessidade. Se não houvesse acaso nas escolhas racionais, não haveria livre-arbítrio.

 

  

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Segunda-feira, 21 de Maio de 2012
Incoerências no livro «Preparação para o exame nacional 2012, Filosofia, 11» da Porto Editora - ou como os inimigos da filosofia se introduzem no castelo do pensar (I)

A Porto Editora lançou um livro de preparação para o restaurado exame nacional de filosofia do 11º ano, que terá lugar em 20 de Junho de 2012, em Portugal. A autoria do dito livro é de Pedro Galvão e António Correia Lopes.

 

E a Porto Editora factura, vendendo dezenas de milhares de exemplares - a 26 euros cada um, ao grande público - de um manual que apresenta consideráveis erros em filosofia, os erros típicos da chamada «filosofia analítica» que, de forma galopante, ocupa lugares de cátedra em muitas universidades e junto de editores, produtores de televisão e gabinetes influentes em ministérios da educação. Professores e autores de manuais de filosofia analítica são, em regra, verdadeiros cavalos de Tróia da sofística, da (anti) filosofia da linguagem, que invadiram a cidade do pensamento, mutilando e deformando este. Vejamos alguns das centenas de erros e equívocos em que este livro flutua pantanosamente. 

 

 

O UTILITARISMO NÃO É UM CONSEQUENCIALISMO, MAS UM ACTUALISMO

 

« O utilitarismo é uma teoria ética consequencialista, pois considera que são as consequências da acção que determinam se esta é moralmente correcta». (Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 51). 

 

Esta é  uma definição um pouco idiota. O erro desta definição está em confundir o teor da acção (o acto) com as consequências (a potência). O utilitarismo não é consequencialista mas sim actualista: o que conta é agir e o resultado instantâneo, não a consequência. Exemplo: um presidente de uma câmara municipal, sabendo que não há verbas para pagar aos funcionários camarários, desloca verbas afectas a outra rubrica que não de pagamentos de salários e paga de imediato os salários do mês em curso. A consequência imediata deste acto ilegal é os trabalhadores verem o seu sustento assegurado e a consequência mediata, a curto ou médio prazo, é serem obrigados a devolver o dinheiro e o presidente da câmara ser julgado em tribunal. Vemos, pois, que o termo «consequência» é ambíguo: o acto utilitarista do presidente da câmara não foi, verdadeiramente, consequencialista, limitou-se a assegurar a maior felicidade a muitos naquele momento.

  

Por que razão Stuart Mill não definiu a sua doutrina como consequencialismo? Porque era mais inteligente que Simon Blackburn, Peter Singer, Desidério Murcho, Pedro Galvão, António Correia Lopes: consequência é mais do que resultado imediato da acção e Mill centra-se neste. As consequências a médio e longo prazo são, com frequência, contrárias ao utilitarismo. Por isso é equívoco, parcialmente erróneo, definir o utilitarismo como um consequencialismo quando é, sobretudo, um instantaneísmo actual ou actualismo.

 

Imaginemos uma orgia sexual envolvendo 30 pessoas adultas e livres organizada por um casal na sua vivenda de férias: é um acto hedonista, utilitarista visto que satisfaz o prazer de uma maioria ou de todos os envolvidos, no momento (actualismo) mas não é consequencialista uma vez que não há distribuição de preservativos e não prevê as consequências deste acto do qual alguns dos participantes sairão infectados por HIV ou outros males venéreos.

 

UMA ERRÓNEA CONCEPÇÃO DO UTILITARISMO: SOBREVALORIZAR O RESULTADO, ESVAZIAR A INTENÇÃO (DEONTOLOGIA)

 

Escrevem ainda Galvão e Correia Lopes:

 

«CRÍTICAS AO UTILITARISMO:

Objeção do criminoso azarento: se aceitarmos o utilitarismo, alguém claramente mal-intencionado terá agido correctamente ao ter o azar de a sua acção correr mal e tiver consequências benéficas que não foram por si desejadas, e o mesmo para alguém bem-intencionado cuja acção, contra o previsto, gera apenas sofrimento.» (ibid, pag 51).

 

Este é o modelo de raciocínio de autores da "filosofia analítica": isolam aspectos do mesmo fenómeno, neste caso, o resultado e a intenção, e sobrevalorizam o primeiro apagando o segundo. Ora isto não é o utilitarismo de Mill. Este considera a acção eticamente correcta aquela que une um resultado favorável à felicidade de uma maioria, com uma recta intenção. É deontológico. É a deontologia das maiorias ao passo que a moral de Kant é a deontologia da universalidade humana e do seu contrário, o indivíduo singular.

 

Um terrorista que ia fazer explodir uma bomba numa esplanada de restaurante onde estão 100 pessoas mas que morre, ao explodir a bomba involuntariamente num local isolado, sem causar vítimas,  não cometeu um acto bom, segundo o utilitarismo de Mill. Agiu com dolo, ainda que o acaso ou o destino lhe tenham trocado as voltas - mas os autores deste manual sustentam que, segundo Mill, o terrorista cometeu acto benéfico porque menosprezam o peso da intenção no acto moral utilitarista.

 

POR QUE RAZÃO A POSIÇÃO ORIGINAL, SEGUNDO JOHN RAWLS, IMPEDIRIA A NEGOCIAÇÃO?

 

 

Sobre a teoria de John Rawls, escreve-se o seguinte:

 

«CRÍTICAS À TEORIA DE RAWLS:

- Críticas ao acordo sobre os princípios:

. Um acordo implica negociação: na posição original não pode haver genuína negociação. (ibid, pag 53)

 

Porquê? Claro que pode. A posição original é aquela em que, numa assembleia ideal de todos os cidadãos de um país ou região, cada um exprime as suas ideias na moldagem das leis, sem conhecer a posição social e económica dos outros cidadãos, de modo a que não haja constrangimentos. Isto não impede a negociação genuína: se, por exemplo, 500 000 cidadãos sustentam que a lei deve autorizar o aborto voluntário na mulher até às 12 semanas de gravidez e 400 000 cidadãos estão contra, é possível negociar uma lei que seja resultante das vontades opostas, por hipótese, acordarem a permissão do aborto clínico até 8 semanas após o início da gravidez.

 

UMA DEFINIÇÃO UNILATERAL DE OBJECTIVISMO

 

É deste modo que o manual define objectivismo:

 

«O objectivismo (quanto aos valores, ou axiológico) é a teoria de segunda ordem que defende que os valores são propriedades objectivas do mundo, independentes das valorações efetivamente realizadas por indivíduos e culturas. Há, portanto, juízos de valor objectivamente verdadeiros e falsos (são, na verdade, juízos de facto).» (Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 34; o destaque a negrito é posto por mim). 

 

Esta definição é parcialmente errónea. Há um objectivismo intra anima (dentro da alma) que sustenta que os valores são os mesmos para todas as pessoas, embora não estejam plasmados nos objectos e ações e não existam no mundo exterior: é o objectivismo irrealista. Exemplo: é objectivismo ético considerar que «é má prática a profanação de cemitérios»  e que «violar uma criança é crime». Este objectivismo reside na comunidade de valoração, não está fora desta. Poder-se-ia designá-lo como intersubjectivismo generalizado.

Há um objectivismo extra anima (fora da alma) que diz que os valores de bem e mal são os mesmos para toda a gente e residem nos objectos e actos exteriorizados. Exemplo: o veneno da serpente é um valor de coisa mau, a explosão de uma bomba matando civis inocentes é um acto mau, etc.

 

Esta distinção não é feita na filosofia analítica. É paradoxal: os analíticos carecem de poder de análise, são incapazes de perceber os dois sentidos do termo «objectivismo» ao passo que os dialéticos, como eu, que sou ideomaterialista dialético e não materialista dialético, vão muito mais longe em precisão de conceitos. Dialética é, dito de forma sintética, «um divide-se em dois, que lutam entre si». Nós, dialéticos, somos muito superiores em rigor de pensamento aos analíticos que atomizam o pensamento, perdendo de vista a unidade das diferentes determinações e o devir destas.

 

A confusão sobre o conceito de objectivismo é patente no seguinte exercício do manual:

 

Exercício 1

Selecione a alternativa correcta.

 

1. A distinção entre juízo de facto e juízo de valor não é óbvia, porque para o objectivismo...

 

«A. os juízos de valor são juízos de facto.

 B. os juízos de valor não são juízos de facto.

 C. .os juízos de valor exprimem apreciações.

 D. os juízos de valor descrevem estados de coisas.»  

 

(Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 168). 

 

A resposta que o manual aponta como certa é  B: «os juízos de valor não são juízos de facto.» (ibid, pag 216)

 

Trata-se de miopia teórica dos autores do manual: admito que a resposta 1-B esteja correcta mas também a 1-C e a 1-D estão. Não é verdade que os objectivistas consideram que «os juízos de valor exprimem apreciações» e que «os juízos de valor descrevem estados de coisas» ?. É. Portanto, não há uma mas três respostas correctas. Logo, o exercício está mal concebido. Serão estes autores os escolhidos pelo GAVE para elaborar o exame nacional de filosofia? Oremos aos deuses para que não sejam... Seria grave se fossem as mesmas pessoas a fazer este manual e a prova de exame- seria um sinal de promiscuidade ilícita entre o Estado e uma editora privada

 

O RELATIVISMO CULTURAL FRACTURA CADA SOCIEDADE, AO CONTRÁRIO DO QUE DIZ A FILOSOFIA ANALÍTICA

 

O relativismo cultural é também definido de forma imperfeita, parcialmente errónea, neste manual.

 

Exercício 4

 

Considere o texto:

 

«O relativismo cultural considera o mundo como algo que está dividido de forma nítida em sociedades distintas. Em cada uma delas não existe desacordo em questões morais, ou o desacordo é reduzido, dado que a perspectiva maioritária determina o que é considerado um bem ou um mal nessa sociedade. Mas o mundo não é assim. Pelo contrário, o mundo é uma mistura confusa de sociedades e grupos sobrepostos; e os indivíduos não seguem necessariamente o ponto de vista da maioria.»

Harry Gensler, Ethics, A contemporary Introduction, 1996

 

1. Defina o relativismo cultural.»

 

(Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 170; o destaque a negrito é posto por mim). 

 

Antes de mais, convém assinalar o magma caótico do pensamento de Harry Gensler: ele define o relativismo cultural como um tecido homogéneo dentro de cada sociedade - o que é um erro - e como diversidade entre as diversas sociedades - o que está certo. Ora o relativismo cultural é também o haver direitas e esquerdas sócio-políticas no seio da mesma sociedade, gastadores e poupadores, religiosos, agnósticos e ateus, góticos, punks e dreads, heterossexuais, bissexuais e homossexuais. Nada disto é compreendido por Harry Gensler e outros filósofos analíticos nem pelos autores do manual. Nem pela generalidade dos catedráticos de filosofia, em Portugal, no Reino Unido, EUA e outros países.

 

A correcção diz o seguinte:

 

«1. De acordo com o relativista cultural, não há padrões absolutos ou universais do bem e do mal. O facto de algo ser bom, ou algo ser mau, é sempre relativo a sociedades específicas. Se numa sociedade a maioria aceitar que a poligamia (casamento entre mais de duas pessoas) é boa, então a poligamia é boa para essa sociedade; se noutra sociedade a maioria pensar o contrário, então a poligamia será má para essa sociedade.» (ibid, pag. 216; o negrito é colocado por mim)

 

 

Impor a vontade da maioria ao todo social não é relativismo mas absolutismo. Além disso, Absoluto não é o mesmo que universal. Este pode ser relativo à época e vigorar em simultâneo no mundo inteiro. O relativismo é, antes de mais, a variação de classe a classe social,  de grupo a grupo estilístico, religioso, desportivo, de indivíduo a indivíduo, no interior de uma mesma sociedade.

 

Insisto: os pequenos "filósofos analíticos" - em Portugal, representados na revista «crítica na rede», na Sociedade Portuguesa de Filosofia, nos manuais para o 10º e 11º ano do ensino secundário, em nichos universitários influentes, nos autores do presente manual - não têm suficiente poder de análise. São estes impensantes que as grandes editoras - os senhores do negócio, os iluminati - divulgam e pagam.

 

 

UMA DEFINIÇÃO CONFUSA DE DETERMINISMO

 

«A tese que aparentemente se lhe opõe, o determinismo, é especialmente interessante se for tomada como uma tese universal ou radical, no sentido de defender que toda e qualquer ação (e decisão) é, como os simples acontecimentos, inteiramente determinada por factores que os agentes não controlam».(Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 23; o destaque a negrito é posto por mim). 

 

Ora o indeterminismo biofísico - exemplos: a variação descontrolada da metereologia, gerando, por exemplo, um dia de queda de granizo em pleno verão, uma cadeira levantar-se sozinha do solo e flutuar minutos no ar, contrariando a gravidade terrestre - também se opõe ao livre-arbítrio e gera acções «inteiramente determinadas por factores que os agentes não controlam...» . Portanto, a definição acima dada está envolta na nuvem da vagueza, da ambiguidade.

 

Segundo a lógica de Galvão e Correia Lopes, tudo o que se opõe ao livre-arbítrio se designa por "determinismo"... Assim este conceito resulta interpretado como uma amálgama, de leis da natureza, excepções e acaso. A filosofia analítica, longe do mundo das ciências empírico-formais, não define, invariavelmente, o determinismo como a conexão necessária entre as causas X e os efeitos Y. Afasta-se desta definição para dizer que determinismo é a conexão passado-presente-futuro. Ora isto é um erro: a conexão passado-presente-futuro tem quase tanto de determinista como de indeterminista para as filosofias que conferem um papel de destaque ao acaso, isto é, ao factor indetermista.

 

O que há de necessário, determinista, na conexão passado-presente-futuro é o fluxo do tempo, a constância geológica e geográfica, as leis permanentes da natureza (as leis gerais da vida das aves, dos mamíferos, dos seres humanos, etc): o ano de 1925, sucede ao de 1924, este ao de 1923... Decerto, há determinismo no princípio da identidade: o território de Portugal continente é em 2012 o mesmo que em 1950 e em 1870. Mas há na conexão passado-presente-futuro uma boa dose de indeterminismo aparente:  o acidente nuclear na Ucrânia em Abril de 1986, a instalação de uma fábrica poluente na região X, a queda do regime líbio de Kadhafi em 2011, a revolução na Síria em 2012, a generalização do uso de piercings e telemóveis entre os adolescentes na primeira década do século XXI, etc.

 

A EQUÍVOCA DIVISÃO COMPATIBILISMO VERSUS LIBERTISMO E DETERMINISMO RADICAL

 

 

Mas a incapacidade dialética - e por dialética entenda-se, não o discurso sofístico, mas a determinação das múltiplas unidades de dois contrários que constituem a essência de cada coisa ou de cada tema do pensamento- de Pedro Galvão e António Correia Lopes e dos filósofos analíticos em geral é visível. Por exemplo, a seguinte divisão:

 

«2.2.5 Compatibilismo e incompatibilismo

 

Face ao problema em discussão, podemos adotar uma de duas posições filosóficas:

 

1. Incompatibilismo: o determinismo implica a rejeição do livre-arbítrio.

2. Compatibilismo: determinismo e livre-arbítrio são compatíveis.

 

O incompatibilismo admite, por sua vez, duas versões:

 

1.1 Determinismo radical: o determinismo é verdadeiro e o livre-arbítrio é uma ilusão.

1.2 Libertismo: temos livre-arbítrio, e assim, o determinismo é falso porque pelo menos alguns acontecimentos (incluindo as ações ou apenas elas) não são determinados. »

(Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 26; o destaque a negrito é posto por mim). 

 

Ora aqui existe uma confusão gritante: o libertismo, que implica livre-arbítrio ao lado de determinismo, é denominado uma forma de incompatibilismo mas é o mesmo que o compatibilismo, que implica livre-arbítrio ao lado do determinismo. No entanto, são apresentados como se fossem coisas distintas! Mas não são: do modo como estão definidos, libertismo é o mesmo que compatibilismo ou determinismo moderado, lembrando a frase de Heraclito «o caminho que sobe e o caminho que desce são um e o mesmo».

 

Só esta confusão, de que são cúmplices e fautores filósofos como Thomas Nagel, Peter Singer,  Simon Blackburn, e muitos outros, além dos catedráticos portugueses da filosofia analítica (João Branquinho, Ricardo Santos, etc) mostra como é pobre o campo da filosofia analítica, centrada no estudo da linguagem sem abarcar globalmente o campo dos referentes (extralinguísticos). Eles não pensam! Não visualizam o espaço conceptual, os géneros e as espécies, organizados vertical ou horizontalmente. Não distinguem por exemplo, determinismo radical - prefiro designá-lo como determinismo sem livre-arbítrio - de fatalismo. Decoram mecanicamente, enrolam-se no fetichismo das palavras, sem discernir o significado destas. São intelectualmente medíocres, como é medíocre este manual da Porto Editora e possivelmente - se não se inflectir caminho - será medíocre, no seu teor, o exame nacional de filosofia em Junho de 2012, em Portugal!

 

FALÁCIAS DE MINÚCIAS 

 

 Acerca do estatuto do conhecimento, o delírio (hiper) analítico dos autores chega a conceber respostas escandalosamente anti filosóficas, porque redutoras. Vejamos exemplos:

 

«10. ESTATUTO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO  

Exercício 1.

Selecione a alternativa correta.

 

2. Uma proposição empiricamente verificável é aquela que...

A. é comprovada pela experiência.

B. pode ser comprovada pela experiência.

C. tem de ser comprovada pela experiência.

D. tem que ser refutada pela experiência.(Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 34; o destaque a negrito é posto por mim). 

(pag 206)

,

 

A solução indica que a única resposta correcta é a B. É uma falácia por redução, de minúcias: considera-se que poder ser comprovada está certo mas que ser comprovado não...É ridículo: uma proposição empiricamente verificável é aquela que é comprovada pela experiência, como diz a hipótese A; e é aquela que tem de ser comprovada pela experiência, como diz a hipótese C. Logo há três hipóteses de resposta certa: A,B e C. Este tipo de pergunta é perfeitamente arbitrário, é um jogo de linguagem inadmissível para quem pensa verdadeiramente. Algo similar sucede com o seguinte exercício:

 

8. Segundo o critério de demarcação de Popper, uma teoria científica é aquela que...

A. foi refutada pela observação.

B. tem que ser refutada pela observação.

C. pode ser refutada pela observação.

D. pode ser refutável pela observação.

 

(Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 207; o destaque a negrito é posto por mim). 

 

A solução aponta como certa a resposta C (ibid, pag 252). É óbvio que a resposta D está igualmente correcta.

 

 

O EMPIRISMO NÃO EXCLUI AS IDEIAS INATAS

 

O manual insiste numa ideia errónea muito disseminada:

 

 

«Os empiristas defendem que todo o conhecimento do mundo é a posteriori. Os racionalistas defendem que algum desse conhecimento é a priori.» (Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 121; o destaque a negrito é posto por mim).  

 

O erro destas frases refuta-se do seguinte modo: o empirismo em geral defende que quase todas as nossas ideias derivam directamente das impressões sensoriais ( exemplo: a ideia de oliveira é uma cópia desbotada das oliveiras que vimos) e outras, as ideias mais abstractas, resultam de associações de ideias (exemplo: a ideia de Deus é fruto da associação das ideias complexas de pai, de juíz, de imperador, de super homem, etc); mas, para parte dos empiristas, algumas daquelas impressões podem ser impressões inata ou geneticamente gravadas nos orgãos dos sentidos (Como podemos percepcionar o amarelo se não houver a cor amarela nas nossas fibras ópticas? Como podemos percepcionar o perfume da rosa se não existir, como impressão inata, o cheiro da rosa nas nossas fibras olfactivas?) Só o semelhante reconhece o semelhante.

 

É um equívoco identificar racionalismo com inatismo. Há racionalistas que defendem a teoria da tábua rasa, isto é que nascemos com a mente vazia de conhecimentos. Inatismo é um género que intersecta em parte os géneros empirismo e racionalismo, que mutuamente considerados, são espécies de um género maior.

 

 DEFICENTE CLASSIFICAÇÃO DAS CORRENTES DA ARTE

 

No capítulo V, A dimensão estética, o manual oferece-nos três correntes sobre a arte : a teoria da arte como imitação, a teoria expressivista e a teoria formalista. E dá as seguintes definições:

 

«5.2.1. A teoria da arte como imitação

«Trata-se da mais antiga teoria da arte, aquela que vigorou durante mais tempo. Ela remonta aos grandes filósofos gregos Platão e Aristóteles, que defenderam que a arte consiste na imitação da natureza, ainda que o tenham feito de forma diferente - no caso do primeiro, como uma acusação à arte. É também conhecida como teoria mimética da arte...» .(Pedro Galvão e António Correia Lopes, «Preparação para o exame nacional 2012, 11º» Porto Editora, pag. 56). 

 

«5.2.3  A teoria expressivista

«Segundo esta teoria, a que está mais próxima do que a maioria das pessoas ainda actualmente pensa sobre a obra de arte, as obras de arte são veículos de expressão de sentimentos ou de emoções vividas pelos seus autores e, por isso, podem despertá-los naqueles que as contemplam. Trata-se de uma perspectiva que dá extrema importância à parte espiritual da experiência da arte. Ela ficou sobretudo associada ao Romantismo (século XIX), época em que substituiu a teoria da imitação...» (ibid, pag. 57)

 

«5.2.5 A teoria formalista

«A tese de Kant de que a beleza decorre apenas da pura forma de um objecto, e não da sua utilidade, representou uma antecipação da teoria formalista, que se desenvolveu na segunda metade do século XX, destacando-se o inglês Clive Bell.

Segundo esta teoria, o que faz de algo uma obra de arte é o facto de possuir uma forma que pode ser apreciada esteticamente. Assim, o que é artístico numa obra não é a sua capacidade para gerar emoções, mas as relações entre as suas qualidades formais: na pintura, as cores e figuras, e o seu equilíbrio; na poesia, os sons as repetições e cadências de palavras...» (ibid, pag 59)

 

Esta divisão triádica está mal elaborada. Em primeiro lugar, a arte como imitação da natureza não apresenta, neste esquema, um contrário, isto é, a corrente da arte como não imitação, transfiguração da natureza ou desnaturação. Expressivismo não é contrário de imitação da natureza: a exteriorização das emoções do artista (expressivismo) é compatível com a imitação da natureza. Assim, o quadro «Mona Lisa» é simultaneamente imitação da natureza e expressão do olhar subjectivo do pintor Leonardo da Vinci. Imitação (naturalismo) e expressão (subjectivismo) são espécies de géneros diferentes compatíveis entre si.

 

O formalismo, entendido como proporção e medida entre os diversos componentes da obra de arte e característica principal desta, é uma espécie de um terceiro género, compatível com imitação e expressivismo. A falta de conhecimento da dialética faz com que estes autores "analíticos", Pedro Galvão e António Correia Lopes, sejam incapazes de ordenar correctamente os conceitos e perceber com clareza as suas correlações recíprocas. De nada lhes servem os inspectores de circunstâncias e as derivações: não captam o pensamento vivo e multifacetado, a realidade dialética.

 

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Segunda-feira, 19 de Março de 2012
David Hume considerava a matemática um conhecimento a priori? (Crítica de manuais escolares - XLI)

 

Diversas imprecisões sobre David Hume são veiculadas nos manuais de filosofia para o ensino secundário. Um exemplo é o do manual «A arte de pensar» da Didáctica Editora, no qual se lê que «David Hume reconhece que há conhecimento a priori»:

 

 

«A priori e a posteriori»

 

«Os exemplos mais óbvios de verdades necessárias são as verdades matemáticas, as quais se limitam a exprimir relações de ideias. Mas são também conhecidas a priori, pois basta-nos usar o conhecimento para conhecê-las ou o raciocínio dedutivo para demonstrá-las. Por sua vez as verdades sobre questões de facto são contingentes e são conhecidas a posteriori, defende Hume. Mas o que significa tudo isto? »

«Significa que o conhecimento a priori, apesar de absolutamente certo, não é acerca do mundo, pois a sua verdade é independente de qualquer observação do mundo. Portanto, Hume reconhece que há conhecimento a priori, mas acrescenta que este conhecimento não é substancial, no sentido em que nada nos diz sobre o que existe fora do pensamento, nem nos diz como são as coisas no mundo. Isso só a posteriori podemos sabê-lo. » (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, pag. 158, Didáctica Editora; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Ora, David Hume disse exatamente o oposto: em matemática, não há conhecimentos a priori. Vejamos o que escreveu:

 

«Geralmente, os matemáticos alegam que as ideias que lhes servem de objeto são de natureza tão refinada e tão espiritual que não entram na concepção da imaginação, mas devem ser compreendidas por uma visão pura e intelectual, de que só as faculdades da alma são capazes. A mesma opinião anda espalhada pela maior parte da filosofia e é principalmente utilizada para explicar as nossas ideias abstratas e para formar a ideia de um triângulo que, por exemplo, não seja nem isósceles, nem escaleno, nem se restrinja a um determinado comprimento e proporção dos lados. É fácil de ver por que é que os filósofos gostam tanto desta teoria das percepções espirituais e refinadas: é que por este meio encobrem muitos dos seus absurdos e podem recusar submeter-se ao juízo das ideias claras, recorrendo a ideias obscuras e incertas. Porém, para destruir este artifício não temos senão que refletir no princípio tantas vezes repetido de que todas as nossas ideias são cópias das nossas impressões.»( David Hume, Tratado da natureza humana, pags 106-107, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é colocado por mim).

 

 

Hume diz que é um absurdo pretender, como o fazem muitos matemáticos e filósofos, que as ideias abstratas são obtidas por uma visão pura e intelectual, que não derivam de dados empíricos, isto é, que são obtidas a priori. Para Hume, esta teoria das percepções espirituais ou refinadas, a priori, esquece que as ideias são sempre singulares e a ideia de triângulo isósceles é cópia de impressões sensíveis de um triângulo isósceles determinado. Não há, segundo Hume, ideias nem cálculos matemáticos a priori, ao contrário do que acima afirmam os autores de «A arte de pensar».

 

HUME É CÉTICO OU NÃO?

Escreve ainda a «Arte de pensar»:

 

 

«Cepticismo moderado»

 

«Apesar das suas conclusões céticas, Hume não é um cético. Isto porque, ao contrário dos céticos, Hume defende que não devemos abandonar as nossas crenças intuitivas na existência do mundo exterior ou na existência de relações causais reais. Isto porque abandonar as nossas crenças tornaria a nossa vida impossível e poria em causa o nosso instinto de sobrevivência.» (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, Filosofia 11º ano, pag. 163, Didáctica Editora; o destaque a negrito é posto por mim).

 

 

Assim, segundo este texto, Hume produz conclusões céticas mas não é um cético. É cético e não é cético, diz a «Arte de pensar». É um pouco confuso, convenhamos...Quererão os autores dizer que Hume é cético em algumas áreas e dogmático noutras? É preciso ser claro. Em quais? É realista? É idealista? Sobre isto, a «Arte de Pensar» é omissa. Basta dizer que é cético? Não, porque, pelos vistos, o nevoeiro do ceticismo não cobre a totalidade das afirmações de Hume.  

 

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Terça-feira, 21 de Junho de 2011
Um equívoco de Pedro Galvão sobre realismo

 

No prefácio de "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", de Kant, publicado por Edições 70, Pedro Galvão, da Universidade de Lisboa, escreveu, com a supervisão ou cooperação de Desidério Murcho:

 

«O realista é alguém que tenta explicar o conhecimento na suposição de que a nossa mente apreende uma ordem que existe objectivamente no mundo. Kant sustenta que a abordagem realista não nos permite compreender o conhecimento sintético a priori, o que o leva a propor, como Copérnico, uma inversão radical de perspectiva.» (Pedro Galvão, Prefácio de "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", de Kant, pag XII, Edições 70; o negrito é da minha autoria).

 

 

A definição de realismo dada por Pedro Galvão é vaga, confusa. No idealismo de Kant, baptizado de realismo empírico, «a nossa mente apreende uma ordem que existe objectivamente no mundo».. dos fenómenos ou objectos empíricos para nós. A expressão «existe objectivamente» é ambígua. Objectivamente pode significar "colectivamente percepcionado" - e isso não implica realismo ontológico. No idealismo intersubjectivo de Kant, todos os sujeitos conceptualizam objectivamente a lei da gravidade e percepcionam objectivamente a Torre Eifel no centro de Paris ou as pirâmides do Egipto junto ao Cairo mas isso não faz da Torre Eifel ou das pirâmides objectos externos às nossas consciências, como pretende o realismo. A "ordem objectiva do mundo" é um cenário comum à generalidade dos idealismos, dos realismos e à fenomenologia. Não é a marca distintiva do realismo.

 

Escapa a Pedro Galvão e a Desidério Murcho a diferença essencial entre idealismo e realismo: a natureza ou posição da matéria. Realismo significa matéria em si mesma, fora dos espíritos humanos. Idealismo significa matéria e objectos físicos forjados em nós, na nossa mente envolvente do nosso corpo.

 

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