Eis um teste de filosofia numa perspectiva que ultrapassa o modelo de testes dos manuais escolares da chamada «filosofia analítica» que se limita quase só à análise lógica da linguagem e à ética, ignorando quase todos os grandes problemas da ontologia e da metafísica.
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA C
3 de Dezembro de 2015.
Professor: Francisco Queiroz
I
«A doutrina do ser na história universal, de Hegel, exprime a lei da tríade e comporta o conceito de alienação. Parménides sustentou que «o ser não foi nem será porque é ser, a cada instante» e a sua doutrina pode ter duas interpretações, uma realista e a outra idealista ontológica. O raciocínio de analogia pode dispensar o ethos e o pathos da retórica mas talvez não dispense a percepção empírica nem a intuição inteligível.»
1)Explique, concretamente este texto.
.
2)Exponha e classifique gnoseologicamente os quatro passos do raciocínio de Descartes a partir da dúvida absoluta até à certeza do mundo exterior.
3)Defina as leis dialéticas das causas internas e causas externas e do salto qualitativo.
4) Defina e construa um exemplo de:
A) Falácia depois de por causa de.
B) Petição de princípio.
C) Falácia ad hominem.
D) Falácia ad ignorantiam.
E) Falácia do homem de palha.
F) Convencionalismo.
CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA UM MÁXIMO DE 20 VALORES
1) A doutrina de Hegel define o ser como a ideia absoluta, o pensamento criador, extra humano, que está no princípio de tudo . Este ser desdobra-se em três fases, segundo a lei da tríade: fase lógica, Deus sozinho antes de criar o universo o espaço e o tempo (é a tese ou afirmação, o primeiro momento da tríade); fase da natureza, na qual Deus se aliena ou separa de si mesmo ao transformar-se em espaço, tempo, astros, pedras, montanhas, rios, plantas e deixa de pensar (é a antítese ou negação, o segundo momento da tríade); fase da humanidade ou do espírito, em que a ideia absoluta/Deus emerge com a aparição da espécie humana, que é Deus encarnado evoluindo em direção a si mesmo, por sucessivas formas de estado, desde o despótico mundo oriental até ao mundo cristão da Reforma protestante onde todos os homens são livres (é a síntese ou negação da negação) (VALE TRÊS VALORES). A ontologia de Parménides de Eleia diz que a única realidade é o ser uno, imóvel, imutável, esférico, invisível, imperceptível, eterno, que não foi nem será porque é eternamente o mesmo e diz que «ser e pensar são um e o mesmo». A interpretação realista desta última frase é: o pensamento é idêntico ao ser, é espelho do ser material (realismo é doutrina que sustenta que o mundo de matéria é real em si mesmo). A interpretação idealista da mesma frase é: o ser é pensamento, nada existe fora da ideia absoluta que é o ser, e o mundo de matéria, com a mudança das estações do ano, o nascimento e a morte não passa de ilusão. (VALE TRÊS VALORES) O raciocínio de analogia é o que, usando a imaginação, estabelece semelhanças de forma ou de função entre entes de natureza muito diferente (exemplos: homem e árvore; ) e de facto não precisa do ethos (carácter do orador na retórica) nem do pathos (sentimento de paixão colocado no discurso) mas não dispensa a percepção empírica (ver,tocar, ouvir, cheirar algo) nem a intuição inteligível (captar algo que não se vê nem toca). (VALE TRÊS VALORES).
.2) A radicalidade filosófica consiste no poder de a filosofia ir à raíz dos problemas, destruindo certezas do senso comum e inventando hipóteses e teses incomuns, especulativas. Os quatro passos do raciocínio de Descartes são pautados pelo racionalismo, doutrina que afirma que a verdade procede do raciocínio, das ideias da razão e não dos sentidos, racionalismo esse que é uma forma de radicalidade filosófica:
1º Dúvida hiperbólica ou Cepticismo Absoluto( «Uma vez que quando sonho tudo me parece real, como se estivesse acordado, e afinal os sentidos me enganam, duvido da existência do mundo, das verdades da ciência, de Deus e até de mim mesmo »).
2º Idealismo solipsista («No meio deste oceano de dúvidas, atinjo uma certeza fundamental: «Penso, logo existo» como mente, ainda que o meu corpo e todo o resto do mundo sejam falsos»).
3º Idealismo não solipsista («Se penso tem de haver alguém mais perfeito que eu que me deu a perfeição do pensar, logo Deus existe).
4º Realismo crítico («Se Deus existe, não consentirá que eu me engane em tudo o que vejo, sinto e ouço, logo o mundo de matéria, feito só de qualidades primárias, objetivas, isto é, de figuras, tamanhos, números, movimentos, existe fora de mim»). Realismo crítico é a teoria gnosiológica segundo a qual há um mundo de matéria exterior ao espírito humano e este não capta esse mundo como é. Descartes, realista crítico, sustentava que as qualidades secundárias, subjectivas, isto é, as cores, os cheiros, os sons, sabores, o quente e o frio só existem no interior da mente, do organismo do sujeito, pois resultam de movimentos vibratórios exteriores e que o mundo exterior é apenas composto de formas, movimentos e tamanhos e uma matéria indeterminada. (VALE QUATRO VALORES).
3) A lei das causas internas e externas sustenta que um fenómeno ou ente possui dois tipos de causas, as internas, determinantes na morfologia e desenvolvimento desse fenómeno ou ente, e as externas, indispensáveis, que actuam por meio das causas internas. Exemplo: o terreno orgânico (causa interna) é tudo, o micróbio vindo de fora (causa externa) é nada. A lei do salto qualitativo postula que a acumulação lenta e gradual em quantidade de um dado aspecto de um fenómeno leva a um salto brusco ou nítido de qualidade nesse fenómeno (exemplo: muitas greves económicas e políticas acumulam-se, gota a gota, e um dia desencadeiam a queda do governo). (VALE UM VALOR).
4) a)A falácia depois de por causa de é a que atribui uma relação necessária de causa efeito a dois fenómenos vizinhos por acaso (exemplo: «Há 10 dias vi um gato preto e caí da bicicleta, há 5 dias vi outro gato preto e perdi a carteira, logo ver gatos pretos dá-me azar). (VALE UM VALOR)
4) b A petição de princípio é uma falácia em que a conclusão se limita a repetir uma das premissas ou ambas (exemplo: «Ela venceu o concurso de a mulher mais bela, porque é a mais bela»). (VALE UM VALOR)
4) c) A falácia ad hominem é aquela que desvia a argumentação racional para o campo do ataque pessoal ao adversário (exemplo: «Ele´ganhou o concurso para gestor de empresas, mas é gay, vamos impedi-lo de subir a gestor da empresa»).(VALE UM VALOR)
4) d) A falácia do apelo à ignorância é a que raciocina sobre um fundo desconhecido e o usa de forma tendenciosa, sustentando que uma tese fica demonstrada se a não se conseguiu demonstrar a sua contrária (exemplo: «Nunca ninguém demonstrou que Deus existe, logo Deus não existe).(VALE UM VALOR)
4) e) A falácia do homem de palha é o vício de argumentação que consiste ao atribuir ao interlocutor posições que ele não defende (exemplo a respeito de um teórico que quer introduzir a acupunctura e a naturopatia nos hospitais públicos: «Ele quer acabar com os hospitais e a classe médica que receita químicos e faz cirurgias»). (VALE UM VALOR)
4.f) Convencionalismo é a teoria que sustenta que a verdade não existe em si mesma ou é desconhecida e que o se intitula verdade é apenas uma convenção (exemplo: convencionou.se que o número atómico do hidrogénio é um, na realidade ninguém pode ver um electrão de hidrogéneo»). (VALE UM VALOR)
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No seu livro «Nova Filosofia», publicado em 1990, José Reis, um catedrático de filosofia da universidade de Coimbra, produz um vórtice de confusão sobre o que são ser e ver nas doutrinas de Kant, Hegel, Heidegger e outros filósofos. Aferrando-se ao pressuposto idealista de que o ver do sujeito tem a primazia sobre o ser dos objectos físicos exteriores, Reis revela-se incapaz de perceber, verdadeiramente, o ponto de vista de alguns filósofos consagrados como Kant e Hegel.
Uma tese basilar de Reis, de recorte fenomenológico, decalcada de «O ser e o nada» de Sartre, é a de que não há conhecimento.
«E agora sim, se não há conhecimento e se, como é óbvio, também não o havia ao princípio, como surgiu ele? Se ao princípio não havia nem sujeito nem objecto, não havia nem o ver de um lado nem o ser para ver do outro, antes só havia o ser já visto (que, por ser já visto, recordemo-lo, dispensa o ver) como surgiram eles? É o problema: o problema da origem do conhecimento, com toda a história subsequente.» (José Reis, Nova Filosofia, pag 169, Edições Afrontamento, Porto).
Sustentar que o conhecimento não existe porque não há a dualidade sujeito-objecto é dizer:
A) Que havia ou há o autoconhecimento instintivo,. que não admite dúvida, por intuição.
B) Ou, em alternativa, que há apenas as coisas, desaparecendo o sujeito. Esta é, explicitamente, a posição de José Reis.
É, numa certa interpretação, a tese de Parménides de que «ser e pensar são um e o mesmo», o pensamento é o autoconhecimento do ser. Isto é, no fundo, a tese de Heidegger de que o conhecimento é a desocultação do ser, ser que vive em grande parte dentro do ser-aí ou consciência individual de cada homem. José Reis não parece sublinhar a paternidade heideggeriana desta tese que ele mesmo veicula.
Mas enquanto Heidegger mantem como fontes de investigação o passado e o futuro, Reis reduz o ser a uma mera percepção-inteleção actual (nem sequer existe o «eu») e ao respectivo referente visível (as coisas: a casa, o automóvel, etc) no momento presente, suprimindo o «ser para ver», a metafísica, o prescrutar a transcendência ou simplesmente o desconhecido:
«O ser é já visto, não só sempre mas também de si mesmo, e, não há, em absoluto, mais ver nenhum. (...) Quando se tiver percebido - justamente através dessa fórmula - que não havendo mais nenhum ser para ver (quer no tempo, quer de si mesmo) também não há mais ver nenhum, será claro que tudo o que há é tão-simplesmente o ser e que podemos, que podemos, que devemos, pura e simplesmente varrer o ver do nosso vocabulário. Se se quiser, e entretanto, substitua-se o ver por haver; embora nem sempre dê frases particularmente elegantes (sobretudo se se mantèm o sujeito do ver: eu vejo a porta= eu há a porta), poderá ajudar-nos a compreender o que há.
«Não desapareceu tudo portanto. Só desapareceu o para ver e consequentemente o ver, do ser para ver.» (José Reis, Nova filosofia, pag 128, Edições Afrontamento; o destaque a negrito é posto por mim).
Temos, pois, uma ontologia instantaneísta actualista: tudo o que existe está no agora, visível e palpável. Nem Deus cabe nisto. Nem a consciência humana geradora do mundo material, como no idealismo de Berkeley, Kant e outros, subsiste. É o materialismo do instante presente.
UMA INCOMPREENSÃO SOBRE A REVOLUÇÃO KANTIANA NA GNOSIOLOGIA
Sobre Kant, José Reis escreveu, após distinguir, sem exemplificar, númenos de fenómenos:
«A representação foi pois, historicamente, o grande problema do conhecimento. Já que este último, no seu essencial, isto é, no ver e no ser para ver, é uma impossibilidade que em si nada tem a ver com a representação, poderia sem dúvida chegar-se à sua destruição sem se passar por esta representação. Mas isso é o reino dos possíveis, não é o real; o que é facto é que foi pela representação que tal aconteceu: foi por ela que em Descartes se descobriu o ver e foi por ela que em Kant se descobriu o ser como o absolutamente outro.» (...)
«E então o nosso problema agora é este: onde está a revolução kantiana? Já o dissemos. Em ter descoberto o ser como o absolutamente outro.» (José Reis, Nova Filosofia, páginas 203-204, Edições Afrontamento; o destaque a negrito é posto por mim).
Tomemos o ser no seu sentido mais plenamente usado em filosofia: essência permanente, principial e eterna. Note-se que Reis fala no "ser" sem o definir claramente. Chama-se a isto vagueza, imprecisão conceptual.
É um erro dizer que «a revolução kantiana consiste em ter descoberto o ser como absolutamente outro». É justamente o inverso que sucedeu: a revolução gnosiológica de Kant consistiu em reduzir o universo das coisas materiais a mera criação da mente humana, a um conjunto de fenómenos (montanhas, mesas, rios, animais, corpos humanos, etc) interiores à vastíssima mente humana. O ser permanente e eterno para Kant é dual: por um lado, é os númenos; e por outro lado, é o espírito de cada homem composto de sensibilidade (onde se formam os fenómenos materiais), de entendimento (onde se formam os conceitos e juízos de base empírica como, por exemplo, o conceito de casa, ou de base matemática a priori, como, por exemplo, o juízo "Dois mais sete é igual a nove") e de razão transcendental (onde se formam as ideias de Deus, liberdade, alma imortal e de outros númenos).
Por conseguinte, Kant descobriu e postulou, na linha do idealista George Berkeley, o homem como inventor e criador, dentro da sua imensa mente, da matéria, do mundo material - idealismo. Logo, o ser para Kant não é absolutamente outro: se exceptuarmos os númenos, o ser para Kant é o sujeito cognoscente em si mesmo, pois não é posto ou criado por Deus, mas é autosubsistente e nele, no seu campo perceptivo chamado sensibilidade, se geram as paisagens urbanas e rurais ou marítimas e os entes visíveis.
NA TEORIA DE KANT, O HOMEM CRIA OS FENÓMENOS, NÃO OS RECEBE
José Reis supõe erroneamente que, na doutrina de Kant, o homem recebe os fenómenos, como imagem distorcida, dos númenos. Escreve:
«A substância, em Kant, não é como ainda em Locke, uma coisa criada por Deus à imagem e semelhança da Sua ideia, uma coisa exterior à ideia que dela tem Deus, mas, ao contrário, há só a ideia. Criar, com efeito, é ver originariamente. Por isso, a substância pelo seu lado positivo (nós só a pensamos de forma vazia) se chama númeno. E por isso o que nós conhecemos se chama fenómeno, aquilo que nos aparece: nós, ao contrário de Deus, cujo ver cria as coisas, só as recebemos. Para Deus, não pode haver coisas: aquilo que, aparecendo-lhe, lhe seria transcendente.»(José Reis, Nova Filosofia, pag 201)
Ao contrário do que sustenta José Reis, para Kant, não há só a ideia, não há só uma ideia: Deus. Há vários númenos ou ideias reais, objectivas mas incognoscíveis: Deus, almas racionais, liberdade, mundo como um todo. Reis atribui a Kant a tese de que «o ver de Deus cria as coisas». É um erro. Para Kant, que nisto é distinto de Hegel e de Berkeley, Deus não criou as coisas, os céus, os mares, as árvores, os animais, o corpo do homem. Estas coisas são criações do sujeito cognoscente, de cada espírito humano, dotado de formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo), de fornas a priori do entendimento (categorias e juízos puros), e de ideias da razão, metafísicas, livres.
Sobre o espaço, por exemplo, Kant sustentou que ele é criação subjectiva do sujeito homem e não de Deus:
«a. O espaço não representa qualquer propriedade das coisas em si, nem essas coisas nas suas relações recíprocas; quer dizer que não é nenhuma determinação das coisas inerentes aos próprios objectos e que permaneça mesmo abstraindo de todas as condições subjectivas da intuição. (...)
« b. o espaço não é mais do que a forma de todos os fenómenos dos sentidos externos, isto é, a condição subjectiva da sensibilidade, única que permite a intuição externa.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 67, Fundação Calouste Gulbenkian)
Ademais, o texto de Reis acima sofre de incoerência: Deus «cria as coisas ao ver originariamente», mas para Ele, «não há coisas porque lhe seriam transcendentes.
KANT ERA REALISTA?
José Reis considera erroneamente Kant um realista:
«Significa, em primeiro lugar, que Kant continua um realista, e um realista que não vê nada do problema cartesiano, porque nem a absoluta alteridade do ser (para além da sua simples transcendência) o leva a duvidar da sua existência.» (José Reis, Nova Filosofia, pag. 204, Afrontamento; o destaque a negrito é posto por mim).
Um realista postula que a matéria é exterior aos espíritos humanos e subsistente por si mesma, seja criada por deuses ou não. Kant, que se intitulou «realista empírico» que é o mesmo que «idealista transcendental», negou a realidade da matéria em si mesma:
«Deve, portanto, haver certamente algo fora de nós a que corresponde esse fenómeno a que chamamos matéria. Porém, na qualidade de fenómeno, não está fora de nós, mas simplesmente em nós, como um pensamento» (Kant, Crítica ds Razão Pura, pagina 362, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é posto por mim).
Kant é idealista: a matéria é como pensamento, isto é mera sensação. Kant duvida do ser material como duvida do ser espiritual transcendente, o númeno. Foi, portanto, mais longe que Descartes. Este colocou a res extensa - a forma espacial, sem cor, nem peso, nem cheiro, nem densidade - fora da mente do sujeito ou res cogitans e, nessa medida ainda figura no campo do realismo, quase idealista, mas Kant colocou dentro da res cogitans a res extensa. Reis é que não percebeu, deveras, a ontognosiologia idealista de Kant.
HEGEL DESTRUIU O SER ABSOLUTAMENTE OUTRO?
José Reis escreveu ainda sobre a doutrina de Hegel:
Ǥ 71 Hegel
«E estamos em Hegel. Que levando a sério o ser absolutamente outro de Kant, o destruiu. E o destruiu, sem dúvida, em nome do ver: é porque ele é nada para nós que ele é nada. Mas, precisamente, esse ver é só suposto, não é tematizado e em consequência problematizado. O problema em Hegel, tal como em Kant, é só o da recepção-alteração do ser. É porque esse ser, ao ser recebido em nós, se altera radicalmente, que ele é nada. (...) O ser não se destrói pois porque pura e simplesmente não se vê - o ver nem se tematiza - mas porque, tendo de ser recebido, é em absoluto alterado. (...)»
«Hegel, como pós-kantiano que é, passa pois também completamente ao lado do verdadeiro problema do conhecimento. O seu sistema, por mais monumental que seja, continua a ser um desvio. Se Hegel não se desviasse, se tematizasse o vere prestasse atenção ao que efectivamente se vê (para só nos referirmos ao problema do conhecimento) nem sequer daria o primeiro passo.» (José Reis, Nova Filosofia, pag. 205, Edições Afrontamento; o destaque a negrito é posto por mim).
Há diversos erros capitais neste texto de Reis. Começa por não definir o que é para Hegel, o ser.
Ora este termo tem dois sentidos para o grande filósofo alemão: ser-existência que na sua pureza absoluta é igual ao nada, porque apenas é, sem qualidades nenhumas; ser-essência universal ou ideia absoluta em Hegel -ou Eu Absoluto, não humano - que é prévio ao ver humano e se desdobra em três fases, a do ser em si (Deus antes de criar o universo, o espaço e o tempo) , a do ser fora de si (panteísmo: Deus transformado em astros,montanhas, plantas e animais, ou seja, em natureza biofísica) e a do ser para si (panenteísmo: Deus renascido em humanidade que progride em direção à liberdade de espírito. Nada disto José Reis compreendeu.
A frase «O ser não se destrói pois porque pura e simplesmente não se vê» é uma adulteração do pensamento de Hegel: a humanidade - os antigos aristocratas e escravos gregos e romanos, os senhores feudais e os servos da Idade Média, os artífices da Renascença, o proletariado moderno - é o ser para si, o ser que volta a si, e é e foi visível e tangível.
A frase «(o ser) tendo de ser recebido, é em absoluto alterado» é incompreensível no quadro da doutrina de Hegel. Recebido por quem, se a própria humanidade, o sujeito cognoscente é ser, é uma parte do ser?
Hegel escreveu:
«Deus é a Ideia absoluta da razão, não um ser-posto, fantasia, não simplesmente algo de possível; é Ideia necessária não posta por um pensar estranho.
«O conhecimento de Deus é imediato e mediato» ( Georg Friederich Hegel, Propedêutica Filosófica, pag 235, Edições 70, Lisboa) .
«Deus é 1. o ser em todo o ser, simplesmente primeiro e imediato. Este ser é apenas a abstração de toda a determinidade, o indeterminado, o imóvel (Hegel, ibid, pag. 336).
«A natureza vegetal é o começo do processo individual ou subjectivo de autoconservação ou efectivamente orgânico que, no entanto, não possui ainda a força plena da unidade individual, porque a planta, a qual é um indivíduo, possui apenas partes que podem, por seu turno, considerar-se como indivíduos independentes.» (Hegel, Propedêutica filosófica, pag 52, Edições 70; o destaque a bold ).
Nestes excertos de Hegel há a teoria realista do conhecimento, culminando 1800 anos de história das igrejas cristãs: a natureza vegetal é anterior ao homem, Deus não é uma fantasia, uma possibilidade, é uma realidade anterior aos homens e geradora destes que são incarnação de Deus, na terceira fase. E neste ponto Hegel é radicalmente diferente de Kant visto que este duvida da existência de Deus que rotula de númeno, ser incognoscível. Como pode José Reis dizer que Hegel, que lhe é superior intelectualmente, passou ao lado do verdadeiro problema do conhecimento? Em Hegel, o ser suplanta o ver e este é apenas uma dimensão do ser. Isto é uma ontologia e uma teoria do conhecimento: uma ontognosiologia, a que Hegel chama «idealismo absoluto» mas que, em rigor, é um ideal-realismo.
HEIDEGGER QUIS PENSAR O SER COMO NADA OU RECONHECEU O PODER DE O SER NADIFICAR?
Sobre Heidegger escreve José Reis :
«Heidegger quis e bem pensar o ser como nada, porque quis pensar o ser antes do ver. E levado por essa evidência que conhecer é ver o que antes não se via, manteve, com uma consciência absolutamente tranquila, apesar de se tratar de um nada, o seu projecto até ao fim». (José Reis, Nova Filosofia, pag. 213; o destaque a negrito é posto por mim ).
Não é exacto que Heidegger pensasse o ser como nada. O ser tem uma estrutura, tem regras próprias que impõe ao homem:
«O ser é a protecção que guarda o homem em sua essência ex-sistente, de tal maneira, para a sua verdade, que ela instala a ex-sistência na linguagem. É por isso que a linguagem é particularmente a casa do ser e a habitação do ser humano.» (Heidegger, Carta sobre o humanismo, pag. 118, Guimarães & C.ª Editores, Lisboa).
Se o ser é uma protecção do homem não é um nada, obviamente. E se vive na linguagem como sua casa é porque é o conjunto de referentes da linguagem ou, pelo menos, as regras internas linguísticas. O nadificar ou reduzir a nada, próprio de um momento da dialética, exerce-se no seio do ser mas não é todo o ser. Escreveu Heidegger:
«O nadificar desdobra o seu ser no ser, e de maneira alguma, no ser aí, na medida em que este ser aí é pensado como a subjectividade do ego cogito(...)
«O nadificar no ser é essência daquilo que eu nomeio o nada. Por isso, porque pensa o ser, o pensar pensa o nada.» (Heidegger, Carta sobre o humanismo, pag. 116-117, Guimarães & C.ª Editores, Lisboa; o destaque a negrito é posto por mim).
Os grandes filósofos são raros nas cátedras universitárias de hoje. E José Reis não é um grande filósofo, sem embargo de ser uma inteligência acima da média entre os académicos. A grande maioria das cátedras são dominadas por indivíduos medianos, razoavelmente ou mesmo altamente eruditos, mas intelectualmente confusos, em maior ou menor grau, com apreciável poder retórico. Na área da filosofia, pode dizer-se que as universidades são inimigas da grande filosofia, da verdade, pois os absurdos, as deturpações do pensamento original de certos filósofos e os lugares-comuns são frequentes nas teses de doutoramento e nas lições de cátedra.
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«O Ser e o Tempo», essa "bíblia" da fenomenologia, escrita por Heidegger, é um livro de dupla face: nele, ideias e raciocínios brilhantes juntam-se a paralogismos e equívocos de que o grande público, e mesmos os especialistas em Heidegger, não se dão conta. Escreveu Heidegger:
« Antes de tudo, há que advertir que Kant usa o termo "existência" para designar a forma de ser que na presente investigação se chama "ser diante dos olhos". (...)
«O simples facto de que Kant peça uma prova da "existência das coisas fora de mim" mostra que põe o ponto de apoio do problema no sujeito, no "em mim". Consequentemente, desenvolve-se a própria prova partindo da mudança dada empíricamente em mim. »
«Pois só em mim é experimentado o tempo que suporta a prova. O tempo é quem dá o apoio para o salto demonstrativo do "fora de mim". (...)
«O que prova Kant - concedida a legitimidade da prova e da sua base - é o necessário "ser diante dos olhos juntamente" um ente mutável e um ente permanente. Mas a coordenação dos entes "diante dos olhos" nem sequer quer dizer já "o ser diante dos olhos juntamente" um sujeito e um objeto. E uma vez provado isto, continuaria encoberto o ontologicamente decisivo: a estrutura fundamental do "sujeito", do "ser aí" como "ser no mundo". O "ser diante dos olhos juntamente" o físico e o psíquico é ôntica e ontologicamente em toda a linha distinto do fenómeno do "ser no mundo"».
(Heidegger, El Ser y el tiempo, pag. 224-225, Fondo de Cultura Económica)
Contrariamente ao que Heidegger afirma, Kant não ocultou a estrutura do sujeito como "ser no mundo". Kant sustentou que o sujeito é o criador ou co-criador do mundo fenoménico, das paisagens terrestres e celestes e seus objetos materiais, e que não existe um dualismo ontológico rigoroso entre sujeito e objeto fenoménico:
«Esta hipótese de união entre duas substâncias, a pensante e a extensa, tem por fundamento um dualismo grosseiro e transforma estas substâncias, que são meras representações do sujeito pensante, em coisas subsistindo por si. Pode-se, pois, demolir a falsa concepção da influência física, mostrando que o fundamento da sua prova é nulo e fictício.»
«O famoso problema do que pensa e do que é extenso acabaria assim, se fizermos abstração de tudo o que é imaginário, simplesmente em saber como é possível num sujeito pensante em geral, uma intuição externa, ou seja, a intuição do espaço ( do que o preenche, a figura e o movimento). A esta questão não é possível a homem algum encontrar uma resposta e nunca se poderá preencher essa lacuna do nosso saber, mas somente indicar que se atribuem os fenómenos externos a um objeto transcendental...» (Kant, Crítica da Razão Pura, páginas 367-368, nota de rodapé, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é posto por mim).
Como este excerto denota, Kant não considerou o sujeito como um espectador do mundo entendido como "ser diante dos olhos" (concepção realista, dualista) mas antes como um criador do mundo, um "ser no mundo" em sentido heideggeriano.
Também não parece que a existência da mudança - da sucessão e dos seus correlatos duração e da simultaneidade, características do tempo, segundo Kant - constituissem, para Kant, meios de prova de um mundo exterior, como sustenta Heidegger. O facto de, na concepção de Kant, o tempo ser o sentido interno e o espaço o sentido externo não faz com que o tempo seja o trampolim de prova do "mundo exterior". Este, como mundo exterior ao corpo físico - distinção que Heidegger, Russel e outros não fazem, o que prova a inépcia destes ao estudar a gnosiologia de Kant - está dado automaticamente na intuição pura de espaço e não carece de prova. Quanto ao verdadeiro mundo exterior ao espaço e ao espírito humano em geral, é impossível de demonstrar a sua existência ainda que a razão o idealize composto de númenos (Deus, alma imortal, mundo como totalidade).
Heidegger nunca compreendeu integralmente Kant, tal como a generalidade dos filósofos contemporâneos. Excetuarei Hegel e Schopenhauer e algum outro. Nem Heidegger, nem Bertrand Russel, nem Witgenstein, nem os catedráticos que hoje lecionam nas universidades mais prestigiadas entenderam, a fundo, o pensamento kantiano. Nenhum destes, nem mesmo Heidegger, clarificou o duplo sentido que Kant atribui às expressões análogas "fora de nós" e "mundo exterior":
1) O espaço está fora do nosso corpo mas dentro do nosso espírito, do vasto sector deste denominado sensibilidade, um «salão» imenso onde cabe a natureza visível, audível e palpável, feita de montanhas, céus, árvores, corpos de animais e humanos, isto é, fenómenos.
2) Os númenos ou coisas em si estão, presumivelmente, fora do nosso corpo e do nosso espírito envolvente e constituem o verdadeiro mundo exterior. ,
O «Ser e o Tempo» de Heidegger é, por conseguinte, um livro com erros importantes no plano da ontognosiologia, em especial da ontognosiologia de Kant, mas o estilo retórico e emaranhado de Heidegger, sem embargo da originalidade intelectual deste, subjuga o público vulgar e os académicos, que, mais ou menos acríticos, fingem compreender os paralogismos do grande filósofo alemão do século XX. Sou, presumivelmente, um dos únicos a gritar:«O rei (Heidegger), supostamente vestido com um fato invisível (de sapiência retórica), vai nú!».
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